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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(2):39-51



Artigos Originais

Vivências psíquicas da infância no filme "Onde Vivem os Monstros"

Psychic childhood experiences in the movie "Where the Wild Things Are"

Fernanda Lucia Capitanio Baezaa; Paulo Fernando Bittencourt Soaresb

Resumo

INTRODUÇAO: "Onde vivem os monstros" é um conto infantil adaptado para o cinema que aborda diversos aspectos das vivências psíquicas da infância. Os contos infantis têm importante papel na compreensao e elaboraçao dos conflitos psíquicos. Sendo assim, podem ser utilizados como ponto de partida para explorar diversos temas relacionados ao desenvolvimento psíquico infantil.
OBJETIVOS: Este trabalho tem por objetivo partir da estória do filme "Onde vivem os monstros" e abordar alguns aspectos do desenvolvimento psíquico infantil.
MÉTODOS: Foram revisados textos de Freud, Klein e outros autores que abordaram temas específicos da infância. Fragmentos do filme foram divididos em primeira, segunda e terceira partes, e, em cada uma dessas partes, foram abordados alguns tópicos, como: complexo de Édipo; agressividade; defesas maníacas; narcisismo infantil; posiçao esquizoparanoide versus depressiva; princípio do prazer versus princípio de realidade.
CONSIDERAÇOES FINAIS: A estória narrada no filme pode ser compreendida como uma alegoria do processo de elaboraçao dos conflitos psíquicos infantis. O contato atento com manifestaçoes artísticas de todas as naturezas enriquece o trabalho de psiquiatras e psicoterapeutas, sendo uma infinita fonte de material a ser explorado sob a perspectiva psicanalítica.

Descritores: Psicanálise; Cinema; Criança.

Abstract

INTRODUCTION: "Where the wild things are" is a children's story adapted to the movies that approaches some aspects of the psychic experiences during childhood. Children's stories have an important role in the comprehension and elaboration of psychic conflicts. Thus, they can be used as a starting point to explore different issues related to the child's psychic development.
OBJECTIVE: This article's intention is to use the story of the movie "Where the wild things are" to approach some aspects of the child's psychic development.
METHODS: Freud's and Klein's texts as well as material from authors who also approached specific child issues were reviewed. Movie fragments were divided into beginning, middle and end. In each of these parts, specific topics were discussed, such as Oedipus complex, aggressiveness, manic defenses, child narcissism, paranoid-schizoid versus depressive position and pleasure principle versus reality principle.
FINAL CONSIDERATIONS: This story can be understood as an allegory of the process of elaboration of the child's psychic conflicts. Looking closely at all kinds of artistic expressions enriches psychiatrists and psychotherapists work, for they are an infinite source of material to be explored under the psychoanalytical perspective.

Keywords: Psychoanalysis; Cinema; Child.

 

 

INTRODUÇAO

"Onde vivem os monstros" (título original: Where the wild things are) é um conto infantil de Maurice Sendak publicado em 1963. A estória, popular no Reino Unido, recebeu releitura para o cinema em 2009 pelo diretor Spike Jonze. Max, o personagem principal, é um menino que encontra no mundo dos monstros a possibilidade de revisitar seus conflitos.

Já faz muito tempo que os contos infantis foram reconhecidos como uma fonte de compreensao das vivências e dos conflitos psíquicos infantis. Bettelhein destaca a valorosa funçao dos contos infantis na elaboraçao desses conflitos1. O conto de Sendak, em especial, aborda com riqueza temas da infância bastante explorados pela psicanálise. Desse modo, pode ser utilizado para ilustrar diversos aspectos do desenvolvimento psíquico infantil.

Este artigo tem por objetivo partir da estória de Max contada no cinema para buscar uma compreensao baseada na psicanálise de alguns aspectos do desenvolvimento psíquico infantil. Para tanto, foram revisados textos de Freud, Klein e outros autores que abordaram temas específicos da infância. Para estruturaçao do texto, fragmentos essenciais do filme foram divididos em primeira, segunda e terceira partes. Em cada uma dessas partes foram abordados alguns tópicos, como complexo de Édipo, agressividade, defesas maníacas, narcisismo infantil, posiçao esquizoparanoide versus depressiva, princípio do prazer versus princípio de realidade.


