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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):93-104



Artigos Originais

Primeiros Socorros Psicológicos: relato de intervençao em crise em Santa Maria

Psychological First Aid: Report of Crisis Intervention in Santa Maria

Thiago Loreto Garcia da Silva*; Patricia Gaspar Mello**; Karine Aline Laini Silveira***; Laura Wolffenbüttel****; Beatriz de Oliveira Meneguelo Lobo*****; Carla Hervê Moram Bicca******; Rodrigo Grassi-Oliveira*******; Christian Haag Kristensen********

Resumo

No Brasil, a psicologia das emergências e desastres é concebida como uma área de estudo e intervençao em fenômenos que envolvem situaçoes de catástrofe. Nesse contexto, as intervençoes em crise objetivam aumentar o percentual de sujeitos que se recuperam da tragédia e acelerar esse processo de reconstruçao. Os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP) sao protocolos de intervençao que visam padronizar o atendimento às vítimas com base em evidências sobre reaçoes agudas ao estresse. No presente artigo, é relatada a experiência de aplicaçao do referido protocolo em vítimas do incêndio da boate Kiss em Santa Maria. Ressalta-se que a intervençao possibilitou o acolhimento emocional dos sujeitos de forma empática e nao invasiva, o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento (coping) adaptativas de forma conjunta e a busca de apoio social. Aponta-se para a necessidade de aprimoramento técnico e profissional para futuras intervençoes em crise no contexto brasileiro.

Descritores: intervençao em crise, prevençao pós-desastre, primeiros socorros psicológicos.

Abstract

In Brazil, the Psychology of Emergencies and Disasters is conceived as a field of study and performance in phenomena involving disaster. In this context, crisis interventions aimed at increasing the percentage of subjects who recover from this tragedy and accelerate the reconstruction process. Psychological First Aid (PFA) intervention protocols are aiming to standardize the care victims based on evidence of acute reactions to stress. This article aims to report the experience of implementing this protocol in victims of the Kiss nightclub fire in Santa Maria. It is noteworthy that the intervention enabled the host of emotional subjects empathetically and noninvasive, developing coping strategies (coping) adaptive jointly and search for social support. It points to the need for technical improvement and professional crisis for future interventions in the Brazilian context.

Keywords: crisis intervention, post disaster intevention, psychological first aid

 

 

INTRODUÇAO

A atuaçao do psicólogo nas situaçoes de emergências e desastres vem sendo delineada a partir de intervençoes que facilitem a reabilitaçao e a reconstruçao de comunidades e indivíduos atingidos por qualquer condiçao que os exponha a ameaças à vida ou a perdas traumáticas1. Assim, visa-se a reduçao de respostas disfuncionais e a diminuiçao do sofrimento nos sujeitos afetados durante e/ou após o evento2.

No Brasil, a psicologia das emergências e desastres é concebida como uma área de estudo e intervençao em fenômenos que envolvem situaçoes de catástrofe (natural ou provocada pelo homem) que resultem em grande número de mortos ou feridos e cujas consequências tendam a produzir sequelas nos indivíduos afetados que possam se prolongar por toda a vida3,4. Ressalta-se a escassez de estudos científicos que explorem as intervençoes no contexto brasileiro5.


EPIDEMIOLOGIA DOS DESASTRES

Os desastres podem ser definidos como situaçoes ou eventos que superam a capacidade de assistência local, requerendo, por isso, apoionacional ou internacional. Trata-se de acontecimentos imprevistos e frequentemente repentinos, que causam grandes danos, destruiçao e sofrimento humanov. Os desastres classificados como humanos sao aqueles que acontecem devido a açoes ou omissoes humanas, relacionando-se com o próprio homem, como agente e autor. Há, ainda, uma subcategoria, dentro da classe dos desastres humanos, correspondente aos chamados "desastres tecnológicos". Eles decorrem do uso de artefatos criados pelo homem, tais como meios de transporte, produtos perigosos, explosoes, entre outros7.

