Rev. bras. psicoter. 2013; 15(2):25-38
Teche SP, Soares PFB, Eizirik CL. O funcionamento masoquista na relaçao terapêutica. Rev. bras. psicoter. 2013;15(2):25-38
Artigos Originais
O funcionamento masoquista na relaçao terapêutica
The masochist expressions in the therapeutic relationship
Stefania Pigatto Techea; Paulo Fernando Bittencourt Soaresb; Cláudio Laks Eizirikc
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Pacientes com funcionamento masoquista representam um dos desafios terapêuticos mais difíceis1. O comportamento masoquista pode dominar o campo analítico e causar forte resistência ao progresso do tratamento. Essa resistência pode aparecer tanto nas reaçoes transferenciais do paciente quanto nas reaçoes contratransferenciais e nos enactments do terapeuta. Durante a psicoterapia de orientaçao analítica o terapeuta é capaz de identificar o funcionamento masoquista em diferentes personalidades e patologias psiquiátricas. Meyers1 postulou que algum grau de masoquismo é universal e que o que difere entre as pessoas é o grau de comprometimento na adaptaçao de habilidades sociais. Kernberg2 já tinha essa ideia e defendia que existe um masoquismo considerado normal responsável pela integraçao das funçoes do superego.
Krafft-Ebing3 introduziu o conceito psicológico de masoquismo em 1895. Ele usou o nome do Conde Leopold Ritter von Sacher-Masoch (1836-1895) para designar uma perversao sexual na qual o prazer erótico era derivado da submissao passiva a um comportamento cruel e humilhante (um comportamento sádico). Com o Conde Masoch teria ocorrido uma relaçao desse tipo, pois, em seu romance A Vênus de peles (1870), ele descreve um dos personagens atingindo o gozo após ser surrado. O termo "sadismo" derivou do nome do aristocrata francês Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814). O Marquês de Sade foi um escritor libertino que costumava criar enredos teatrais nos quais os protagonistas eram maltratados com requintes de perversidade.
Freud expandiu a teorizaçao de Krafft-Ebing. Após vários escritos, em 1924, desenvolveu o texto O problema econômico do masoquismo4, no qual dividiu o masoquismo em três categorias e descreveu o conceito de masoquismo moral.
Freud, na época, expressou uma visao pessimista quanto ao tratamento de pacientes com características masoquistas. Comentou que esses casos apresentavam uma forma de resistência para a qual nossos meios de combate eram inadequados5.
Muitos autores concordam com que o comportamento masoquista pode dominar a transferência e, assim, ser um dos desafios terapêuticos mais difíceis. Os pacientes desenvolvem uma forte resistência, frequentemente na forma de reaçao terapêutica negativa1,6,7,8,9,10,11.
A relaçao analítica cria experiências corretivas que tornam o paciente apto para usá-las em sua vida. O terapeuta deve compreender os elementos projetivos e assimilar a transferência antes de usar essas informaçoes como interpretaçao12. Zeitner13 chamou a atençao para os enactments do terapeuta. Para Zeitner, o tratamento ocorre quando a dinâmica e a estrutura de caráter do paciente encontram a dinâmica e a estrutura de caráter do terapeuta, e, juntos, eles formam um conluio que determinará a técnica a ser usada e o resultado do tratamento.
O objetivo deste trabalho é mostrar as dificuldades na relaçao terapêutica em psicoterapia de orientaçao analítica com pacientes de funcionamento masoquista e revisar os cuidados técnicos que devem ser seguidos durante o tratamento.
DESENVOLVIMENTO
As primeiras referências ao masoquismo encontram-se em A interpretaçao dos sonhos (1900)14, obra na que Freud narrou o sonho de uma noiva e, pelas associaçoes da paciente, identificou nos seus pensamentos a "violência da defloraçao" e um traço masoquista de caráter. Esse traço, visto como impulso no contexto do sonho, foi articulado com a questao da sexualidade, da puniçao, da repetiçao e da inversao.
Depois, em Psicopatologia da vida cotidiana (1901)15 e em Fantasias histéricas e sua relaçao com a bissexualidade (1908)16,17, Freud, pela primeira vez, traçou um paralelo entre as fantasias sexuais histéricas de crueldade, os delírios dos paranoicos e as encenaçoes dos perversos para a satisfaçao de seus desejos sexuais.
A primeira descriçao detalhada de Freud sobre o masoquismo apareceu em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade18, no capítulo dedicado às aberraçoes sexuais. Freud conceituou sadismo e masoquismo como a tendência a causar dor ao objeto sexual ou a ser maltratado por ele, respectivamente, sendo esse par a mais frequente e a mais importante das perversoes sexuais.
Em 1914, Freud utilizou essa teoria em O homem dos lobos16,19, conforme citado: "No sadismo, ele se apegava firmemente à sua identificaçao mais antiga com o pai; no masoquismo, o pai era escolhido como objeto sexual".
