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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(2):25-38



Artigos Originais

O funcionamento masoquista na relaçao terapêutica

The masochist expressions in the therapeutic relationship

Stefania Pigatto Techea; Paulo Fernando Bittencourt Soaresb; Cláudio Laks Eizirikc

Resumo

Pacientes com funcionamento masoquista representam um dos desafios terapêuticos mais difíceis durante a psicoterapia psicodinâmica. O comportamento masoquista pode dominar o campo analítico e causar forte resistência ao progresso do tratamento. Essa resistência pode aparecer tanto nas reaçoes transferenciais do paciente quanto nas reaçoes contratransferenciais e nos enactments do terapeuta. Este trabalho detalha as principais dificuldades na relaçao terapêutica com pacientes de funcionamento masoquista, ilustradas com material clínico, e revisa os principais cuidados que se devem ter na técnica da psicoterapia de orientaçao analítica durante o tratamento desses pacientes.

Descritores: Masoquismo; Psicoterapia; Transferência (Psicologia); Contratransferência (Psicologia).

Abstract

Patients with a masochistic expression represent one of the most difficult therapeutic challenges during psychodynamic psychotherapy. The masochistic behavior can dominate the analytical field and cause strong resistance to treatment progress. This resistance can appear in the transferential reactions of the patient as well as in the countertransferential reactions and in the therapist's enactments. This paper details the main difficulties in the therapeutic relationship with patients with a masochistic expression illustrated in clinical material, and reviews the main precautions that should be taken in the psychodynamic psychotherapy technique for the treatment of these patients.

Keywords: Masochism; Psychotherapy; Transference (Psychology); Countertransference (Psychology).

 

 

INTRODUÇAO

Pacientes com funcionamento masoquista representam um dos desafios terapêuticos mais difíceis1. O comportamento masoquista pode dominar o campo analítico e causar forte resistência ao progresso do tratamento. Essa resistência pode aparecer tanto nas reaçoes transferenciais do paciente quanto nas reaçoes contratransferenciais e nos enactments do terapeuta. Durante a psicoterapia de orientaçao analítica o terapeuta é capaz de identificar o funcionamento masoquista em diferentes personalidades e patologias psiquiátricas. Meyers1 postulou que algum grau de masoquismo é universal e que o que difere entre as pessoas é o grau de comprometimento na adaptaçao de habilidades sociais. Kernberg2 já tinha essa ideia e defendia que existe um masoquismo considerado normal responsável pela integraçao das funçoes do superego.

Krafft-Ebing3 introduziu o conceito psicológico de masoquismo em 1895. Ele usou o nome do Conde Leopold Ritter von Sacher-Masoch (1836-1895) para designar uma perversao sexual na qual o prazer erótico era derivado da submissao passiva a um comportamento cruel e humilhante (um comportamento sádico). Com o Conde Masoch teria ocorrido uma relaçao desse tipo, pois, em seu romance A Vênus de peles (1870), ele descreve um dos personagens atingindo o gozo após ser surrado. O termo "sadismo" derivou do nome do aristocrata francês Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814). O Marquês de Sade foi um escritor libertino que costumava criar enredos teatrais nos quais os protagonistas eram maltratados com requintes de perversidade.

Freud expandiu a teorizaçao de Krafft-Ebing. Após vários escritos, em 1924, desenvolveu o texto O problema econômico do masoquismo4, no qual dividiu o masoquismo em três categorias e descreveu o conceito de masoquismo moral.

Freud, na época, expressou uma visao pessimista quanto ao tratamento de pacientes com características masoquistas. Comentou que esses casos apresentavam uma forma de resistência para a qual nossos meios de combate eram inadequados5.

Muitos autores concordam com que o comportamento masoquista pode dominar a transferência e, assim, ser um dos desafios terapêuticos mais difíceis. Os pacientes desenvolvem uma forte resistência, frequentemente na forma de reaçao terapêutica negativa1,6,7,8,9,10,11.

