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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(2):14-24



Artigos Originais

A hipermodernidade e a clínica psicanalítica*

Hypermodernity and the psychoanalytic clinic*

Pricilla Braga Laskoskia; Marina Bento Gastaudb; Julia Domingues Goic; Ana Margareth Siqueira Bassolsd; Diogo Machadoe; Camila Piva da Costaf; Mariana Torresg; Felipe Bauer Pinto da Costah; Cláudio Laks Eiziriki

Resumo

A partir do conceito de hipermodernidade proposto por Lipovetsky, discute-se acerca das possíveis repercussoes psíquicas dos movimentos e transformaçoes sociais identificados pelo filósofo, bem como sobre os desafios que essas mudanças propoem à psicanálise nos dias atuais. Compreender as vicissitudes da cultura em que o sujeito está inserido instrumentaliza o terapeuta para analisar, com seu paciente, a forma como ele integra as demandas coletivas e próprias do seu tempo com suas necessidades individuais. O paciente hipermoderno nos interroga acerca das condiçoes de intervençao psicanalítica possíveis nos dias de hoje. Suas queixas sao diferentes daquelas direcionadas a Freud. É, portanto, fundamental que psicoterapeutas estejam em contato com essas novas construçoes sociais e mantenham uma postura continente e nao apocalíptica.

Descritores: Psicoterapia; Psicanálise; Filosofia.

Abstract

From the hypermodernity concept proposed by Lipovetsky, some discussions can be placed on the possible psychological repercussion of movements and social transformations, identified by the philosopher, as well as, the challenges that they propose to psychoanalysis nowadays. Understanding the vicissitudes of the culture in which the subject is inserted, equips the therapist to analyze, together with his patient, the way how he integrates the collective and personal demands of his time to his individual needs. The hypermodern patient questions us regarding the possible psychoanalytic intervention conditions of our time. Their complaints are different to those directed at Freud. Therefore, it is vital that psychotherapists be in contact with these new social constructions and maintains a containing behavior which is not apocalyptic.

Keywords: Psychotherapy; Psychoanalysis; Philosophy.

 

 

INTRODUÇAO

Estamos vivendo os primeiros anos do século XXI e do III Milênio. Muito se tem discutido sobre a passagem do paradigma da modernidade para o paradigma da pós-modernidade, bem como sobre se ainda vivemos a modernidade tardia com suas diversas possibilidades de arranjos. Embora ainda seja bastante debatida a questao de como denominar essa época, há certo consenso quanto ao fato de que vivemos um momento de transformaçao de valores, de capitalismo avançado, de consumo desenfreado, globalizaçao, informatizaçao.

Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, a modernidade, antes limitada, hiperboliza-se, está consumada. Tudo é desmesurado e contraditório: essa é a sua tese central em "Os tempos hipermodernos"1. Segundo o autor, a passagem do mundo industrial (modernidade) para a globalizaçao provocou mudanças significativas tanto no âmbito coletivo quanto individual, culminando em uma espécie de desorientaçao, fruto da horizontalizaçao dos laços sociais. Se na modernidade a organizaçao social obedecia a uma ordem vertical em que as famílias e as empresas eram orientadas por uma figura superior - um pai ideal -, na globalizaçao os ideais pulverizaram-se, horizontalizaram-se e, assim, perderam a referência. E é a partir dessa ideia que Lipovetsky sustenta o que ele chama de hipermodernidade, que seria uma segunda modernidade, fruto do receio de um homem angustiado frente à liberdade de escolha que lhe foi oferecida.

Além de Lipovetsky, pensadores como Guy Debord2, Zygmunt Bauman3, Lyotard4, entre outros, também construíram, a partir de diferentes perspectivas, importantes entendimentos sobre o momento atual da sociedade ocidental. No recorte deste trabalho, entretanto, a teorizaçao de Lipovetsky foi priorizada para compreender e ilustrar os argumentos levantados.

Assim, com base nas contribuiçoes de Lipovetsky, empreenderemos uma tentativa de compreender o contexto no qual está inserido o paciente que nos procura para atendimento em psicoterapia psicanalítica. Além disso, discutiremos algumas possíveis repercussoes psíquicas dos movimentos e transformaçoes sociais identificados pelo autor, bem como os desafios que essas mudanças propoem à psicanálise nos dias atuais. Compreender as vicissitudes da cultura em que o sujeito está inserido instrumentaliza o terapeuta para analisar, com seu paciente, a forma como ele integra as demandas coletivas e próprias do seu tempo com suas necessidades individuais.