PRIMEIRA PARTE: ÉDIPO E AGRESSIVIDADE

Max, um menino que deve ter entre 8 e 10 anos, apresenta-se na estória correndo furiosamente atrás de seu cachorro. Em sua brincadeira, Max é também uma fera, vestido com uma fantasia de lobo. Max brinca sozinho e nao consegue a companhia da única irma, Claire, que está ocupada com seus amigos e suas tramas da adolescência. Ao ser dispensado pela irma, que sugere que ele vá brincar com seus amigos, Max apodera-se do que parece ser um mastro de brinquedo e, marchando como um general, ordena a uma cerca: "você para lá, você para cá"; "cerca, vá brincar com suas amigas cercas".

A mae de Max, por sua vez, está ocupada com o trabalho e nao dá a atençao que Max pede. Ao ouvir que a mae está no andar de baixo da casa, trocando palavras carinhosas com um (outro) homem, Max veste sua fantasia de lobo, sobe na mesa e majestosamente grita: "alimenta-me, mulher", "vou devorar você". Em seguida, morde violentamente a mae e foge de casa.


ÉDIPO

A primeira parte da estória pode ser compreendida a partir das descobertas de Freud em relaçao à organizaçao sexual infantil, sintetizadas no complexo de Édipo. De maneira bastante simplificada, o complexo de Édipo refere-se ao estágio do desenvolvimento em que a criança tem impulsos sexuais direcionados ao genitor do sexo oposto e deseja eliminar aquele do mesmo sexo, esperando puniçoes por tais desejos. Neste estágio, o menino encara a mae como sua propriedade, estabelecendo uma relaçao triangular com os pais. A criança percebe, pela primeira vez, que os pais têm uma relaçao a dois da qual ela está excluída2,3.

A resoluçao do conflito se dá pela renúncia edípica. O medo do menino de ser castrado pelo pai poderoso e ameaçador o faz desistir da mae, identificar-se com o pai e voltar-se para o mundo em busca de outro objeto para seu amor2,4. Dessa maneira, o complexo de Édipo se desintegraria "tal como os dentes de leite caem quando os permanentes começam a crescer"3. Nos diversos textos em que desenvolve a teoria do complexo de Édipo, Freud enfatiza a importância dessa relaçao triangular na formaçao do psiquismo3. Na infância de Max, a ausência da figura paterna resulta na falta de um objeto real com o qual o menino possa se identificar e, assim, possibilitar a separaçao da mae pré-edípica.

Max está terrivelmente solitário e enciumado. O ciúme diz respeito ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi tirado, ou está em perigo de sê-lo, por seu rival5. Para Melanie Klein, esse sentimento é inerente à situaçao edipiana. Em "Onde vivem os monstros" nao é só à mae que está dirigido o ciúme de Max. A mae e a irma representam esse objeto de amor perdido, pois agora dedicam seu tempo e atençao aos "rivais" de Max. No Édipo aqui representado, a ausência do pai como uma figura real dá lugar a outros rivais. Quem compete com Max nao é apenas o namorado da mae, como representante do pai nas configuraçoes familiares modernas. O "pai" desse triângulo está presente no trabalho e no namorado da mae, nos amigos da irma. Em suma, a realidade em geral, representada pelos outros, é que castra os desejos de exclusividade de Max.


IMPULSOS AGRESSIVOS

"O primeiro amor já é perturbado em suas raízes por impulsos agressivos. O amor e o ódio lutam entre si na mente da criança; essa luta continua presente de certa forma pelo resto da vida"6 (p. 348-349).

Um dos pilares da psicanálise é a descoberta feita por Freud de que podemos encontrar no inconsciente do adulto todos os estágios do desenvolvimento infantil inicial. No adulto estao, reprimidos e inconscientes, os estágios do desenvolvimento considerados mais primitivos. Essa parte primitiva da personalidade está em contradiçao direta com a parte civilizada, que é de onde parte a repressao7.

Os impulsos agressivos mais primitivos estao evidentes em Max, quem, tomado pela raiva de estar perdendo a mae, ordena, como um bebê faminto, que ela o alimente. A fome simbólica de Max lembra que:

"Na relaçao fundamental, o bebê nao apenas recebe a gratificaçao desejada, mas também sente que está sendo mantido vivo. Pois a fome, que suscita o medo de morrer de inaniçao, e possivelmente suscita até mesmo toda a dor psíquica e física, é sentida como ameaça de morte"6 (p. 348-349).