A relaçao analítica cria experiências corretivas que tornam o paciente apto para usá-las em sua vida. O terapeuta deve compreender os elementos projetivos e assimilar a transferência antes de usar essas informaçoes como interpretaçao12. Zeitner13 chamou a atençao para os enactments do terapeuta. Para Zeitner, o tratamento ocorre quando a dinâmica e a estrutura de caráter do paciente encontram a dinâmica e a estrutura de caráter do terapeuta, e, juntos, eles formam um conluio que determinará a técnica a ser usada e o resultado do tratamento.

O objetivo deste trabalho é mostrar as dificuldades na relaçao terapêutica em psicoterapia de orientaçao analítica com pacientes de funcionamento masoquista e revisar os cuidados técnicos que devem ser seguidos durante o tratamento.


DESENVOLVIMENTO

As primeiras referências ao masoquismo encontram-se em A interpretaçao dos sonhos (1900)14, obra na que Freud narrou o sonho de uma noiva e, pelas associaçoes da paciente, identificou nos seus pensamentos a "violência da defloraçao" e um traço masoquista de caráter. Esse traço, visto como impulso no contexto do sonho, foi articulado com a questao da sexualidade, da puniçao, da repetiçao e da inversao.

Depois, em Psicopatologia da vida cotidiana (1901)15 e em Fantasias histéricas e sua relaçao com a bissexualidade (1908)16,17, Freud, pela primeira vez, traçou um paralelo entre as fantasias sexuais histéricas de crueldade, os delírios dos paranoicos e as encenaçoes dos perversos para a satisfaçao de seus desejos sexuais.

A primeira descriçao detalhada de Freud sobre o masoquismo apareceu em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade18, no capítulo dedicado às aberraçoes sexuais. Freud conceituou sadismo e masoquismo como a tendência a causar dor ao objeto sexual ou a ser maltratado por ele, respectivamente, sendo esse par a mais frequente e a mais importante das perversoes sexuais.

Em 1914, Freud utilizou essa teoria em O homem dos lobos16,19, conforme citado: "No sadismo, ele se apegava firmemente à sua identificaçao mais antiga com o pai; no masoquismo, o pai era escolhido como objeto sexual".

Em 1919, Freud20 escreveu Uma criança é espancada e passou a investigar a relaçao da excitaçao sexual com o sentimento de culpa. A experiência de ser espancado seria a representaçao regressiva analsádica da fantasia de ser amado genitalmente pelo pai.

Em 1920, com Além do princípio do prazer, Freud21 detalhou a relaçao do sadismo com os componentes libidinais do instinto sexual. Descreveu a volta do instinto para o próprio ego como uma regressao do instinto e passou a considerar a existência de um masoquismo primário. Curioso com o tema, em 1924, Freud detalhou os fenômenos masoquistas em sua obra O problema econômico do masoquismo4 e, nela, dividiu o masoquismo em 3 categorias. O masoquismo feminino foi descrito como fantasias de masturbaçao com conteúdo manifesto de amordaçamentos, espancamentos, sujeira e mutilaçoes. Além disso, apresentava conteúdo de culpa por possuir significados de castraçao, cópula e parto. O masoquismo erógeno foi caracterizado pelo prazer derivado do sofrimento. Nele, o sofrimento e o desprazer também produziriam alguma quantidade de excitaçao sexual. O masoquismo moral se distanciou das perversoes sexuais para ser definido como um comportamento no que o que importava era o sofrimento em si, independentemente da sua origem.

Freud acreditava que o conteúdo oculto do masoquismo moral se originava após a superaçao e a dessexualizaçao do complexo de Édipo. Havia um retorno do sadismo contra a própria pessoa que gerava a puniçao e o castigo pela consciência de culpabilidade. Esta estava vinculada à masturbaçao infantil, aos desejos inconscientes de ser escolhido pelo pai, à consciência moral e ao medo da castraçao. O sentimento de culpabilidade seria despertado pela mae por ela ser um severo juiz que proíbe o desejo incestuoso da filha com o pai e a ameaça com a perda de seus órgaos genitais femininos. Para realizar o castigo, o masoquista agiria contra seu próprio bem, destruindo os horizontes que lhe sao oferecidos no mundo real. A revolta do sadismo ante esse comportamento se daria nos instintos, que impediriam o indivíduo de utilizar seus componentes agressivos para seu crescimento. No sadomasoquismo o superego demonstrava um sadismo que Freud descreveu como o lugar onde reina o instinto de morte. Freud postulou uma diferença entre o superego neurótico e o superego perverso. Para ele, o superego perverso possuía uma capacidade de destruiçao característica que poderia aparecer quando o paciente projetava um superego materno hostil e acusatório no terapeuta. O funcionamento masoquista estaria estreitamente ligado com a angústia de separaçao e o temor da perda do objeto, podendo resultar em luto e melancolia quando ocorria identificaçao com o objeto perdido22.