Neste ano, foi contabilizado o maior prejuízo econômico já registrado no mundo devido a desastres: US$ 366,1 bilhoes. Em total, 101 países foram atingidos. O Brasil ocupou a 7ª posiçao no ranking de número de desastres naturais registrados e a 9ª, no ranking de vítimas de desastres, atingindo o número de 3,7 milhoes de mortos6.


REAÇOES AO TRAUMA

Estudos sugerem que cerca de 90% da populaçao vai passar por ao menos um evento estressor potencialmente traumático ao longo da vidax. Os principais eventos estressores traumáticos descritos na literatura se referem a violência interpessoal (assaltos, sequestros, agressao física, acidentes de trânsito e abuso sexual) e catástrofes naturais (enchentes, terremotos, erupçoes vulcânicas, epidemias, ataques de animais, avalanches e tornados).

Durante a exposiçao a esse tipo de situaçao, é natural que o indivíduo apresente reaçoes interpretadas como negativas. Tais respostas fazem parte de um sistema de autopreservaçao que auxilia o indivíduo quando em situaçao de perigo. Especialmente nas primeiras 48 horas, o sujeito tende a apresentar diversos sintomas, que podem ser de ordem física, emocional, cognitiva e/ou interpessoal. Os principais sintomas físicos observados se referem a problemas de insônia, fadiga, tensao muscular, alteraçoes no desejo sexual, reaçoes de sobressalto, taquicardia, náuseas e perda de apetite. O surgimento de tais sintomas representa uma tentativa do organismo de manter-se preparado para um novo evento traumático. As reaçoes emocionais comuns após a exposiçao a um evento traumático consistem em medo, raiva, ressentimento, choque, luto, culpa, vergonha, desesperança, desamparo e entorpecimento. Essas emoçoes adaptam o sujeito à nova realidade e demonstram uma avaliaçao do ocorrido e suas consequências. As reaçoes cognitivas apresentadas sao: confusao, desorientaçao, dificuldade na concentraçao e tomada de decisao, deficits de memória, etc. Por fim, as reaçoes interpessoais desenvolvidas na tentativa de acomodar os pensamentos sobre o trauma e lidar com as emoçoes costumam levar as vítimas ao isolamento e à reclusao ou, mesmo, à necessidade extrema de controle9.

Mesmo apresentando as reaçoes esperadas, cerca de 30% das vítimas nao se recuperam após a manifestaçao dessa sintomatologia, nem sequer muitos meses após o ocorrido. Essas vítimas correm o risco de desenvolvimento de transtornos mentais, tais como transtornos relacionados a substâncias, transtornos de humor e transtornos de ansiedade. Dentre os transtornos de ansiedade, o transtorno de estresse agudo (TEA) e o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) parecem ser os mais associados à exposiçao a eventos estressores, afetando cerca de 6,8% das vítimas10,11,12.

Das vítimas envolvidas em desastres e tragédias que já desenvolveram TEPT, sabe-se que entre 30 e 40% eram vítimas diretas do evento, enquanto de 10 a 20% faziam parte de equipes de resgate e de 5 a 10% faziam parte da populaçao geral13. Há, ainda, um grupo de pessoas que nao exibem sintomas iniciais intensos, mas, tardiamente, desenvolvem TEPT14,15.

Embora um percentual importante das vítimas de desastres e tragédias nao se recuperem após um evento estressor e necessitem de acompanhamento especializado, o percentual que se recupera e retorna à rotina com o passar do tempo é ainda maior. A estimativa é a de que as reaçoes agudas ao estresse (emocionais, físicas, interpessoais ou cognitivas) sejam transitórias e decresçam em 42% das vítimas já no primeiro mês e em mais 23% até o final do primeiro ano posterior ao evento16. O objetivo de intervençoes em crise é o de aumentar o percentual de sujeitos que se recuperam da tragédia e acelerar o referido processo de recuperaçao.