Melanie Klein enfatiza que os impulsos destrutivos, variáveis de indivíduo para indivíduo, sao parte integrante da vida mental mesmo em circunstâncias favoráveis8. Quando o bebê está com fome e seus desejos nao sao atendidos, ou quando sente dor e desconforto físico, surgem sentimentos de ódio e agressividade, e ele é tomado por impulsos de destruir a mesma pessoa que é o objeto de todos os seus desejos.

O "bebê" Max, ao morder a mae, expressa sua fúria e o desejo de agredir a mae que o frustrou. Nesse momento, a mae é sentida como má, alguém que infringe dor e perda. É essa mae má a que é atacada9.

Winnicott compreendeu a agressividade como uma característica da natureza humana comum a todas as crianças e pessoas de qualquer idade10. Um dos aspectos mais importantes dos impulsos agressivos infantis é seu caráter ambivalente. Ao experimentar sentimentos negativos contra a mae, como frustraçao, ciúme e raiva, a criança reage com toda a força e intensidade do ódio que caracteriza os estágios sádicos iniciais do desenvolvimento. Contudo, os objetos que odeia sao os mesmos que ama7.

A voracidade corresponde ao desejo do bebê pelo seio inexaurível e sempre-presente. No contexto da nossa estória, o seio sempre-presente estaria representado pelo amor exclusivo que Max deseja da mae5. Esse amor oral tem como finalidade incorporar e devorar o objeto amado, pressupondo a aboliçao de qualquer existência separada por parte do objeto9,11. Os símbolos da voracidade oral estao presentes na estória em diversos momentos. Max urra e uiva como uma fera voraz; despreza o alimento que a mae está oferecendo; ameaça a mae de devorá-la; e, por fim, morde.

Segundo Melanie Klein, a mordida corresponde a uma fantasia muito primitiva de atacar, cortar e despedaçar7. A mordida é um recurso utilizado pelas crianças em momentos de frustraçao e disputas com outras crianças. Nao possuindo nenhuma outra defesa, a criança usa os dentes de forma primitiva como uma arma.


SEGUNDA PARTE: O FANTASIAR, DEFESAS MANIACAS E NARCISISMO

Max viaja por dias e noites em um tempestuoso mar até chegar a algum lugar onde encontra um selvagem gigante e destrutivo derrubando o que está ao seu redor. A cena é assustadora, e os monstros parecem perigosos. Carol, o monstro que está destruindo tudo, parece estar frustrado e com raiva. Max junta-se à farra destrutiva, mas logo é interceptado pelos outros monstros, que querem saber quem é esse ser tao pequeno que destrói as coisas - que sao as casas dos monstros - como se suas fossem. Assustado com a possibilidade de ser devorado pelos monstros, Max diz que é um rei de terras distantes, com inúmeros poderes, que explode o cérebro dos inimigos. Com seus poderes, Max explodiu também a solidao.

Os monstros vivem no imaginário das crianças e frequentemente sao interpretados como projeçoes dos conflitos internos e das partes agressivas das crianças. Os monstros desta estória sao, ao mesmo tempo, assustadores e dóceis. Sao capazes de arrancar árvores do chao, mas anseiam por uma figura em quem confiar, alguém capaz de reinar. Poderíamos entender que, tendo sido insuportável ao menino estar no mundo de frustraçoes e privaçao, ele voltou-se para a fantasia como uma maneira de elaborar sua triste realidade. Os monstros, em especial Carol, parecem representantes dos objetos internos de uma criança que se sente muito só e carece de alguém que possa conter sua raiva. Cada monstro padece por algum motivo e todos têm um ar melancólico que nos lembra o quao assustadora a infância pode ser.


O FANTASIAR

"Com a introduçao do princípio de realidade, uma espécie de atividade do pensamento foi separada; foi mantida livre do teste de realidade e permaneceu subordinada apenas ao princípio do prazer. Essa atividade é o fantasiar"12 (p. 240).