Nas suas recomendaçoes em Análise terminável e interminável (1937)16,23, Freud apontou a pulsao de morte vista no masoquismo como o grande obstáculo ao processo analítico: "Provisoriamente nos inclinamos diante do poder das forças contra as quais vemos naufragar nossos esforços. Mesmo exercer uma influência psíquica somente sobre o masoquismo constitui uma dura prova ao nosso poder". Nesse ensaio, Freud insistiu no papel do masoquismo na reaçao terapêutica negativa. Essas premissas foram a base para o desenvolvimento de novas teorias sobre o masoquismo.

Após Freud, novas teorias apontaram na estrutura básica do caráter masoquista uma desordem de ego e um distúrbio das relaçoes de objetos6,11,24,25. O masoquismo seria uma soluçao neurótica para o conflito infantil que surge da necessidade de obter o amor necessário de uma figura parental negligente, principalmente a mae, e estaria intimamente ligado à ferida narcísica de nao ser amado. O masoquista desloca para si a raiva destrutiva por nao ter se sentido objeto de investimento, nem libidinal, nem narcísico de nenhum dos pais. A tentativa de cura da ferida narcísica é submeter-se para, em fantasia, ter a recompensa da atençao tao almejada26. Acrescenta-se a essa teoria que o masoquismo representa uma organizaçao de caráter fixado no plano da separaçao-individuaçao. A individuaçao patológica ocorre quando pais de masoquistas criam seus filhos usando a projeçao, a identificaçao projetiva e a negaçao maciça. Usam a comunicaçao dupla, emitindo mensagens com partes contraditórias no conteúdo ostensivo e no conteúdo latente. Isso provoca na criança confusao, mágoa e dúvida em relaçao a si própria, o que prejudica sua capacidade de confiar em suas percepçoes. A criança introjeta sua imagem com os adjetivos desqualificatórios projetados pelos pais. Além de fixar essa autoimagem desvalorizada, esse processo intensifica a submissao à vontade da outra pessoa, gerando características masoquistas25.

Os significados do masoquismo sao multideterminados e servem para diferentes defesas e funçoes narcísicas, aparecendo em diferentes planos de desenvolvimento1. A seguir, apresentamos algumas funçoes do masoquismo conforme a sua estrutura teórica.

Masoquismo e culpa: segundo as premissas de Freud (1924), a dor e a humilhaçao inconscientes sao o pagamento para permitir a transgressao. A agressao do masoquista é direcionada para fora. Ele necessita derrotar a ele e ao terapeuta, pois crê que nao merece sentir prazer sem dor. No tratamento é necessário confrontar a busca do desprazer dentro e fora da transferência e/ou a busca consciente por algum prazer já falido. Também é necessário clarificar a projeçao do sadismo no mundo externo, que se expressa como uma forma de injustiça coletiva. Interpretar a motivaçao do senso inconsciente de culpa é fundamental para a reconstruçao de vivências passadas e para a transferência corrente. Um exemplo dentro das relaçoes de objeto ocorre quando a agressao pré-edípica contra a mae pelo desamparo e frustraçao é virada para o self do paciente e transformada em culpa.

Masoquismo e autoestima: é a funçao narcísica do masoquismo. Frente à inevitável frustraçao, desamparo e perda da onipotência mágica infantil, a criança tenta reparar essa injúria para sua autoestima afirmando algum senso de controle. Torna-se ativa ao invés de passiva, assume a responsabilidade por seu desapontamento, provoca rejeiçao e extrai alguns prazeres com a ideia de que ninguém a frustra, mas é ela quem se frustra. Há um orgulho em desfazer o desamparo e ficar no controle manipulando os outros com sadismo, culpa ou desamparo. Há um superego orgulhoso na habilidade de controle dos próprios instintos, no autoabnegar-se e controlar a dor. Há orgulho por ser uma vítima do destino. O paciente nao se sente como vítima impotente, mas usa seu senso de controle e entendimento para obter gratificaçao. Tecnicamente, isso requer a interpretaçao desses conteúdos na transferência e a reconstruçao das relaçoes objetais para que seja possível estabelecer o senso de autonomia.