O "HIPER"

Gilles Lipovetsky5 sustenta que vivemos já há algum tempo a hipermodernidade, quando os paradoxos se multiplicam à vontade: a mitologia do progresso caduca, mas se acredita nos milagres da ciência; o presente domina, mas toldado de preocupaçoes com o futuro (de nossas carreiras, do planeta, etc.). A partir dos anos 1980, sob os efeitos do avanço da globalizaçao e das novas tecnologias da comunicaçao, adentramos na era do "hiper": o mercado, o indivíduo e o desenvolvimento técnico-científico, facetas que tanto caracterizaram a modernidade, sao intensificados, exponenciados. Falamos, entao, do hiperconsumo, do hiperindivíduo, da hipermodernidade.

Toda essa transformaçao se deu com a força da revoluçao do consumo e da comunicaçao de massa; tudo em intensidade (velocidade) e quantidade (volume) cada vez maiores. O hedonismo e a liberdade de escolha se tornaram propulsores dessa nova emancipaçao. E com o fim das grandes utopias, esse individualismo atingiu uma dimensao sem precedentes.


O HIPERCONSUMO

O consumo considerado como parâmetro de distinçao social, de prestígio e status, cede lugar a um novo estilo, permeado pelo hedonismo. Dessa nova perspectiva, o consumo assume novas funçoes, cada vez mais subjetivas. Desconectado das "lutas de classes", nao exprime mais a identidade econômica e social das pessoas. Os atos de compra, agora, traduzem, antes de tudo, as diferenças, os gostos particulares, as singularidades.6

Nao é mais o desejo de reconhecimento social o que rege a busca pelas marcas superiores, por exemplo. Agora, é um prazer narcísico de sentir-se diferenciado em relaçao à maioria, mas sem isso estar vinculado à necessidade de reconhecimento: a satisfaçao se dá de si para si mesmo. O consumo de um produto de marca nao se limita à esfera do hedonismo individualista. Ele pode ser pensado a partir de um aspecto mais abrangente, relacionado às novas inseguranças decorrentes da multiplicaçao dos referenciais. O que dependia de critérios externos, dados pelos estilos de vida comunitários, depende agora exclusivamente do indivíduo. Com isso, abre-se espaço para as dúvidas e inseguranças individuais decorrentes da perda dos referenciais até entao fornecidos pelas tradiçoes de classe. Assim, a marca significaria um farol para o indivíduo que naufraga, sem norte. Confuso perante as inúmeras possibilidades que se apresentam, a marca se oferece como certeza e, assim, tranquiliza o comprador, erigindo-se, entao, como elemento subjetivante.7


O HIPERINDIVIDUO E SUAS REPERCUSSOES CLINICAS

Se na modernidade o indivíduo já fora colocado como valor central, na era hipermoderna, ele passa a ser muito mais ativo e é levado a uma exacerbaçao pelo consumismo e por um certo relativismo moral e normativo. Vive um individualismo narcisista: o privado se sobrepoe ao público, e o bem-estar individual, ao bem-estar social. Nesse processo, há uma ruptura com a rigidez disciplinar das perspectivas totalizantes das posturas pré-moderna e moderna, para se estabelecer o pleno direito do indivíduo, livre daquelas balizas, de gozar a vida sem restriçoes ou entraves.8

O vertiginoso desenvolvimento da tecnologia digital e da comunicaçao, as trocas em tempo real e a comunicaçao imediata e simultânea geram uma aceleraçao e uma intensificaçao do tempo, produzindo indivíduos cada vez mais reativos, volúveis. Prima-se pelo movimento, e o ritmo é deveras acelerado. Para acompanhá-lo, somente com muita flexibilidade e fluidez.

Internet banda larga, redes sociais, aparelhos celulares cada vez mais complexos e velozes, iPods, iPads: toda essa tecnologia inevitavelmente chega aos consultórios de psicoterapia e se apresenta como um novo elemento, permeando a relaçao entre terapeutas e pacientes e nos convocando a conferir-lhe novos significados. Pode-se afirmar que se procedeu a uma troca: antes eram cartas, hoje sao e-mails; mas é indiscutível que tomamos contato com algo nunca antes experimentado: a internet, essa rede que possibilita a comunicaçao instantânea e nos exige uma resposta imediata, sem tempo para pensarmos. Veículo de resistências, ou uma nova forma de comunicaçao?