Em 1919, Freud20 escreveu Uma criança é espancada e passou a investigar a relaçao da excitaçao sexual com o sentimento de culpa. A experiência de ser espancado seria a representaçao regressiva analsádica da fantasia de ser amado genitalmente pelo pai.
Em 1920, com Além do princípio do prazer, Freud21 detalhou a relaçao do sadismo com os componentes libidinais do instinto sexual. Descreveu a volta do instinto para o próprio ego como uma regressao do instinto e passou a considerar a existência de um masoquismo primário. Curioso com o tema, em 1924, Freud detalhou os fenômenos masoquistas em sua obra O problema econômico do masoquismo4 e, nela, dividiu o masoquismo em 3 categorias. O masoquismo feminino foi descrito como fantasias de masturbaçao com conteúdo manifesto de amordaçamentos, espancamentos, sujeira e mutilaçoes. Além disso, apresentava conteúdo de culpa por possuir significados de castraçao, cópula e parto. O masoquismo erógeno foi caracterizado pelo prazer derivado do sofrimento. Nele, o sofrimento e o desprazer também produziriam alguma quantidade de excitaçao sexual. O masoquismo moral se distanciou das perversoes sexuais para ser definido como um comportamento no que o que importava era o sofrimento em si, independentemente da sua origem.
Freud acreditava que o conteúdo oculto do masoquismo moral se originava após a superaçao e a dessexualizaçao do complexo de Édipo. Havia um retorno do sadismo contra a própria pessoa que gerava a puniçao e o castigo pela consciência de culpabilidade. Esta estava vinculada à masturbaçao infantil, aos desejos inconscientes de ser escolhido pelo pai, à consciência moral e ao medo da castraçao. O sentimento de culpabilidade seria despertado pela mae por ela ser um severo juiz que proíbe o desejo incestuoso da filha com o pai e a ameaça com a perda de seus órgaos genitais femininos. Para realizar o castigo, o masoquista agiria contra seu próprio bem, destruindo os horizontes que lhe sao oferecidos no mundo real. A revolta do sadismo ante esse comportamento se daria nos instintos, que impediriam o indivíduo de utilizar seus componentes agressivos para seu crescimento. No sadomasoquismo o superego demonstrava um sadismo que Freud descreveu como o lugar onde reina o instinto de morte. Freud postulou uma diferença entre o superego neurótico e o superego perverso. Para ele, o superego perverso possuía uma capacidade de destruiçao característica que poderia aparecer quando o paciente projetava um superego materno hostil e acusatório no terapeuta. O funcionamento masoquista estaria estreitamente ligado com a angústia de separaçao e o temor da perda do objeto, podendo resultar em luto e melancolia quando ocorria identificaçao com o objeto perdido22.
Nas suas recomendaçoes em Análise terminável e interminável (1937)16,23, Freud apontou a pulsao de morte vista no masoquismo como o grande obstáculo ao processo analítico: "Provisoriamente nos inclinamos diante do poder das forças contra as quais vemos naufragar nossos esforços. Mesmo exercer uma influência psíquica somente sobre o masoquismo constitui uma dura prova ao nosso poder". Nesse ensaio, Freud insistiu no papel do masoquismo na reaçao terapêutica negativa. Essas premissas foram a base para o desenvolvimento de novas teorias sobre o masoquismo.
Após Freud, novas teorias apontaram na estrutura básica do caráter masoquista uma desordem de ego e um distúrbio das relaçoes de objetos6,11,24,25. O masoquismo seria uma soluçao neurótica para o conflito infantil que surge da necessidade de obter o amor necessário de uma figura parental negligente, principalmente a mae, e estaria intimamente ligado à ferida narcísica de nao ser amado. O masoquista desloca para si a raiva destrutiva por nao ter se sentido objeto de investimento, nem libidinal, nem narcísico de nenhum dos pais. A tentativa de cura da ferida narcísica é submeter-se para, em fantasia, ter a recompensa da atençao tao almejada26. Acrescenta-se a essa teoria que o masoquismo representa uma organizaçao de caráter fixado no plano da separaçao-individuaçao. A individuaçao patológica ocorre quando pais de masoquistas criam seus filhos usando a projeçao, a identificaçao projetiva e a negaçao maciça. Usam a comunicaçao dupla, emitindo mensagens com partes contraditórias no conteúdo ostensivo e no conteúdo latente. Isso provoca na criança confusao, mágoa e dúvida em relaçao a si própria, o que prejudica sua capacidade de confiar em suas percepçoes. A criança introjeta sua imagem com os adjetivos desqualificatórios projetados pelos pais. Além de fixar essa autoimagem desvalorizada, esse processo intensifica a submissao à vontade da outra pessoa, gerando características masoquistas25.