PRIMEIROS SOCORROS PSICOLOGICOS

A literatura apresenta uma lacuna quanto à eficácia de intervençoes precoces, ou seja, aquelas realizadas durante o primeiro mês após a exposiçao traumática, que atuem na prevençao de reaçoes póstraumáticas desadaptativas17 . As intervençoes conduzidas no período inicial devem ser breves, focadas no presente e devem ter o objetivo de reduzir ou prevenir dificuldades psicológicas a longo prazo18. Dentre as intervençoes primárias, a literatura apresenta intervençoes realizadas imediatamente após o trauma, a curto e a longo prazo.

O debriefing psicológico é uma intervençao conduzida nos primeiros dias após a exposiçao traumática, focada na expressao de sentimentos e relato da situaçao traumática e na psicoeducaçao sobre as reaçoes esperadas1y. Apesar de serem amplamente utilizadas, as intervençoes baseadas em debriefing psicológico nao apresentam sustentaçao empírica para a reduçao de sofrimento ou prevençao de reaçoes pós-traumáticas desadaptativas, podendo, segundo alguns estudos, prejudicar o processo de recuperaçao esperado após a exposiçao a traumas e apresentar efeitos prejudiciais a longo prazo2p. Outras intervençoes de cunho exclusivamente psicoeducativo e informativo, ou mesmo o recurso de escrever sobre a situaçao traumática, foram investigados, mas nao apresentam evidências quanto à eficácia21.

Os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP) sao protocolos de intervençao propostos pelo National Center for PTSD com o objetivo de padronizar o atendimento às vítimas com base em evidências sobre reaçoes agudas ao estresse. Tais intervençoes podem ser iniciadas imediatamente após a ocorrência de desastres, direcionadas a crianças, adultos ou famílias afetadas direta ou indiretamente22. Os PSP objetivam reduzir o estresse inicial causado pelos eventos potencialmente traumáticos e engajar os sujeitos em estratégias de enfrentamento funcionais de curto e longo prazo. Além disso, é importante ressaltar que os PSP podem ser aplicados por qualquer profissional na área da saúde mental, mas especialmente por psicólogos e psiquiatras.

Nao se espera que todas as vítimas desenvolvam transtornos mentais, porém se sabe que os sujeitos afetados irao vivenciar diferentes reaçoes agudas que podem causar estresse o suficiente que justifique a necessidade de apoio. Assim, tais intervençoes devem ser consideradas como de suporte e aconselhamento e nao como um tratamento psicoterápico. Nao se deve visar um processamento emocional como em uma terapia de exposiçao, mas responder às necessidades agudas daqueles que querem compartilhar de suas experiências e respeitar a opçao dos que preferem nao discutir o fato ocorrido19.