O paciente L., de 40 anos, mostrava-se com rigidez afetiva e embotamento em suas sessoes de psicoterapia psicanalítica. Em determinada sessao, o paciente atende à chamada telefônica da filha e fala com afeto transbordante, mostrando-se carinhoso, acolhedor, conectado afetivamente com a menina. Uma ligaçao no celular atendida durante a sessao de psicoterapia pode, talvez, dizer muito mais sobre o paciente do que seu discurso manifesto. É possível, dessa forma, entrar em contato com um aspecto desconhecido do paciente, que, através daquele instrumento, encontra um meio de se colocar em cena. A paciente L., 26 anos, por exemplo, ao mesmo tempo em que diz sentir-se vigiada e incapaz de desconectar-se do mundo virtual, utiliza a rede social Facebook para contatar um psicoterapeuta. Após estabelecer um primeiro contato virtual, pode procurá-lo pessoalmente em seu consultório e iniciar sua psicoterapia. Nesse caso, o mesmo instrumento apresentou-lhe duas faces distintas: por um lado, "aprisionando-a" e, por outro, possibilitando seu acesso à ajuda. A única certeza é a de que nada podemos afirmar ainda sobre essa nova tecnologia; trata-se de um território virgem, uma nova fronteira.

Imerso nesse mar de aparentes contradiçoes, o hiperindivíduo dá sinais de que algo nao vai bem. Talvez possamos pensar que adentramos em um período em que nao é mais possível falar de identidades. A instância legitimadora de formaçao de identidade do indivíduo nao é outra senao ele mesmo e as opçoes de que dispoe. Sao "identidades" fluidas, circunstanciais; passamos, entao, a ser reconhecidos pela nossa performance.

Esvaziado, o indivíduo projeta no mundo das coisas e dos objetos a soluçao para o enigma fundamental de sua existência. Isso fica claramente perceptível se tomarmos o fenômeno do consumo como exemplo: comprar pode ser uma tentativa de preencher um vazio interno e nao apenas com objetos, mas especialmente com o que eles representam. Traduz uma busca por entender-se desde fora, encontrar-se mimeticamente no mundo das imagens, a partir das coisas externas.

Privado do tempo, o hiperindivíduo nao pode provar outra realidade senao a das sensaçoes. Segundo Lipovetsky9, na hipermodernidade, a superficialidade dos indivíduos é tal que a pele é o lugar de todas as sensaçoes, sendo que o corpo - subjetivado - e a aparência sao cruciais na formaçao da identidade, quando nao se confundem com ela. O sentido dá lugar à sensaçao, como o pensamento à imagem. E, assim, o homem contemporâneo parece condenado à superficialidade e à decepçao.

Uma vinheta clínica ilustra a vivência cotidiana dessa conjuntura: a paciente M., 44 anos, busca atendimento em psicoterapia psicanalítica alegando uma imensa decepçao com a pessoa que sua filha, de 13 anos, está se tornando. Percebe a filha cada vez mais "fútil", preocupada exclusivamente com sua aparência e suas posses. M. é uma mulher muito inteligente, trabalha desde a adolescência, tem diversas pós-graduaçoes e veste-se de forma casual, nao é vaidosa. A filha, ao contrário, olha-se constantemente no espelho, passa os dias e noites conectada às redes sociais virtuais no seu iPad, interessa-se apenas por cabelo, roupas, unha e pele, em detrimento dos conteúdos escolares. A mae entende que essas características sao próprias da idade e torce para que a menina "supere" esses comportamentos o quanto antes. Ao mesmo tempo, percebe que teve uma adolescência muito diferente da filha e tende a valorizar a forma como viveu tal idade em detrimento das vivências atuais que a menina experimenta. M. parece ciente de que muitos dos seus conflitos fazem parte da fase evolutiva em que se encontra: está precisando aprender a ser mae de uma adolescente, o que sempre traz a angústia referente à passagem do tempo, ao crescimento dos filhos e a confrontaçao permanente em relaçao ao abandono de suas expectativas quanto à filha. Entretanto, debate-se ainda com a dificuldade de aceitar em sua própria filha comportamentos tao sintônicos para a sociedade contemporânea, mas tao combatidos por ela. Trata-se, como também é próprio dessa fase evolutiva, de uma batalha geracional, de uma dificuldade em elaborar a ferida narcísica provocada por essa decepçao ("ela nao é igual a mim e aos meus semelhantes") e integrar a filha idealizada com a menina hipermoderna que se apresenta. Tal conflito geracional, inerente, parece sofrer a interferência dos tempos atuais. A filha pede para os pais um iPhone de presente. A mae nega, alegando que precisa deixar espaço para que a menina desenvolva ambiçoes conquistadas com seu próprio trabalho, com seu próprio crescimento. M. exaspera-se com as dificuldades escolares que sua filha vem enfrentando e pergunta à terapeuta se deve sucumbir ao desejo da menina e premiá-la com um iPhone caso ela consiga ser aprovada. Pensa que seria uma forma de motivá-la a estudar, de tentar entrar em contato com a filha, de falar com a filha no idioma que a menina conhece. Por outro lado, reconhece que estaria premiando a filha com algo com o que nao concorda, pois estudar deveria ser uma obrigaçao. Tem medo de incentivar um comportamento, em sua opiniao, sintomático, sucumbindo às pressoes que a atualidade impoe.