O terapeuta, durante uma psicoterapia de orientaçao analítica, é capaz de identificar o funcionamento masoquista em diferentes personalidades e patologias psiquiátricas. Além das personalidades masoquistas, tais características de comportamento encontram-se diluídas entre as personalidades com características narcisistas, obsessivas, borderline, histéricas e dependentes, e também em patologias do eixo I, como a depressao maior e a distimia. A identificaçao do funcionamento masoquista é útil para que possamos trabalhar suas características peculiares e evitar a estagnaçao do processo terapêutico.

Os sinais característicos transmitidos pelos masoquistas e que podem nos ajudar no diagnóstico psicodinâmico em terapia de orientaçao analítica sao24:

  • Uso e abuso do pedido de desculpas;
  • Aceitaçao das premissas do outro como corretas, perdendo a capacidade de pensar por si próprio;
  • Evitaçao de perguntas, pois a resposta é sentida como ameaçadora;
  • Medo de assumir a responsabilidade por suas próprias decisoes;
  • Uso corrente da fala tangencial e circunstancial, revelando-se excessivamente com o objetivo de procrastinar a solidao e preencher os silêncios que lhe parecem ameaçadores;
  • Incapacidade de contra-atacar quando é preciso, submetendo-se à situaçao e permitindo que os outros determinem o rumo de suas coisas;
  • Enfase nos próprios erros para desviar os julgamentos negativos;
  • Rigidez de linguagem carregada de alternativas dualistas como "certo ou errado", nao encontrando um equilíbrio;
  • Metamensagens transmitidas na linguagem corporal. O masoquista transforma sua raiva em mágoa, e o choro é a expressao disso; outro, rapidamente os destrói ou desvaloriza com observaçoes negativas;
  • Negativismo: a mensagem masoquista é sempre uma expressao de impotência e uma súplica de perdao.

  • Glickauf-Hughes e Wells25 destacam como características masoquistas:
  • Uma tendência a usar a introjeçao como meio de defesa;
  • A falta de integraçao de bom e ruim dentro de sua estrutura própria;
  • História de pais que usaram projeçao e identificaçao projetiva;
  • Tendência a escolher parceiros que usam a projeçao e identificaçao projetiva;
  • Grande medo de perda de objeto, ou perda do amor do objeto;
  • Necessidade de sentir uma certa sensaçao de controle sobre seu destino (provocam a ofensa e puniçao esperada do outro para ter uma sensaçao de controle);
  • Agressividade passiva ou obstinaçao teimosa exprimida num "sim, mas..." com um sentimento de uma semissubmissao;
  • Assunçao de um papel de cuidador ou supercontrolador que estabelece uma posiçao de dominância passiva;
  • Provocaçao sutil, dentro de outros, de lutas de poder e atuaçao da própria ambivalência e raiva masoquista;

  • Todas essas atitudes serao trazidas para a relaçao terapêutica, provocando reaçoes transferenciais e contratransferenciais. Com o tempo, as características de bondade, solicitude, polidez e autossacrifício causam raiva no terapeuta, porque, na realidade, sao o resultado da formaçao reativa contra uma raiva subjacente a uma sonegaçao de amor pelos objetos cuidadores27. As dificuldades desse processo devem ser compreendidas na relaçao terapêutica para que o sucesso terapêutico seja alcançado.