Os PSP sao divididos conceitualmente em nove etapas: (1) preparaçao: desenvolvimento de estratégias adequadas de acordo com a populaçao afetada, manejando os focos de intervençao de acordo com os sujeitos de maior risco; (2) primeiros contatos: procedimentos nos quais o profissional se apresenta às vítimas de maneira nao intrusiva, além de atender a suas necessidades básicas e imediatas (necessidades fisiológicas, abrigo e proteçao, etc.); (3) segurança e conforto: promoçao de rede de apoio social, auxílio nas questoes de luto, promoçao de informaçoes necessárias acerca do ocorrido (evitando a exposiçao a informaçoes traumáticas), acompanhamento no reconhecimento de corpos. Visa prover o máximo de estabilidade e segurança física e emocional; (4) estabilizaçao: esta etapa torna-se necessária apenas para vítimas que estejam emocionalmente sobrecarregadas ou no limite. Nesses casos, deve-se orientar os sujeitos para o acompanhamento e supervisao profissional contínuo, podendo se fazer necessário o uso de medicaçoes; (5) busca de informaçoes: após garantidas as etapas anteriores, deve-se, com cuidado, buscar informaçoes que possam ser úteis para o manejo futuro dos sujeitos acompanhados, como histórico de traumas anteriores, ideaçao suicida, saúde física, sentimentos como culpa, raiva, ou vergonha, preocupaçoes sobre circunstâncias pós-desastre; (6) assistência prática: esta etapa reforça o papel do profissional na execuçao dos planos de açao para o atendimento de necessidades imediatas dos sobreviventes (busca por serviços de saúde, assistência com documentaçoes necessárias); (7) contato com apoio social: compreende a busca por ajudas que possam dar continuidade ao acompanhamento das vítimas (familiares, serviços sociais, instituiçoes de saúde ou espirituais, centros comunitários); (8) estratégias de manejo: promoçao de informaçoes básicas sobre reaçoes ao estresse, reaçoes psicológicas comuns ao trauma e perdas, informaçoes sobre formas de enfrentamento (emoçoes negativas, problemas com sono, questoes relacionadas ao álcool). Nesta etapa, podem se ensinar técnicas simples de relaxamento; (9) contato com serviços de colaboraçao: após o primeiro acolhimento, os profissionais a serviço das vítimas devem manter contato contínuo com serviços de referência para um seguimento nas relaçoes de auxílio22.


INCENDIO NA BOATE KISS EM SANTA MARIA

Santa Maria é uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul com cerca de 261.031 habitantes. A cidade é conhecida regionalmente pelo número de universitários que lá residem por estudarem na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Na madrugada do dia 27 de janeiro, em uma festa direcionada à populaçao universitária na boate Kiss, ocorreu um incêndio onde 241 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas. Em alguns dos casos, as vítimas sobreviveram ao momento da tragédia, mas foram a óbito dias depois, nos hospitais nos que estavam internadas devido à inalaçao de gás tóxico. Algumas vítimas ficaram internadas nos hospitais de Santa Maria, e alguns casos graves foram levados para hospitais de Porto Alegre.

Em decorrência das grandes proporçoes, considerando o elevado número de mortos e feridos, a tragédia teve imediata e grande repercussao midiática no âmbito nacional e internacional. Em virtude, também, da limitaçao de recursos do município para lidar com uma situaçao de tal dimensao, os órgaos responsáveis passaram a solicitar profissionais da saúde voluntários - como médicos, enfermeiros e psicólogos - para ajudarem a atender as vítimas e os familiares.


RELATO DE EXPERIENCIA

Na manha seguinte à madrugada em que o evento ocorreu, as notícias percorriam a mídia nacional e internacional. A partir de tal repercussao, os membros do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) se mobilizaram para ir a Santa Maria. O NEPTE é um centro de pesquisa e atendimento a vitimas de eventos estressores potencialmente traumáticos que visa investigar fatores sociais, psicológicos e neurobiológicos predisponentes e preponderantes a reaçoes pós-traumáticas desadaptativas, bem como o desenvolvimento de estratégias terapêuticas eficazes para o tratamento dos sujeitos.

A equipe chegou à cidade ainda no final da tarde do dia 27 de janeiro. Nesse dia, as operaçoes se concentraram em pavilhoes de um centro desportivo em que estavam ocorrendo o reconhecimento dos corpos, o acompanhamento dos familiares e o encaminhamento para funerais que ocorreriam em diferentes locais da cidade, alguns no próprio pavilhao. Estimamos que, ao todo, naquele dia, mais de duas mil pessoas estiveram nos pavilhoes. Já havia profissionais da saúde voluntários, funcionários da segurança pública (bombeiros, policiais, etc.) e agentes da mídia trabalhando no local. Quando chegamos, havia muita correria, filas, concentraçoes de pessoas e muitos familiares buscando informaçao.