O paciente contemporâneo impoe para a psicanálise o mesmo drama vivido por essa mae: precisamos aceitar a passagem do tempo, estar abertos à novidade radical que constantemente se apresenta, aceitar as eventuais decepçoes e frustraçoes com a sociedade atual e, ao mesmo tempo, precisamos reconhecer o sofrimento que emerge dessa nova forma de subjetivaçao, identificar os eventuais sintomas que daí advêm e possibilitar constantes reflexoes sobre essas diferenças geracionais (a psicanálise contemporânea versus a psicanálise vitoriana). E é, entao, nesse contexto que o hiperindivíduo se depara com a questao inevitável: mas como ser feliz? E principalmente, como ser feliz hoje? Para ser feliz hoje, temos de lidar com os ideais (magreza, beleza, velocidade), temos de lidar com o que a sociedade deseja. É difícil ser feliz hoje, em uma sociedade que nos estimula o tempo todo a desejar aquilo que por definiçao nao podemos ter, ou seja, tudo.


DESEJO E FRUSTRAÇAO: A DECEPÇAO

Na busca pela felicidade, Lipovetsky10 afirma que desejo e decepçao andam juntos. A decepçao é proporcional ao desejo e está presente tanto na esfera da vida pública quanto na da vida privada. A desregulamentaçao e o enfraquecimento da religiao, o ceticismo quanto ao futuro, o trabalho como forma de prazer e o ensino sao atualmente fenômenos frustrantes da vida pública destacados pelo autor. Já na vida privada, o amor, a paixao, o sexo, o casamento, os filhos, o divórcio, os valores e o consumo também sao objetos de desilusao. A equaçao é simples: quanto mais liberdade, mais decepçao. A autonomia parece ter alcançado estatuto de generalizaçao absoluta, como uma espécie de imperativo ao qual todos devem estar referidos. Parece haver, em um certo sentido, uma idealizaçao da autonomia como uma independência total em relaçao às regras, valores, tradiçao.

Atualmente, vemos uma sociedade que se torna mais porosa, onde os indivíduos buscam realizar qualquer tipo de fantasia em busca de seu prazer imediato e total. Ao contrário da ideia de contençao que se percebia em períodos anteriores, evidenciada, por exemplo, na intensa repressao dos impulsos sexuais, nossa sociedade, de maneira geral, suscita o gozo, pede o gozo. Todos nós somos impelidos à procura do gozo, que é visto como uma realizaçao da própria idiossincrasia. Somos todos convidados a sermos autônomos e, por isso, sermos vencedores, realizadores. Devemos buscar sempre alcançar os objetivos que nos interessam e aquilo que representaria nossa felicidade, mas, evidentemente, estamos sempre nos sentindo aquém da realizaçao desse mandado social.

Os ideais, quando sedimentados no presente e no imediatismo, acabam por substituir o objeto pela sua imagem, o mundo por uma aparência de mundo. Buscamos uma resposta imediata, pronta e certeira, que nao nos exija um esforço de interpretaçao, de reflexao. Passamos a buscar externamente aquilo que nao encontramos mais na esfera interior.