    O maior problema técnico corresponde à reaçao terapêutica negativa descrita por Freud9. Ela é evocada sempre que o terapeuta fala esperançosamente, com amabilidade, ou buscando o insight. Tais qualidades contradizem a imagem de um analista sádico. Novas tentativas sao feitas pelo paciente para integrar o terapeuta com os aspectos perversos previamente internalizados, provocando ódio nele pela negaçao de reaçoes terapêuticas positivas11. Além da reaçao terapêutica negativa, é necessário analisar todas as resistências transferenciais, trazer isso para o foco, ver isso objetivamente, descobrir o significado inconsciente das defesas (significado de gratificaçao ou de puniçao) e, finalmente, comunicar ao paciente nossas conjecturas9,10. O tratamento é acompanhado de inevitáveis períodos de regressao e uso de defesas primitivas que contribuem para a resistência transferencial12.

    O paciente de funcionamento masoquista apresenta, na transferência, componentes perversos e sádicos. Por trás da carapaça destrutiva, o masoquista tenta proteger um self vivenciado como frágil e incompetente para assumir seus próprios impulsos. Busca nas relaçoes perversas a proteçao contra a dor que as relaçoes com os objetos reais poderiam trazer. O paciente tende a se apresentar muito cooperativo e a despertar interesse de ajudar pelo quadro de sofrimento que descreve. Demonstra avidez pela participaçao do terapeuta, porém extrai de cada palavra um sentido crítico, condenatório, que só servirá para incrementar suas autoacusaçoes. O paciente parece estar pensando, mas, devido a suas ruminaçoes mentais, tem como resultado uma antítese do pensamento. Há uma dissociaçao do ego pensante, e uma parte dele tenta manter as relaçoes perversas idealizadas. O paciente pode agir com hostilidade em relaçao ao terapeuta quando sentimentos de desamparo e indignaçao predominam10. Na transferência, o paciente projeta no terapeuta o objeto interno punitivo, e o terapeuta é exigido a funcionar como os pais da infância do paciente, sendo sádico, abusivo e julgador5,6,10,12.

    A dependência e o papel da onipotência infantil emergem na relaçao transferencial. Os masoquistas criam um herói que aguenta tudo e, assim, dependem dele. Compreendemos assim que o papel de herói é uma defesa contra o medo de ser esquecido. A identificaçao com o terapeuta durante o processo terapêutico pode ser uma ameaça a esse funcionamento prévio. Com isso, o paciente cria uma resistência que aparece na transferência com um distanciamento. Aspectos do herói aparecem na transferência quando o paciente tenta ser perfeito (pagando de forma antecipada, chegando no horário, produzindo sonhos) e quando o paciente desperta a necessidade de perfeiçao no terapeuta. Uma área que deve ser continuamente explorada na transferência é a relaçao patológica e defensiva de dependência. O paciente sente-se compelido a ser um servo do objeto, alterna estágios de idealizaçao, de raiva, de esperança, de consolo e de tranquilizaçao vinda do objeto. Acredita que a complacência e a submissao trarao o objeto tranquilizador12.

    As projeçoes sádicas sao um convite para o terapeuta sentir-se ressentido e provocar represália ou ignorar e negligenciar o paciente. Outra resposta para a projeçao é o terapeuta validar o papel de herói, usando a técnica de conselho suportivo, mantendo, com isso, a contratransferência patológica12.

    Na contratransferência, o terapeuta pode inconscientemente participar do masoquismo do seu paciente. Um exemplo ocorre quando o terapeuta sente raiva de seu paciente, desesperança e sensaçao de derrota e impotência por tentar ajudar alguém que parece disposto a provar a inutilidade do trabalho terapêutico. As vezes, a raiva aparece como indiferença com respeito ao resultado do tratamento9,28.

    Muitos autores destacam as instâncias em que o terapeuta participa do conluio sádico-masoquista e atua o papel sádico dos pais reais do paciente. Isso ocorre quando o terapeuta nao reconhece a natureza de sua frustraçao e atua sendo objetivo, frio e austero10. Isso também pode aparecer no tom de voz agressivo do terapeuta, no conteúdo das interpretaçoes, ou no simples assinalamento das identificaçoes projetivas agressivas28.

    Enactments mais sutis podem ocorrer com frequência se o terapeuta nao estiver atento: quando o terapeuta se submete aos desejos do paciente, evitando assuntos difíceis, por exemplo; quando se deixa enganar por situaçoes de faltas ou descumprimento do contrato; quando nao cobra o pagamento conforme o estipulado.