No senso comum, o termo "fantasia" remete àquilo que é oposto à realidade. A fantasia, nesse sentido, é tudo o que é fruto da imaginaçao do indivíduo, nao calcado na realidade externa. Podemos dizer que o objetivo da fantasia mais diretamente observável é o de satisfazer os impulsos instintuais, prescindindo da realidade externa. A gratificaçao derivada da fantasia pode ser encarada como uma defesa contra a realidade externa de privaçao e também contra a realidade interna. O indivíduo, produzindo uma fantasia de satisfaçao do desejo, nao está apenas evitando a frustraçao e o reconhecimento de uma realidade desagradável; está também defendendo a si mesmo contra a realidade de sua própria fome e raiva13. Assim, ao tornar-se rei em uma terra distante, Max nao precisa mais do olhar da mae e da irma para se sentir importante.

A capacidade de fantasiar das crianças torna possível diminuir a tensao instintiva, a ansiedade e a culpa. Dessa maneira, a vivência de Max no lugar onde vivem os monstros pode ter uma funçao análoga à da brincadeira na vida das crianças. Melanie Klein observou a existência de uma grande analogia entre os meios de representaçao utilizados na brincadeira e nos sonhos. Nessas duas formas de atividade mental, a realizaçao de desejos é um elemento central. Assim como os sonhos, as brincadeiras infantis podem ser uma forma de acesso ao inconsciente.

Segundo Freud, o ego projeta no mundo externo tudo o que, dentro dele, dá origem à dor11. Assim, os monstros podem ser representantes dos conflitos internos de Max: sua raiva, solidao, sensaçao de nao pertencimento e a necessidade de afeto frustrada pela mae. Na sua busca de elaboraçao de seus conflitos, surge a identificaçao com a figura paterna, representada pelo rei. Carol parece ser o maior representante de Max, carente e voraz. A destrutividade de Carol, assim como a de Max, assemelha-se aos acessos de fúria das crianças pequenas.

Pela fantasia, a severidade do superego pode ser temporariamente abandonada, e, além disso, a tensao causada pela tentativa de manter uma trégua entre o superego e o id se reduz. Assim, o conflito intrapsíquico se torna menos violento e pode ser deslocado para o mundo externo14.

A medida que o indivíduo cresce, as fantasias vao tornando-se mais elaboradas, referindo-se a uma variedade mais ampla de objetos e situaçoes, mas continuam existindo durante todo o desenvolvimento, nunca deixando de desempenhar um papel importante na vida mental8.


DEFESAS MANIACAS

Segundo Anna Freud, os mecanismos de defesa têm a finalidade de garantir a segurança do ego e poupá-lo da experiência da dor. Contudo, o ego nao se defende apenas contra a dor que vem de dentro. Ao mesmo tempo em que lida com perigosos estímulos internos, experimenta igualmente a dor que se origina no mundo externo. Quanto maior for a importância do mundo exterior como fonte de prazer e interesse do indivíduo, maiores serao as oportunidades para experimentar a dor vinda da realidade externa15.

Os mecanismos de defesa sao especialmente importantes para compreender alguns aspectos das vivências infantis. Nas palavras de Anna Freud "O ego da criança pode recusar-se a tomar conhecimento de certa realidade desagradável. Primeiro, volta-lhe as costas, nega-a e, em imaginaçao, inverte os fatos indesejáveis"15 (p. 61).

Para fugir do sentimento de total desamparo e solidao, depois de ter sido "destronado" pelo namorado da mae, Max torna-se um rei de poderes infinitos em seu mundo de fantasia. Assim, é como se o "bebê-rei" descobrisse sua dependência da mae e sua ambivalência em relaçao a ela, experimentando intensos sentimentos de medo de perda. A negaçao dessa dolorosa realidade psíquica dá lugar ao surgimento de defesas maníacas, mantidas pela onipotência infantil13.

As defesas maníacas se dirigem primariamente contra a experimentaçao da realidade psíquica, tendo como principal finalidade repelir fantasias depressivas subjacentes13. Marcada pela grandiosidade e onipotência, a relaçao maníaca com objetos resulta da incapacidade de dar à realidade interna seu significado total16.

Hanna Segal caracterizou a relaçao maníaca com objetos com a tríade controle, triunfo e desprezo13. O triunfo é uma negaçao dos sentimentos depressivos relacionados à valorizaçao do objeto. A defesa maníaca de Max, representada pela identificaçao com a figura poderosa e infalível do rei, mantém afastados os sentimentos depressivos de anseio pelo objeto. Agora Max pode explodir a cabeça daqueles que o desprezaram. Assim, ele triunfa sobre a solidao e nega sua dependência da família.


