Rev. bras. psicoter. 2013; 15(2):39-51
Baeza FLC, Soares PFB. Vivências psíquicas da infância no filme "Onde Vivem os Monstros". Rev. bras. psicoter. 2013;15(2):39-51
Artigos Originais
Vivências psíquicas da infância no filme "Onde Vivem os Monstros"
Psychic childhood experiences in the movie "Where the Wild Things Are"
Fernanda Lucia Capitanio Baezaa; Paulo Fernando Bittencourt Soaresb
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
"Onde vivem os monstros" (título original: Where the wild things are) é um conto infantil de Maurice Sendak publicado em 1963. A estória, popular no Reino Unido, recebeu releitura para o cinema em 2009 pelo diretor Spike Jonze. Max, o personagem principal, é um menino que encontra no mundo dos monstros a possibilidade de revisitar seus conflitos.
Já faz muito tempo que os contos infantis foram reconhecidos como uma fonte de compreensao das vivências e dos conflitos psíquicos infantis. Bettelhein destaca a valorosa funçao dos contos infantis na elaboraçao desses conflitos1. O conto de Sendak, em especial, aborda com riqueza temas da infância bastante explorados pela psicanálise. Desse modo, pode ser utilizado para ilustrar diversos aspectos do desenvolvimento psíquico infantil.
Este artigo tem por objetivo partir da estória de Max contada no cinema para buscar uma compreensao baseada na psicanálise de alguns aspectos do desenvolvimento psíquico infantil. Para tanto, foram revisados textos de Freud, Klein e outros autores que abordaram temas específicos da infância. Para estruturaçao do texto, fragmentos essenciais do filme foram divididos em primeira, segunda e terceira partes. Em cada uma dessas partes foram abordados alguns tópicos, como complexo de Édipo, agressividade, defesas maníacas, narcisismo infantil, posiçao esquizoparanoide versus depressiva, princípio do prazer versus princípio de realidade.
PRIMEIRA PARTE: ÉDIPO E AGRESSIVIDADE
Max, um menino que deve ter entre 8 e 10 anos, apresenta-se na estória correndo furiosamente atrás de seu cachorro. Em sua brincadeira, Max é também uma fera, vestido com uma fantasia de lobo. Max brinca sozinho e nao consegue a companhia da única irma, Claire, que está ocupada com seus amigos e suas tramas da adolescência. Ao ser dispensado pela irma, que sugere que ele vá brincar com seus amigos, Max apodera-se do que parece ser um mastro de brinquedo e, marchando como um general, ordena a uma cerca: "você para lá, você para cá"; "cerca, vá brincar com suas amigas cercas".
A mae de Max, por sua vez, está ocupada com o trabalho e nao dá a atençao que Max pede. Ao ouvir que a mae está no andar de baixo da casa, trocando palavras carinhosas com um (outro) homem, Max veste sua fantasia de lobo, sobe na mesa e majestosamente grita: "alimenta-me, mulher", "vou devorar você". Em seguida, morde violentamente a mae e foge de casa.
ÉDIPO
A primeira parte da estória pode ser compreendida a partir das descobertas de Freud em relaçao à organizaçao sexual infantil, sintetizadas no complexo de Édipo. De maneira bastante simplificada, o complexo de Édipo refere-se ao estágio do desenvolvimento em que a criança tem impulsos sexuais direcionados ao genitor do sexo oposto e deseja eliminar aquele do mesmo sexo, esperando puniçoes por tais desejos. Neste estágio, o menino encara a mae como sua propriedade, estabelecendo uma relaçao triangular com os pais. A criança percebe, pela primeira vez, que os pais têm uma relaçao a dois da qual ela está excluída2,3.
