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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):105-109



Resenha de Filme

"O lado bom da vida": um olhar psicanalítico

Silver Linings Playbook - a psychoanalytical view

Patrícia Fabrício Lago

 

 

"Está brincando comigo? Domingos? Amo domingos. Vivo pelos domingos. A família toda reunida. Mamae faz bracciolas. Papai coloca a camiseta do time, e todos assistimos ao jogo. Sim, me enlouquece..."


A fala de Pat Solitano Jr., ao iniciar o filme, impacta-nos pela confusao em que ele se encontra. Como assim? Entao ele ama os domingos que o enlouquecem? O protagonista de "O lado bom da vida" parece perceber o caráter contraditório de suas palavras e acrescenta, como tentando dar sentido ao paradoxo: os domingos eram bons, ruim era ele próprio;

"[...] E, sim, eu era negativo. Você nem sabia que eu a amava, Nikki. Mas eu a amava. Eu só nao dava valor para isso, ou para você, antes. E perdi tudo isso. Eu estraguei tudo. [...] Mas estou melhor agora."


Pat sente que destruiu tudo o de valor que tinha. Está saindo de uma internaçao psiquiátrica com diagnóstico de transtorno de humor bipolar, seu casamento está desfeito e seu emprego, perdido. Mas ele sai decidido a recuperar o que perdeu. Tenciona "pegar toda essa negatividade e usar como combustível para encontrar o lado bom da vida!". Nos limites desse texto, pretendo iluminar dramas humanos ali encenados com um olhar psicanalítico; um olhar entre tantos possíveis. Enfocarei o vértice das insuficiências simbólicas e da intolerância à dor mental (Bion, Ferro, Winnicott, Bollas), mas também as questoes ligadas ao processamento do Édipo (Freud).

Pat, interpretado por Bradley Cooper, é apresentado para nós nao pelo que ele é, mas pelo que perdeu. Retirado do hospital contra a indicaçao médica, é nítido o temor da família e dos demais quanto ao que ele possa fazer. Há ordens judiciais restritivas que o impedem de aproximar-se da ex-esposa, da casa onde morava, da escola onde trabalhava. Mas, o que terá feito Pat tornar-se tao agressivo ao ponto de justificar tais restriçoes?

Vejamos o fator desencadeante da crise:

"Voltei cedo do trabalho, o que nunca faço. [...] Chego em casa e está tocando a música do meu casamento. [...] Estava tocando a música do meu casamento, mas nao achei nada demais. O que é estranho, pois deveria. [Pat percebe que algo interferia com sua percepçao.] Entro pela porta e vejo roupas de baixo, roupas jogadas e a calça de um homem com o cinto. Olho para baixo e vejo a calcinha da minha mulher no chao. Olho para cima e a vejo no chuveiro, nua. E penso, que legal [!!!], vou entrar no chuveiro e talvez nós transemos, o que nao ocorre há tempo. Puxo a cortina e lá está o professor de história. [...] Ele me disse: 'seria melhor se você fosse embora'."


Pat, entao, espanca o homem, bem mais velho, deixando-o quase à morte, o que desencadeia as perdas referidas.

Vemos, assim, que Pat vinha fazendo uso maciço de mecanismos de defesa para lidar com a realidade. A possibilidade de apreender e estar em contato com a realidade psíquica depende da capacidade de tolerar a dor resultante desse contato. É o que Bion1 expressa pela relaçao continente-contido, em que as capacidades de continência da mente sao contrastadas com as experiências emocionais - o contido - a serem processadas ou evadidas.

Ferro2 assinala que uma das maiores dificuldades da espécie humana está em poder viver as emoçoes. É pelo sonho que experiências emocionais brutas (elementos â) sao transformadas em experiência emocional simbólica (elementos á).3,4 Evitar as emoçoes, ao invés de vivê-las, é o recurso da mente insuficiente. Resta a possibilidade de evacuá-las, o que pode tomar a forma de descarga violenta, como ilustra a reaçao de Pat. Nao encontrando em si próprio, nem em outro, possibilidade de contençao, Pat procurou negar as percepçoes e evitar as emoçoes decorrentes. Mas o que é negado - repudiado, no dizer de Freud5 - retorna na forma de delírios.