O NARCISISMO INFANTIL

"Sua Majestade, o bebê"17 (p. 98).

Mahler define o narcisismo primário como "um estado que prevalece durante a primeira semana de vida no qual a satisfaçao da necessidade nao é percebida como vinda de fora, nao havendo consciência de uma agência materna". É afim à "onipotência infantil absoluta"18. O narcisismo primário, entao, referese ao período arcaico do desenvolvimento humano em que nao há, ainda, consciência do outro. Nesse período do desenvolvimento do indivíduo, segundo Freud, o investimento libidinal é todo voltado para o ego. O próprio nome do personagem - Max, contraçao de "máximo" - pode ser um símbolo do narcisismo.

O pai nao aparece na estória e é pouco citado. Uma referência surge quando Max olha para um presente do pai: um globo terrestre que seria o "seu mundo" (para Max, dono deste mundo). Há aqui dois significados possíveis e complementares. Primeiro, pode-se compreender que o pai ausente atribuiu simbolicamente ao menino um grande poder, ao ausentar-se e nao "castrar" o menino no complexo de Édipo. Outro significado possível é que Max é dono somente daquele mundo, sua realidade interna.

Freud observou que, na criança, analogamente ao que se verifica nos povos primitivos, existem características intrinsecamente megalomaníacas: uma superestima do poder de seus desejos e atos mentais, a crença na onipotência dos próprios pensamentos, uma crença na força das palavras e uma técnica para lidar com o mundo - "mágica" - que parece ser uma aplicaçao lógica dessas premissas grandiosas17. Max volta-se para si em sua fantasia grandiosa, une-se ao monstro impulsivo e destrói a golpes as casas dos outros monstros.

Mahler sugere que a grandiosidade infantil representa o desejo de, por um lado, ser separado, grande e onipotente, e por outro, de que a mae satisfaça magicamente as vontades do filho sem ele ter de reconhecer que a ajuda vem de fora. Nesse estado mental, o que predomina é a insatisfaçao geral, a insaciabilidade e os acessos temperamentais de raiva18.


TERCEIRA PARTE: ELABORAÇAO

Na terra dos monstros Max é o rei e, como rei, promete erguer um forte onde acontecerá tudo o que se deseja, tendo os inimigos suas cabeças explodidas automaticamente. Mas Max nao tem poderes mágicos: a roupa de lobo vai ficando cada vez mais desgastada, Max perde a coroa e, entao, as criaturas percebem que ele nao é um rei e que "nao existe esta coisa de rei" (nas palavras do monstro Alexander).

Carol, o monstro que personaliza a voracidade de Max, ao saber que Max nao é um rei, mas apenas um menino, "gente comum", reage com fúria e corre atrás de Max, ameaçando comê-lo. Max percebe que, por trás da reaçao intempestiva e voraz de Carol, existe alguém que, como ele mesmo, "só está assustado". Agora, destituído de sua coroa, Max pode voltar para casa, reencontrar sua mae e o jantar ainda na mesa.


A POSIÇAO DEPRESSIVA

Podemos recontar a história de Max enfatizando que ele começa sua trajetória usando diversos mecanismos que fazem parte do que Melanie Klein chamou de posiçao esquizoparanoide. Usando o que poderíamos chamar de identificaçao projetiva, Max expele partes do seu self e objetos internos no objeto externo fantasiado, os monstros. Usa também a cisao para separar a mae boa da mae má13. É a mae má a que está sendo atacada por Max.

Na teoria clássica de Melanie Klein, a posiçao depressiva é a fase do desenvolvimento na qual o bebê reconhece um objeto total e se relaciona com esse objeto. Quando ele consegue perceber a mae como um objeto único portador de partes boas e más, está alcançada a posiçao depressiva.
"Quando o bebê alcança a posiçao depressiva e torna-se mais capaz de enfrentar sua realidade psíquica, sente também que a maldade do objeto é devida em grande parte à sua própria agressividade e à projeçao decorrente. Esse insight dá origem a uma grande dor psíquica e culpa quando a posiçao depressiva está em seu ápice. Entretanto, o insight também acarreta sensaçoes de alívio e esperança, que baseia-se no crescente conhecimento de que o objeto interno e externo nao é tao mau quanto parecia ser em seus aspectos escindidos. Através da mitigaçao do ódio pelo amor, o objeto melhora na mente do bebê. Nao é mais tao intensamente sentido como tendo sido destruído no passado, e diminui o perigo de que seja destruído no futuro; nao havendo sido danificado, é também sentido como menos vulnerável no presente e no futuro. O objeto interno ganha uma funçao de comedimento e de auto-preservaçao e o aumento de sua força é um aspecto importante de sua funçao de superego"5 (p. 228).