    Em resposta à transferência masoquista surge o masoquismo do terapeuta, a contraidentificaçao projetiva com o masoquismo do paciente, sentindo culpa pela sensaçao de nao estar sendo produtivo; culpa pelo ódio que o paciente desperta por meio de seu sadismo; culpa pelo fracasso baseado em uma ambiçao terapêutica desmedida em relaçao a seu ideal de ego; culpa por nao ter atendido à exigência de sucesso do paciente.

    A resoluçao da contratransferência negativa é um fator decisivo para o andamento do processo psicanalítico. O próprio masoquismo do terapeuta pode criar essa contratransferência negativa, e, assim, o próprio terapeuta pode sabotar sua capacidade profissional. O terapeuta masoquista tem uma preferência inconsciente para selecionar a resistência do paciente e ignorar o valioso material de conteúdo positivo8.

    Os aspectos cruciais do terapeuta durante a terapia com o paciente masoquista sao a atitude neutra, o autocontrole das reaçoes contratransferenciais e a percepçao dos fenômenos terapêuticos10,11. O terapeuta deve trabalhar na relaçao analítica com funçoes parentais básicas: consolar, conter, organizar, estimular, entender, atrair, participar e tranquilizar, para formar novas experiências afetivas e cognitivas12.

    O sadismo aparece no campo analítico na forma de masoquismo irredutível e nas respostas às interpretaçoes. Independentemente do trabalho terapêutico, para o paciente tudo acabará em sofrimento e as interpretaçoes sempre serao insuficientes, representando a transferência dos pais fracos e ausentes10. Para ilustrar um trecho de uma conversa:

    P: Já estipulei que vou errar e nao vou conseguir, mesmo tentando, nao vai dar certo. Mesmo que dê certo, fico esperando o que vai dar errado. Sabe qual é meu medo com relaçao a nós? Chegar ao final e eu nao conseguir nada, nao chegar a nenhuma conclusao. O que tu achas, com todo esse tempo que tu me conheces, eu vou conseguir? Porque eu nao acredito! Nem as coisas que concluo aqui eu faço, eu tenho fingido, eu faço as coisas sem perceber, como tu me disseste, te contei fingindo que nao aconteceu, te contei, mas sem sentir, eu anulei, é muito louco, foi o que eu fiz no passado, o que fiz agora e como eu sempre faço, como se nao estivesse acontecendo nada.

    T: É a maneira como tu te defendes, tu acredita que é essa a maneira de nao sofrer, e quando te mostrei outra forma, tu nem quis ouvir. Se tu queres provar que tudo vai dar errado, tu vais conseguir, mas isso é contra os propósitos da tua terapia aqui.


    É fundamental uma relaçao terapêutica na qual o paciente encontre um ambiente de compreensao e receptividade que facilite o diálogo ao invés de críticas e puniçao, e sem a habitual busca do sofrimento5,6,10,29.

    Os traços de caráter primeiro devem se tornar egodistônicos para serem analisados; similarmente, todas as resistências devem ser isoladas, confrontadas pela observaçao do ego e clarificadas antes de serem interpretadas1. Entao, o terapeuta poderá interpretar o verdadeiro significado do comportamento masoquista na transferência, que poderá ser: defensivo, de gratificaçao inconsciente ou de reaçao instintiva de conflitos na infância9. A interpretaçao precoce pode ser uma atuaçao agressiva do terapeuta. O terapeuta deve suportar a experiência emocional daquilo que foi projetado, compreender esses elementos projetivos e transformá-los em um novo conhecimento para, depois, ele ser compartilhado com o paciente na forma de interpretaçao. O paciente tem a fantasia de perder a posiçao especial masoquista e vê o tratamento como uma ameaça de ser transformado em homem comum12,28. O que determina o conteúdo e o momento das interpretaçoes é o entendimento das funçoes inconscientes do sofrimento, que sao a defesa ou o caminho para realizar a satisfaçao1,13.