Assim, uma semana antes do flagrante, Pat informara à polícia que "minha esposa e o professor de história tramavam contra mim ao desviar dinheiro da escola. O que nao era verdade. Foi um delírio". Sim, foi um delírio, e Pat deseja que tal produçao de sua mente decorra apenas de sua doença. Entretanto, segundo Freud5, "a formaçao delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstruçao." (p. 94-5). Pela projeçao, "aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora" (p. 95). Quer dizer, o delírio produzido por Pat reapresentou a ele aspectos da realidade anteriormente repudiados. Sim, havia uma associaçao oculta entre sua esposa e o professor de história. Algo o fez voltar para casa mais cedo naquele dia.

Mas, quem é Pat e como terá chegado a isso? Pat era professor substituto de História na escola onde também sua ex-esposa e o amante trabalhavam. É interessante essa ideia de "substituto'". Será que Pat, entao, nao concluiu seu desenvolvimento emocional, nao resolveu seu Édipo de forma a vir a encontrar um lugar próprio? Permaneceria ele funcionando em um papel infantil, de substituto do pai edípico junto à mulher/mae de quem ele nao pode, portanto, ter a posse plena?

Na relaçao familiar que vai se descortinando, há diversas alusoes a conluios e alianças, ora entre mae e filho, ora entre ele e o pai. Pat fora retirado do hospital pela mae, sem que seu pai soubesse e contra a indicaçao médica (representante paterno/lei). A mae (Jacki Weaver) conta para o filho um segredo do pai (Robert DeNiro), que busca resolver suas dificuldades financeiras jogando e envolve o filho no seu sistema obsessivo-compulsivo, responsabilizando-o pelo resultado dos jogos. O pai fora expulso dos estádios por brigas. Pat diz: "Meu pai é o cara explosivo, nao eu". Emerge, assim, uma confusao pai-filho: o que é do pai, o que é do filho?

Dessa forma, Pat nao parece ter um papel próprio em sua vida. Segue refém dos vínculos com os objetos originais. Sim, os domingos em família enlouquecem Pat, mas ele nao pode pensá-los, modificá-los, ou sequer recusá-los. Pode apenas assumir a culpa, caminho, aliás, sinalizado pelo pai: "O que você fez? Que merda você fez? Está tudo fodido. Estou arruinado. Você é um perdedor e arruinou tudo!" Quem é o perdedor? O pai? O filho?

Winnicott6 descreve a necessidade do adolescente de "assassinar" os pais, para o que é necessária a sobrevivência do objeto. Segue-se uma nova organizaçao no self, um reordenamento identificatório.7 O pai excessivamente agressivo e simultaneamente fraco teria interferido com a possibilidade de Pat viver seu confronto geracional?7 Nao tendo havido assassinato parental, Pat mostra-se identificado com o pai e submetido a ele.

Mas é entao que Tiffany (Jennifer Lawrence) entra em cena, evocando o que Bollas8 chamou de "objeto transformacional", um objeto que porta a promessa de transformaçao do sujeito.

Tiffany nao rechaça, nao critica, mas reconhece ou espelha as necessidades de Pat. Esse processo de identificaçao vai dando lugar a uma espécie de aposta antecipada de Tiffany na capacidade de vir a ser de Pat, uma confiança nos recursos potenciais dele. Ela o convoca libidinalmente, atribui-lhe um papel e estabelece uma espécie de contrato, para o qual provê também um "setting" - seu estúdio de dança - onde a maior parte das trocas entre eles ocorrerao. É um espaço privado onde desenvolverao uma tarefa partilhada.9 Ela se oferece, ainda, como um objeto transferencial: "caminha para mim 'como se' eu fosse a Nikki".