A depressao, que enche os consultórios hoje em dia, poderia ser entendida como o fracasso da autonomia. Se a perversao pode ser entendida como uma espécie de autonomia elevada ao delírio, a depressao seria como um sintoma generalizado de tal fracasso. Ademais, o paciente, revoltado com sua tristeza, busca nos consultórios de psicoterapia a felicidade prometida e injustamente nao concedida. O terapeuta, entao, é convidado a desempenhar o papel daquele que, enfim, fornecerá ao sujeito o que lhe falta. "Como eu seria feliz se eu fosse feliz", comentou Woody Allen; estamos separados da felicidade pela própria esperança que a persegue11. Vemos florescer as mais variadas práticas que prometem devolver a felicidade supostamente prometida a todos os indivíduos, desde as mais "científicas" até as relacionadas a crenças religiosas. Cabe ao psicoterapeuta, portanto, nao aceitar esse convite sedutor e trabalhar no sentido de criar ferramentas para que o paciente possa tolerar e enfrentar suas decepçoes, dissabores e infelicidade.

Deslocado da cadeia de filiaçao, órfao de um saber que o preceda sob a forma de cultura, imerso no oceano dos desejos insaciáveis e, assim, condenado à frustraçao, o hiperindivíduo percebe-se profundamente solitário em um mundo de formas inexatas e sem nitidez.


DESAFIOS A PSICANALISE

O exercício diário da clínica psicoterápica psicanalítica nos remete a uma questao importante: os pacientes de hoje sao bastante diferentes daqueles do início do século passado. Poderíamos pensar que nao há uma verdadeira mudança nas estruturas clínicas e que, nesse caso, as diferenças observadas estao relacionadas meramente à aparência das manifestaçoes. Os mesmos conflitos infantis, comuns e atemporais, estariam apenas reconfigurados, rearranjados. Assim, ao invés de novas patologias, consideraríamos que tais pacientes contemporâneos seriam detentores de novos sintomas. Por outro lado, poderíamos ainda supor que estamos falando, de fato, de novas patologias, consequências das transformaçoes socioeconômicas, da revoluçao tecnológica, de mudanças de sistemas simbólicos, de crenças e, inclusive, das relaçoes humanas. Em tais pacientes, sao condutas ou sintomas somáticos que substituem a interpretaçao e a produçao de sentidos. Referimo-nos, fundamentalmente, a pacientes com sérias inibiçoes da vida psíquica associadas a uma deficiência importante de representaçao psíquica e à inabilidade para simbolizar experiências significantes. Em outras palavras, parece-nos que, nesses pacientes, a dor da inscriçao da vivência dá lugar à angústia e o vazio se apresenta onde se esperaria encontrar uma representaçao.

Percebe-se que novas nosografias surgem em uma tentativa de dar conta desse fenômeno e, assim, deparamo-nos com diversas siglas que se referem a disfunçoes das mais variadas formas, adiçoes, pânico, desvalimento, depressoes maiores e menores, transtornos alimentares, da obesidade à anorexia. Talvez poderíamos utilizar uma denominaçao mais abrangente, contemplando um possível substrato comum a todas essas modalidades: patologias do excesso; excesso de consumo, de regozijo, mas também excesso de pressoes, de solicitaçoes, de estresse, o que resulta em uma hiperatividade, uma busca de prazer sem limites, no consumo, nas drogas, no sexo, ou nos esportes radicais, de uma forma extrema que envolve riscos.

Segundo a psicanalista Julia Kristeva12, o indivíduo contemporâneo está perdendo sua alma. Imersos no frenesi da busca incessante e desenfreada pela satisfaçao plena, ocupados em ganhar mais para poder gastar mais e ainda estressados pela constante demanda de mais velocidade, os homens e mulheres nao dispoem do tempo nem do espaço necessários para representarem suas experiências e, assim, construírem o que chamamos de vida psíquica. E, evidentemente, eles nao sabem disso, pois é justamente o aparelho psíquico, neste caso atrofiado, o possível instrumento de que disporiam para empreender os registros de tais representaçoes carregadas de significados para os sujeitos.

Kristeva12 define essas patologias da seguinte forma: "As novas doenças da alma sao dificuldades ou incapacidades de representaçao psíquica que chegam a destruir o espaço psíquico". Em seguida, ela se indaga e nos indaga: "Renovar a gramática e a retórica, fazer mais complexo o estilo daquele ou daquela que solicita falar conosco, porque já nao agüenta mais nao falar e nao ser escutado, nao é o renascimento, a nova psique que a psicanálise propoe-se a descobrir?" (p. 16).