    É importante ajudar o paciente a entender que sua raiva é baseada em experiências passadas e que a falta de habilidade de seus pais é deles e nao foi causada pelo paciente. Os pacientes masoquistas inibem expressoes de protesto e raiva e, quando elas aparecem na transferência, é importante que o terapeuta as respeite e legitime. O terapeuta deve criar uma atmosfera na qual a iniciativa dessas manifestaçoes seja valorizada, tolerada e bem-vinda. Ainda que possam ser nao prazerosas, elas estao aumentando o senso de eficácia e autorizaçao do paciente5,6,7,10,29. Vejamos o seguinte exemplo:

    P: Hoje eu vim bem decidida, só marquei a próxima consulta e nao vou vir mais. Venho pensando nisso desde aquele dia. Aquele dia eu precisava muito falar contigo, eu vim correndo, achei que ia dar tempo de passar na loja. Fiquei pensando se eu crio essas atrapalhaçoes, eu poderia ter vindo direto, mas nao vim e nao deu tempo. Eu também queria ficar em casa para fazer minhas coisas, mas, quando fico, também nao faço. Percebo o que eu faço, me atrapalho muito.

    T: Como foi aquele dia? Te sentiste abandonada por mim?

    P: Eu me senti. Eu imaginei que tu ias me dar oi, eu ia entrar, ia falar tudo o que eu queria e ia embora. Eu queria falar contigo, eu precisava que tu me ouvisses. Eu passei todas as minhas férias sem ti e daqui a pouco eu vou estar sem ti, acho que posso me dar alta.

    T: Tu estás magoada comigo, e essa raiva é contra mim, mas, pela dificuldade de tu me dizeres isso, tu acabas colocando ela em ti ao abandonar a terapia.

    P: Eu sou teimosa, vou pagar para ver. Eu conseguirei sobreviver sem ti, eu consigo fazer as coisas sozinha, de repente, eu me ouvindo, pensando sozinha, eu vou conseguir.


    O reconhecimento e a eliminaçao da onipotência infantil sao decisivos para o tratamento. O foco deve ser na fantasia de onipotência do paciente quando ela é usada para produzir puniçao e fracasso. É importante ressaltar ao paciente que interromper o comportamento masoquista nao significa que ele se tornará impotente e desamparado. É importante mostrar-lhe que seu sofrimento é autoinduzido. A análise deve se focar na fantasia de que o herói infantil (onipotência) nao é mais necessário12.

    O tratamento deve se focar na internalizaçao gradual de novas relaçoes de objeto. As relaçoes antigas serao percebidas como nao tranquilizadoras, e o paciente, entao, irá em busca de outros métodos para compensar essa falha. O terapeuta é frequentemente experimentado com essa falha, mas isso nao está consciente, surge como uma formaçao de compromisso de dependência relativa masoquista ou narcisista. Esse estilo de compromisso esconde inveja e raiva, e o paciente mantém a esperança de ser recompensado com tranquilizaçao. Aqui, as interpretaçoes podem se focar no desejo de funçao tranquilizadora acima de qualquer coisa. O paciente resiste, pois acredita que deixando de ser masoquista ele exporá sua inveja e injúria narcísica e, com isso, perde a esperança de receber a funçao tranquilizadora devido à fantasia de destruiçao da fonte de tranquilizaçao de seu objeto amado12.

    Para diminuir o conflito e lidar com a falta de identificaçao do paciente, precisamos legitimar o seu desejo, aumentar a sua habilidade de sentir prazer e admiraçao. Defesas contra a necessidade de afirmaçao, admiraçao e encorajamento podem obscurecer esses desejos. A resposta pessoal e interpretativa do terapeuta a essas necessidades ajuda a desenvolver a capacidade de legitimaçao do paciente, que é essencial nesses casos29.

    É necessário trabalhar a diferenciaçao do objeto e elaborar a angústia de separaçao e o temor pela perda do objeto. No tratamento será essencial ajudar o paciente a encontrar sua parte infantil amedrontada do self que é vivenciada como frágil e incompetente para assumir seus próprios impulsos. Trabalhando a separaçao, o paciente assume a responsabilidade por sua vida mental e toma para si partes de sua personalidade que estavam colocadas no objeto28,30. Segue um exemplo demonstrando a submissao e o medo da perda do objeto:

    P: É, eu sei que eu preciso me valorizar mais. Fico pensando que seria melhor ele arrumar logo outra mulher e ser feliz do jeito que ele sempre sonhou, porque eu nao consigo dar essas coisas para ele. Se eu fosse diferente, nossa relaçao seria melhor.