Segundo Winnicott10, a responsividade recíproca, os ritmos compartilhados, seria a base da comunicaçao primitiva. É assim, pela dança, que eles vao ajustando seus ritmos e negociando temas como o da confiabilidade mútua. Em torno de Tiffany é representado e explicitado o conflito entre Pat e seus pais. Ela exige que ele "cumpra com suas combinaçoes", o que implica deixar de estar à disposiçao do pai para o papel que ele lhe atribui. É também Tiffany quem, by proxy, enfrenta as figuras parentais de Pat, representando, talvez, a possibilidade potencial de que ele próprio faça sua confrontaçao geracional.

É em uma competiçao de dança que a trama se resolve. É uma dupla aposta. O futuro financeiro do pai e também a vida de Pat estao em jogo. Tolerando o contato com a realidade e as emoçoes envolvidas, ele assume um papel ativo ao retomar sua parceira de outro, investe nas suas funçoes e faz a sua escolha, realista e a partir do seu desejo. É uma comédia romântica, há um final feliz: Tiffany e Pat juntos, como um casal; os domingos em família nao mais enlouquecedores.

Pode-se pensar que, durante a lenta busca pela sincronia em seus movimentos, estabeleceu-se entre Tiffany e Pat um tipo de relaçao que funcionou, como sugere Roussillon11 referindo-se ao enquadre analítico, como "lei" instauradora de um processo de elaboraçao. Trata-se de um encontro mediado por um contrato simbólico que exerceu uma coerçao sobre ambos, em relaçao às atuaçoes sexuais, para ela, e à busca imediata de Nikki, para ele. Esse contrato portava, também, os limites necessários ao trabalho de luto e de simbolizaçao, limites nas suas formas e duraçao, alternando, de maneira regular, presença atenta e reflexiva, ausência e solidao na presença do outro. Pat, com o auxílio de um objeto transformacional, pôde entao "alfabetizar"12 protoemoçoes, elaborar ansiedades e conflitos, deixar de ser um "substituto".


REFERENCIAS:

1. Bion, W.R. Ataques à ligaçao. (1959) In: Estudos psicanalíticos revisitados. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

2. Ferro, A. Evitar as emoçoes, viver as emoçoes. Porto Alegre: Artmed, 2011.

3. Bion, W.R. (1962) Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1963.

4. Rocha Barros, E.M. (2005) Conceitos psicanalíticos fundamentais na escola das relaçoes de objeto. In: Eizirik, C.L.; Aguiar, R.W. e Schestatsky, S.S. Psicoterapia de Orientaçao Analítica - fundamentos teóricos e clínicos. 2ª. Ed. Artmed. Porto Alegre, cap. 7, p.96-112.

5. Freud S. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides) (1911) In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1969, v 12, p.15-108.

6. Winnicott, D. W. (1975) Conceitos contemporâneos do desenvolvimento adolescente e suas implicaçoes para a educaçao superior. In: ______ O brincar e a realidade. (p.195)

7. Kancyper, L. Confrontaçao de geraçoes. Sao Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

8. Bollas, C. (1979) The Transformational Object. Intern.Journ.ofPsycho-Analysis, 60:97-107.

9. Figueiredo LC, (2011) Cuidado e saúde: uma visao integrada. ALTER - Revista de Estudos Psicanalíticos, v.29(2)11-29.
10. Winnicott, D. W. (1969) A experiência mae-bebê de mutualidade. In: Exploraçoes Psicanalíticas D.W. Winnicott. Porto Alegre: Artmed, 2005.

11. Roussillon, R. A "linguagem" do enquadre e a transferência sobre o enquadre. Colóquio da Sociedade Psicanalítica de Paris - 80º aniversário (Mutualité) Paris,18.nov.2006. Traduçao Ester Litvin. http://ebookbrowse.com/a-linguagem-do-enquadre-e-a-transfer%C3%AAncia-sobre-o-enquadre-docd137161354.

12. Ferro, A. (1997) A técnica da psicanálise infantil - A criança e o analista: da relaçao ao campo emocional. Rio de Janeiro: Imago, 1995.










Médica psiquiatra pela UFRGS. Professora e supervisora dos cursos de Especializaçao e Extensao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luis Guedes - CELG/Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - FAMED/UFRGS. Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

 

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