Estabelecer um procedimento no meio de um acontecimento com essas características pode ser extremamente difícil, pois diferentes instâncias atuam em várias frentes durante a operaçao. As forças civis e o Corpo de Bombeiros instalaram postos de cadastramento de voluntários e esclarecimento de dúvidas; profissionais da saúde voluntários instalaram um ambulatório de emergência; e muitos voluntários se prontificaram a prestar auxílio às famílias. Idealmente, o contato dos agentes voluntários deve ser monitorado e estruturado por profissionais, já que esse primeiro acolhimento pode ser decisivo para o bem-estar dos sujeitos nas horas seguintes. Tais voluntários devem estar capacitados para reconhecerem fatores de risco para o desenvolvimento de TEPT, reaçoes psicóticas causadas pelo estresse, reaçoes dissociativas, bem como para o manejo de sujeitos com reaçoes emocionais intensas. Nossa equipe buscou, nesse primeiro momento, inserir-se na operaçao junto à Secretaria Municipal de Saúde de modo a estruturar nossa açao junto a outros profissionais e voluntários.

Por mais bem equipado que um município esteja, dificilmente estará preparado para uma situaçao desse porte. A busca por instâncias de auxílio prático (como agências funerárias externas ao município para fornecimento de material) foi necessária nesse primeiro dia. Além disso, devido ao grande número de instâncias agindo na operaçao (Polícia Civil, secretarias municipais, Conselho de Psicologia, Associaçao de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, etc.), uma reuniao emergencial foi realizada de forma a direcionar as açoes para os próximos dias.

A partir dessa primeira reuniao geral, foi realizada uma divisao de equipes e designados seus respectivos representantes. Cada equipe ficou responsável por cobrir diferentes locais estratégicos da cidade (hospitais, centros de referência, unidades de saúde, funerais). Ficou estabelecido que seriam realizadas reunioes diárias entre todos os coordenadores de equipe junto à Secretaria Municipal de Saúde com o objetivo de monitorar as açoes de cada grupo e planejar passos seguintes.

Além disso, ainda na primeira noite, nossa equipe buscou suporte da imprensa para difundir informaçoes necessárias. Em casos de desastres desse porte, o esclarecimento da populaçao de forma abrangente sobre as reaçoes comuns ao estresse e como manejá-las é um meio importante para que as vítimas possam empreender açoes a tempo de prevenir algumas consequências, como reaçoes póstraumáticas desadaptativas. Uma vez que a imprensa é um meio efetivo para atingir o maior número de sujeitos possível, programas de TV, rádios locais, jornais e sites foram acionados. Nesses meios de comunicaçao, foram explicados para a populaçao geral sintomas normais de reaçao ao estresse e formas de manejo para os primeiros dias, sempre informando onde buscar ajuda em casos intensos ou de persistência das reaçoes.

Nesse primeiro dia, cerca de 300 voluntários cadastrados já estavam atuando e continuariam a intervir nos dias seguintes. Mesmo considerando que esses voluntários tivessem formaçao em diferentes áreas da saúde, grande parte poderia nao estar habituada à intervençao em crise. As intervençoes para as situaçoes de desastre desse porte sao bastante específicas, e, por vezes, as graduaçoes generalistas nao as contemplam. O NEPTE, por ser um núcleo especializado em abordagens a situaçoes traumáticas, prontificou-se a oferecer capacitaçoes aos demais voluntários.

A partir do segundo dia, a própria equipe do NEPTE se dividiu em uma subequipe de capacitaçao e uma subequipe de atendimento. A capacitaçao ocorreu em um espaço cedido por uma clínica de psicoterapia particular de Santa Maria nos dias 28 e 29 de janeiro nos turnos da manha e da tarde. Um total de 172 voluntários foram capacitados para realizarem os primeiros socorros psicológicos. A capacitaçao foi ministrada por um dos coordenadores do NEPTE (CHK) e teve como base dados epidemiológicos acerca de desastres e informaçoes sobre reaçoes comuns ao estresse, fatores de risco, protocolos de intervençao pós-desastre, intervençoes para Transtorno do Estresse Agudo, avaliaçao e tratamento de TEPT. A subequipe de atendimento cobriu três Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), um hospital do centro da cidade e um posto de Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), conforme designado pelas Secretarias Estadual e Municipal de Saúde (Força Nacional do SUS). A equipe realizou as atividades do dia 28/01 ao dia 05/02. Nos últimos dias, açoes foram empreendidas para que se estruturasse uma rede na cidade de forma a dar continuidade ao trabalho.