    T: Tu colocas a culpa em ti porque é mais fácil que enxergar que ele te trai, que te trata mal porque ele quer e, com isso, tu terias que deixá-lo.

    P: (Chora). Estou sempre tentando agradá-lo. Nao quero outra relaçao, eu tenho medo: e se for pior que ele? E se eu me apaixonar e me decepcionar? Vai ser pior!! Ele, por pior que seja, eu sei o que esperar, é o que eu tenho. As vezes ele é muito bom comigo, aí eu me agarro naquele pouquinho que me faz ter esperança de que poderá ser diferente.

    T: E isso que deve ter acontecido no início te fez acreditar que seria bom, mas hoje, pra nao perder esse mínimo de coisas boas, tu acabas te sujeitando a todas as coisas ruins baseada na crença de que tu és muito frágil.


    Um erro de manejo técnico é observar apenas os aspectos agressivos do paciente dissociados no objeto sádico e esquecer os outros elementos, principalmente de fragilidade. As interpretaçoes apenas desse aspecto sádico sao tomadas como acusaçoes e castigos, e isso contribui para a construçao de um clima perverso dentro das sessoes.


    CONSIDERAÇOES FINAIS

    O tratamento de pacientes com funcionamento masoquista em psicoterapia de orientaçao analítica é um grande desafio. O tratamento nao tem por objetivo a mudança de caráter, mas inclui o manejo das fortes resistências masoquistas para a psicoterapia prosseguir. Essas resistências desafiam nossa compreensao principalmente por estarem associadas à pulsao de morte. O terapeuta que nao tem conhecimento da dinâmica masoquista é facilmente envolvido em conluios e acaba atuando sua contratransferência.

    É preciso ter em mente que o paciente com características masoquistas nao se percebe como um objeto que pode receber investimento libidinal e narcísico. As identificaçoes projetivas fazem suas qualidades serem esvaziadas e serem depositadas nos objetos externos. O terapeuta pode ajudar a reconstruir a autonomia do paciente e fortalecer o ego pensante produtivo ao invés de estimular sua dissociaçao. Por isso, é de grande importância identificar manifestaçoes masoquistas no paciente e no terapeuta, pois elas formam um campo analítico particular que leva a baluartes e impasses.

    O caminho para alcançar o sucesso terapêutico é entender a dinâmica do funcionamento masoquista e suas projeçoes na transferência. É fundamental identificar os elementos contratransferenciais despertados no terapeuta e descobrir seus significados. Nesses pacientes, que buscam tratamento com uma história de sofrimentos e um predomínio de fantasias e comportamentos voltados contra si mesmos, é de muita importância manter uma neutralidade possível, saber esperar e ouvir, ter paciência com as inevitáveis regressoes e atuaçoes masoquistas, identificar os inevitáveis baluartes e reconhecer que o paciente trava dentro de si e no campo analítico uma tenaz luta silenciosa entre suas pulsoes de vida e de morte, de ligaçao e desligamento.

    Buscando-se entender esses elementos pela técnica psicodinâmica é possível construir uma relaçao terapêutica positiva, que pode fazer a psicoterapia progredir, reconhecendo suas limitaçoes e também as do paciente, mas sem deixar de lado a existência de suas inegáveis conquistas.


    REFERENCIAS

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    a. M.Sc. (médica psiquiatra contratada do Hospital de Clínicas de Porto Alegre) - Porto Alegre - RS - Brasil
    b. M.D. (professor adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, psicanalista e analista didata da SPPA)
    c. PhD (professor adjunto do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, psicanalista e analista didata da SPPA)

    Instituiçao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Medicina, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Centro de Estudos Luís Guedes.

    Correspondência:
    Stefania Pigatto Teche
    Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218
    90035-003 Porto Alegre, RS, Brasil
    stepigatto@gmail.com

    Submetido em 24/06/2013
    Devolvido aos autores em 16/08/2013
    Retorno dos autores em 18/09/2013
    Aceito em 18/09/2013

     

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