Os significados do masoquismo sao multideterminados e servem para diferentes defesas e funçoes narcísicas, aparecendo em diferentes planos de desenvolvimento1. A seguir, apresentamos algumas funçoes do masoquismo conforme a sua estrutura teórica.
Masoquismo e culpa: segundo as premissas de Freud (1924), a dor e a humilhaçao inconscientes sao o pagamento para permitir a transgressao. A agressao do masoquista é direcionada para fora. Ele necessita derrotar a ele e ao terapeuta, pois crê que nao merece sentir prazer sem dor. No tratamento é necessário confrontar a busca do desprazer dentro e fora da transferência e/ou a busca consciente por algum prazer já falido. Também é necessário clarificar a projeçao do sadismo no mundo externo, que se expressa como uma forma de injustiça coletiva. Interpretar a motivaçao do senso inconsciente de culpa é fundamental para a reconstruçao de vivências passadas e para a transferência corrente. Um exemplo dentro das relaçoes de objeto ocorre quando a agressao pré-edípica contra a mae pelo desamparo e frustraçao é virada para o self do paciente e transformada em culpa.
Masoquismo e autoestima: é a funçao narcísica do masoquismo. Frente à inevitável frustraçao, desamparo e perda da onipotência mágica infantil, a criança tenta reparar essa injúria para sua autoestima afirmando algum senso de controle. Torna-se ativa ao invés de passiva, assume a responsabilidade por seu desapontamento, provoca rejeiçao e extrai alguns prazeres com a ideia de que ninguém a frustra, mas é ela quem se frustra. Há um orgulho em desfazer o desamparo e ficar no controle manipulando os outros com sadismo, culpa ou desamparo. Há um superego orgulhoso na habilidade de controle dos próprios instintos, no autoabnegar-se e controlar a dor. Há orgulho por ser uma vítima do destino. O paciente nao se sente como vítima impotente, mas usa seu senso de controle e entendimento para obter gratificaçao. Tecnicamente, isso requer a interpretaçao desses conteúdos na transferência e a reconstruçao das relaçoes objetais para que seja possível estabelecer o senso de autonomia.
O terapeuta, durante uma psicoterapia de orientaçao analítica, é capaz de identificar o funcionamento masoquista em diferentes personalidades e patologias psiquiátricas. Além das personalidades masoquistas, tais características de comportamento encontram-se diluídas entre as personalidades com características narcisistas, obsessivas, borderline, histéricas e dependentes, e também em patologias do eixo I, como a depressao maior e a distimia. A identificaçao do funcionamento masoquista é útil para que possamos trabalhar suas características peculiares e evitar a estagnaçao do processo terapêutico.
Os sinais característicos transmitidos pelos masoquistas e que podem nos ajudar no diagnóstico psicodinâmico em terapia de orientaçao analítica sao24:
- Uso e abuso do pedido de desculpas;
- Aceitaçao das premissas do outro como corretas, perdendo a capacidade de pensar por si próprio;
- Evitaçao de perguntas, pois a resposta é sentida como ameaçadora;
- Medo de assumir a responsabilidade por suas próprias decisoes;
- Uso corrente da fala tangencial e circunstancial, revelando-se excessivamente com o objetivo de procrastinar a solidao e preencher os silêncios que lhe parecem ameaçadores;
- Incapacidade de contra-atacar quando é preciso, submetendo-se à situaçao e permitindo que os outros determinem o rumo de suas coisas;
- Enfase nos próprios erros para desviar os julgamentos negativos;
- Rigidez de linguagem carregada de alternativas dualistas como "certo ou errado", nao encontrando um equilíbrio;
- Metamensagens transmitidas na linguagem corporal. O masoquista transforma sua raiva em mágoa, e o choro é a expressao disso; outro, rapidamente os destrói ou desvaloriza com observaçoes negativas;
- Negativismo: a mensagem masoquista é sempre uma expressao de impotência e uma súplica de perdao.
- Uma tendência a usar a introjeçao como meio de defesa;
- A falta de integraçao de bom e ruim dentro de sua estrutura própria;
- História de pais que usaram projeçao e identificaçao projetiva;
- Tendência a escolher parceiros que usam a projeçao e identificaçao projetiva;
- Grande medo de perda de objeto, ou perda do amor do objeto;
- Necessidade de sentir uma certa sensaçao de controle sobre seu destino (provocam a ofensa e puniçao esperada do outro para ter uma sensaçao de controle);
- Agressividade passiva ou obstinaçao teimosa exprimida num "sim, mas..." com um sentimento de uma semissubmissao;
- Assunçao de um papel de cuidador ou supercontrolador que estabelece uma posiçao de dominância passiva;
- Provocaçao sutil, dentro de outros, de lutas de poder e atuaçao da própria ambivalência e raiva masoquista;
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