A resoluçao do conflito se dá pela renúncia edípica. O medo do menino de ser castrado pelo pai poderoso e ameaçador o faz desistir da mae, identificar-se com o pai e voltar-se para o mundo em busca de outro objeto para seu amor2,4. Dessa maneira, o complexo de Édipo se desintegraria "tal como os dentes de leite caem quando os permanentes começam a crescer"3. Nos diversos textos em que desenvolve a teoria do complexo de Édipo, Freud enfatiza a importância dessa relaçao triangular na formaçao do psiquismo3. Na infância de Max, a ausência da figura paterna resulta na falta de um objeto real com o qual o menino possa se identificar e, assim, possibilitar a separaçao da mae pré-edípica.
Max está terrivelmente solitário e enciumado. O ciúme diz respeito ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi tirado, ou está em perigo de sê-lo, por seu rival5. Para Melanie Klein, esse sentimento é inerente à situaçao edipiana. Em "Onde vivem os monstros" nao é só à mae que está dirigido o ciúme de Max. A mae e a irma representam esse objeto de amor perdido, pois agora dedicam seu tempo e atençao aos "rivais" de Max. No Édipo aqui representado, a ausência do pai como uma figura real dá lugar a outros rivais. Quem compete com Max nao é apenas o namorado da mae, como representante do pai nas configuraçoes familiares modernas. O "pai" desse triângulo está presente no trabalho e no namorado da mae, nos amigos da irma. Em suma, a realidade em geral, representada pelos outros, é que castra os desejos de exclusividade de Max.
IMPULSOS AGRESSIVOS
"O primeiro amor já é perturbado em suas raízes por impulsos agressivos. O amor e o ódio lutam entre si na mente da criança; essa luta continua presente de certa forma pelo resto da vida"6 (p. 348-349).
Um dos pilares da psicanálise é a descoberta feita por Freud de que podemos encontrar no inconsciente do adulto todos os estágios do desenvolvimento infantil inicial. No adulto estao, reprimidos e inconscientes, os estágios do desenvolvimento considerados mais primitivos. Essa parte primitiva da personalidade está em contradiçao direta com a parte civilizada, que é de onde parte a repressao7.
Os impulsos agressivos mais primitivos estao evidentes em Max, quem, tomado pela raiva de estar perdendo a mae, ordena, como um bebê faminto, que ela o alimente. A fome simbólica de Max lembra que:
"Na relaçao fundamental, o bebê nao apenas recebe a gratificaçao desejada, mas também sente que está sendo mantido vivo. Pois a fome, que suscita o medo de morrer de inaniçao, e possivelmente suscita até mesmo toda a dor psíquica e física, é sentida como ameaça de morte"6 (p. 348-349).
"Quando o bebê alcança a posiçao depressiva e torna-se mais capaz de enfrentar sua realidade psíquica, sente também que a maldade do objeto é devida em grande parte à sua própria agressividade e à projeçao decorrente. Esse insight dá origem a uma grande dor psíquica e culpa quando a posiçao depressiva está em seu ápice. Entretanto, o insight também acarreta sensaçoes de alívio e esperança, que baseia-se no crescente conhecimento de que o objeto interno e externo nao é tao mau quanto parecia ser em seus aspectos escindidos. Através da mitigaçao do ódio pelo amor, o objeto melhora na mente do bebê. Nao é mais tao intensamente sentido como tendo sido destruído no passado, e diminui o perigo de que seja destruído no futuro; nao havendo sido danificado, é também sentido como menos vulnerável no presente e no futuro. O objeto interno ganha uma funçao de comedimento e de auto-preservaçao e o aumento de sua força é um aspecto importante de sua funçao de superego"5 (p. 228).
"A constância de objeto implica em algo mais que a manutençao do objeto de amor ausente. Implica também na unificaçao do objeto 'bom' e 'mau' numa única representaçao total. Isto promove a fusao das pulsoes agressiva e libidinal e modera o ódio em relaçao ao objeto quando a agressao é intensa"18 (p. 138-139).
"Uma organizaçao que fosse escrava do princípio do prazer e negligenciasse a realidade do mundo externo nao poderia se manter viva, nem mesmo pelo tempo mais breve, de maneira que nao poderia existir de jeito algum"12 (p. 238).
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