Quando os medos sao aliviados, os impulsos destrutivos também se reduzem. Diminuindo a projeçao de impulsos maus, diminui também o poder atribuído ao objeto mau, ao passo que o ego se torna mais forte, já que está menos empobrecido pela projeçao13. Na resoluçao da posiçao esquizoparanoide, é possibilitada a aproximaçao dos objetos perseguidores e ideais, que, dessa forma, ficam mais bem preparados para a integraçao. Após ter estado com os seus monstros, Max pode voltar para a mae, que agora já nao é tao má. A mae real é quem frustra, mas também quem alimenta.

Outro aspecto interessante a ser destacado é que, quando Max brinca de "guerra de cocô" com os monstros, parece haver uma percepçao da existência dos outros e de que a própria violência pode causar dano.

Na posiçao depressiva, aumenta a tolerância do bebê em relaçao ao instinto de morte e diminuem seus medos paranoides; a divisao (splitting) e a projeçao diminuem, e o impulso para a integraçao do ego e do objeto pode tornar-se gradualmente preponderante13.

Reconhecer a mae como uma pessoa total significa também reconhecê-la como um indivíduo que leva vida própria e que tem relaçoes com outras pessoas. Em relaçao à formaçao de constância objetal, Mahler diz:
"A constância de objeto implica em algo mais que a manutençao do objeto de amor ausente. Implica também na unificaçao do objeto 'bom' e 'mau' numa única representaçao total. Isto promove a fusao das pulsoes agressiva e libidinal e modera o ódio em relaçao ao objeto quando a agressao é intensa"18 (p. 138-139).

A percepçao da própria vulnerabilidade e impotência também sao características da posiçao depressiva. Em nossa estória, essa percepçao pode ser compreendida como uma renúncia ao ideal primitivo baseado no narcisismo primário. É como se a roupa de lobo e a coroa já nao servissem mais. Max se torna mais consciente de seus próprios impulsos e fantasias ao se deparar com os impulsos destrutivos de Carol. Na medida em que aumenta sua adaptaçao à realidade externa - e sao os próprios monstros da fantasia que mostram ao menino o limite de seu poder -, Max adquire uma imagem menos fantasiosa do mundo ao seu redor.


O PRINCIPIO DE REALIDADE

Para Freud,
"Uma organizaçao que fosse escrava do princípio do prazer e negligenciasse a realidade do mundo externo nao poderia se manter viva, nem mesmo pelo tempo mais breve, de maneira que nao poderia existir de jeito algum"12 (p. 238).

Segundo o princípio do prazer, a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer12. Na infância estao ao alcance do indivíduo os elementos para a construçao de um agradável mundo de fantasia. Contudo, a tarefa do indivíduo é o reconhecimento e a assimilaçao dos fatos da realidade15.

A criança fica dolorosamente desencantada com seus pais ao perceber que eles nao conseguem se manter à altura de suas expectativas infantis. No entanto, é essa decepçao a que induz a criança a desligarse um pouco daqueles que até entao eram a única fonte de seu sustento físico e psicológico1. A medida que a criança cresce, uma das suas mais importantes tarefas é superar o desapontamento com os pais e gradualmente passar a obter satisfaçao a partir de outras fontes.

A ausência da satisfaçao esperada exige que o aparelho psíquico tome uma concepçao das circunstâncias reais do mundo externo e funcione de acordo com outro princípio mental, o princípio de realidade12. Assim, essa frustraçao também tem a funçao de dar à criança um contato mais significativo com o mundo exterior. Pelas suas novas experiências, a criança se permite a consciência das limitaçoes dos pais, abrindo mao das expectativas irreais que mantém sobre eles1. Assim como Carol, Max também esperava por um cuidado que fosse infinito e onipotente. Na resoluçao de seu conflito, Max pôde satisfazer-se com a mae real.