Por outro lado, a psicanalista e historiadora francesa Elisabeth Roudinesco13 afirma categoricamente que a depressao é a forma pela qual se dá a manifestaçao atual do sofrimento psíquico. A pensadora parece percorrer alguns dos caminhos também propostos por Lipovetsky ao afirmar sua crença de que a sociedade contemporânea parece querer banir de seu horizonte a experiência do infortúnio, da infelicidade, adotando, assim, uma postura evitativa. Dessa forma, a concepçao freudiana de um sujeito atormentado por suas pulsoes, angustiado e culpado, dá lugar à de um indivíduo fadigado, enfraquecido e, nesse sentido, deprimido, que se mostra mais empenhado em "retirar de si a essência de todo conflito" (p. 19).

Ainda nessa linha, Maria Rita Kehl14 entende que a depressao é o sintoma social da contemporaneidade, pois marca um desacordo com a lógica da velocidade, da euforia e do consumo generalizado. Considerados uma ameaça, os depressivos sentem na pele o desprestígio social de sua condiçao: muitas vezes, simples manifestaçoes de tristeza parecem intoleráveis a pacientes e terapeutas, sendo entendidas (e medicadas) como depressoes graves. Para uma sociedade que apregoa a euforia e o bem-estar, nao há espaço nem tempo para se experimentar as vicissitudes da dor de viver e, a partir daí, construírem-se novos registros e referências.

De qualquer forma, o paciente hipermoderno nos interroga acerca das condiçoes de intervençao psicanalítica possíveis nos dias de hoje. Suas queixas sao diferentes daquelas direcionadas a Freud. As questoes relativas à solidao, às adiçoes, ao pânico, já mencionadas anteriormente, indicam-nos uma vinculaçao a fenômenos sociais inexistentes no início do século passado. No entanto, essa constataçao bastaria para fundamentar a necessidade de utilizarmos um instrumental diferente na abordagem das questoes atuais? Por instrumental, entendamos o corpo teórico e técnico da psicanálise clássica.

Será que pressupostos da técnica psicanalítica como os da associaçao livre, várias sessoes semanais, assim como o conceito de Bion de "capacidade negativa", suportarao e nao sucumbirao às pressoes do social? Será possível para o paciente hipermoderno tolerar a dúvida, a espera e a nao promessa de cura do tratamento psicoterápico psicanalítico? Ou seja, como viabilizar tratamentos psicanalíticos que produzam alento ao indivíduo hipermoderno, mas que nao estejam na contracorrente dos tempos contemporâneos? Deveria a psicanálise, assim como a mae da paciente adolescente, ceder às pressoes atuais e sociais na tentativa de encontrar uma forma de comunicaçao com esses sujeitos?

Pensar a subjetividade a partir de sua dimensao processual, considerada como expressao da relaçao "humano-social", que se forma e se constitui de modo intrínseco e dinâmico, é uma questao crucial para a psicanálise na atualidade.15 Na contracorrente dos movimentos ditos hipermodernos, a psicanálise propoe justamente uma pausa, uma vírgula, no frenético discurso da velocidade e do imediatismo. Os excessos que acometem o hiperindivíduo, discutidos anteriormente, remetem-nos ao que Saramago16 denominou "cegueira branca": tamanha é a intensidade de luz, numa analogia ao excesso de informaçao, de possibilidades, de estímulos disponíveis hoje em dia, que ela acaba por ofuscar a visao daquele que a consome.

Estar atento às transformaçoes e aos movimentos sociais, bem como conhecer essa nova linguagem, sem dúvida, ajuda a compreender melhor o paciente que nos procura sem, muitas vezes, dar-se conta do que de fato está buscando, mas com a certeza de que sofre. É fundamental que nós, psicoterapeutas, estejamos em contato com essas novas construçoes sociais e mantenhamos uma postura continente e nao apocalíptica, sem, no entanto, abandonarmos a crítica e a reflexao.17


CONSIDERAÇOES FINAIS

Indiscutivelmente, podemos identificar diversas mudanças significativas no modus vivendi do ser humano na atualidade. Se as considerarmos dentro de um mesmo contexto, tais mudanças revelam que estamos em um processo de dupla transformaçao: social e de identidade individual.