Freud diz que o pensamento, como funçao mais elaborada do psiquismo, está a serviço do teste de realidade, sendo um meio de sustentar a tensao e de adiar a satisfaçao12. Assim, o princípio de realidade é apenas o princípio de prazer modificado pelo teste de realidade. No princípio, Max urra e devora, fazendo uma demonstraçao do princípio do prazer descontrolado (ele deseja devorar tudo imediatamente, ignorando as consequências); já ao voltar a casa, ele demonstra ter incorporado o princípio da realidade1 e, dessa maneira, consegue comer ao invés de devorar.


CONSIDERAÇOES FINAIS

A capacidade de desenvolver fantasias conscientes torna suportáveis as frustraçoes experimentadas na realidade. Na infância, a frustraçao, decepçao e desespero podem ser enormes em determinados momentos, e as explosoes de fúria (como a de Max, mordendo a mae) podem ser a expressao da convicçao de que nao há nada que possa ser feito. As fantasias infantis têm especial importância no momento em que o aparelho psíquico ainda nao está preparado para mediar suas emoçoes pelo pensamento. Para Bettelhein, os contos infantis desempenham a funçao de ajudar a criança a dominar problemas psicológicos do crescimento: superar decepçoes narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar dependências infantis1.

Uma característica comum a diversas estórias infantis é o fato de o herói viajar para terras distantes para viver suas experiências fantásticas. Esse lugar onde vivem os monstros nos é familiar, mas está cuidadosamente separado da vida real do menino.

Bettelhein ressalta que um bom conto de fadas, após levar a criança em uma viagem a um mundo fabuloso, no final deve devolver a criança à realidade, de forma que a ordem certa do mundo seja reestabelecida. Assim, no final de sua viagem, Max pôde encontrar sua casa, sua mae e seu jantar exatamente onde os havia deixado. Com isso, o conto dá a ideia de que nao é prejudicial permitir que a fantasia nos domine um pouco, desde que nao permaneçamos presos a ela permanentemente. No final das estórias fantásticas, o herói retorna à realidade - uma realidade feliz, mas sem magia.

A estória de Max pode ser compreendida como uma alegoria do processo de elaboraçao. Enquanto Max perde a mae idealizada e total da infância, Carol é assombrado pela perda do rei que cuidaria de todos. Em sua fúria oral, Max morde a mae, e Carol quer comer Max. Por essas grandes frustraçoes, os dois percebem seus próprios limites, assim como sua vulnerabilidade e impotência. Ao final, Max pôde abrir mao do narcisismo infantil e das defesas maníacas, o princípio de realidade predominou e houve maior integraçao dos objetos em seus aspectos bons e maus. Todos esses processos podem ser resumidos em um grande resultado: Max pôde relacionar-se de maneira mais realista com os outros sem destruir ou ser destruído (antes de partir de volta para casa, Max fica sabendo que foi o único rei que nao foi comido pelos monstros)19.

Ao buscar o encontro de material lúdico com teoria psicanalítica, este trabalho procurou nao reduzir "Onde vivem os monstros" a uma mera ilustraçao das teorias psicanalíticas. Espera-se ter sido possível preservar a singularidade da obra como criaçao artística, muito mais interessante se tomada, em primeiro lugar, como objeto de apreciaçao. Contudo, o contato atento com manifestaçoes artísticas de todas as naturezas enriquece de maneira inestimável o trabalho de psiquiatras e psicoterapeutas, sendo uma infinita fonte de material a ser explorado sob a perspectiva psicanalítica.


REFERENCIAS

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a. Psiquiatra (aluna de doutorado no Programa de Pós-graduaçao em Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) - Porto Alegre - RS - Brasil
b. Psicanalista (professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Instituiçao: Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Correspondência:
Fernanda Lucia Capitanio Baeza
Ramiro Barcellos, 2350 - Serviço de Psiquiatria (sala 400) - Bom Fim
90035-903 Porto Alegre, RS, Brasil
fernanda.baeza@gmail.com

Submetido em 04/07/2013
Devolvido aos autores em 08/08/2013
Retorno dos autores em 25/08/2013
Aceito em 04/09/2013

 

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