O homem hipermoderno é mais responsável pela sua própria existência, tem menos proteçao coletiva, está mais entregue a si mesmo, o que implica ter de buscar mais a si e se auto(re)inventar. Assim, está mais frágil.

Talvez possamos nos referir ao hiperindivíduo também com a expressao "homem sem norte", habitante de uma nova era: globalizada, pós-moderna, hipermoderna; uma nova era diferente da anterior por nao ser prioritariamente "pai-orientada". Todavia, sabemos que a forma de uma época só se torna visível quando ela desaparece; seus contornos se tornam nítidos quando nos afastamos um pouco, percebendo, assim, seus contrastes e limites de forma mais precisa. Desse modo, caberia ao psicoterapeuta/psicanalista adotar a perspectiva de poder traçar um desenho dos tempos atuais com o cuidado de nao cair na admiraçao ou na aversao pelo objeto. Afinal, trata-se de algo que se encontra em construçao, em movimento, e no qual encontramo-nos envolvidos, submersos em maior ou menor profundidade.

Mais do que respostas, buscamos trazer à cena interrogaçoes, inquietaçoes, sob a forma de uma dentre as diversas possibilidades de leitura dos temas em questao. O assunto é deveras rico e, de maneira alguma, esgota-se nos limites do presente trabalho.


REFERENCIAS

1. Lipovetsky G. Os tempos hipermodernos. Sao Paulo: Barcarolla; 2004.

2. Debord G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; 1997.

3. Bauman Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2001.

4. Lyotard J. A condiçao pós-moderna. Sao Paulo: Jose Olympio Editora; 2010.

5. Lipovetsky G. A felicidade paradoxal. Sao Paulo: Companhia das Letras; 2007.

6. Lipovetsky G. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina; 2004.

7. Lipovetsky G. O Império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Sao Paulo: Companhia das Letras; 2005.

8. Lipovetsky G. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole; 2005.

9. Lipovetsky G. A era do vazio. Lisboa: Antropos; 1989.

10. Lipovetsky G. A sociedade da decepçao. Barueri: Manole; 2007.

11. Comte-Sponville A. A felicidade, desesperadamente. Sao Paulo: Martins Fontes; 2001.

12. Kristeva J. As Novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco; 2002.

13. Roudinesco E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2000.

14. Kehl MR. O Tempo e o cao. Sao Paulo: Boitempo; 2009.

15. Kehl MR. Sobre ética e psicanálise. Sao Paulo: Companhia das Letras; 2005.

16. Saramago J. Ensaio sobre a cegueira. Sao Paulo: Companhia das Letras; 2001.

17. Eizirik CL. Psicanálise e cultura: alguns desafios contemporâneos. The International Journal of Psycho-Analysis. 1997;78(4):789-800.









a. Mestre em Filosofia - (psicóloga, doutoranda em Psiquiatria pela UFRGS) - Porto Alegre - RS - Brasil
b. Doutora em Psiquiatria - (psicóloga)
c. Mestre em Psiquiatria - (psiquiatra)
d. Mestre em Psiquiatria - (psicanalista, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, doutoranda em Psiquiatria pela UFRGS)
e. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica - (psiquiatra, mestrando em Psiquiatria pela UFRGS)
f. Mestre em Psiquiatria - (psicóloga)
g. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica - (psiquiatra)
h. Psiquiatra - (mestrando em Psiquiatria pela UFRGS)
i. Doutor em Psiquiatria - (psicanalista, professor do Programa de Pós-Graduaçao em Psiquiatria da UFRGS)

Instituiçao: Grupo de Pesquisa em Psicoterapia Psicanalítica vinculado ao Programa de Pós-Graduaçao em Ciências Médicas - Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Correspondência
Rua Mostardeiro, 333/812 - Moinhos de Vento
Porto Alegre, RS. 90430-001
(51) 9628 2790
pricillab@hotmail.com

Submetido em 12/06/2013
Devolvido aos autores em 26/08/2013
Retorno dos autores em 14/09/2013
Aceito em 18/09/2013

*Parte deste artigo compoe a dissertaçao de mestrado da primeira autora, intitulada "O processo da hipermodernidade" e defendida em 30 de setembro de 2010 junto ao Programa de Pós-Graduaçao em Filosofia da PUCRS.
PUCRS.

 

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