Durante os plantoes, foram realizados atendimentos individuais, com duraçao variável (entre 15 e 30 minutos), de acordo com a necessidade de cada sujeito. Nesses atendimentos eram realizados acolhimento e avaliaçao dos fatores que poderiam tornar necessário um encaminhamento imediato (por exemplo: risco de suicídio, abuso de substâncias, sintomas psicóticos). Além disso, eram oferecidas brevemente orientaçoes para um enfrentamento saudável da situaçao, como manutençao da rotina, busca por apoio emocional de confiança, busca por suporte comunitário e profissional se necessário. Tais orientaçoes eram também fornecidas em material impresso, organizado previamente pela equipe, baseado no Guia de PSP (PFA, 2006). Por fim, para todos os atendidos, eram passados contatos de locais de referência da rede municipal de saúde, caso os sujeitos atendidos sentissem necessidade de um acompanhamento contínuo no futuro.

Os plantoes realizados pela equipe visavam ao acompanhamento e intervençoes preliminares no maior número de sujeitos possíveis: vítimas, familiares e profissionais envolvidos, como enfermeiros, médicos, socorristas, condutores de ambulância e demais funcionários das unidades de saúde. No caso dos profissionais, o fato de estarem constantemente expostos a situaçoes traumáticas, muitas vezes sem o devido suporte psicológico, o que os torna um grupo de risco para o desenvolvimento de TEPT e Burnout23, justifica o atendimento. Por isso, durante os plantoes, a equipe atendeu o maior número de profissionais possível (inclusive os que nao tinham tido relaçao direta com o evento), pois, mesmo que muitos nao estivessem expressando nenhuma sintomatologia naquele momento, poder-se-iam prevenir possíveis prejuízos futuros14.

Apesar de as intervençoes seguirem um protocolo padrao, cada local apresentou peculiaridades e demandas próprias. Os profissionais das UPAs se mostraram mais mobilizados pelo fato de, durante a madrugada do evento, terem tido de assumir atividades que nao sao usuais em suas rotinas, com um alto nível de pressao e estresse (por exemplo, a contençao emocional de um elevado número de familiares ao mesmo tempo). Além disso, mesmo que enfermeiros e médicos estejam habituados a intervir em situaçoes de ferimento humano extremo, a proporçao de sujeitos que procuraram simultaneamente o pronto atendimento causou, em alguns profissionais, a sensaçao de impotência e de estarem em um contexto de "guerra".

Nas UPAs, nos dias de plantao, a equipe também recebeu vítimas e familiares que buscavam algum auxílio médico. Esses sujeitos apresentavam diferentes reaçoes de acordo com suas experiências individuais em relaçao ao evento. Mesmo familiares de sobreviventes, ou moradores da cidade que nao tinham presenciado o evento, mas que tinham perdido conhecidos, mostravam reaçoes de luto. Esse clima permeava toda a cidade, sendo compreendido como uma reaçao esperada para esse tipo de contexto. Algumas pessoas apresentaram reaçoes mais intensas, como flashbacks (ouvir barulhos de sirene e ter a sensaçao de que algo de ruim estava acontecendo novamente), sentimentos fortes de culpa (por ter saído de casa naquela noite, por nao ter podido ajudar outras vítimas tanto quanto teria gostado) e humor deprimido (vontade de nao sair mais de casa ou de noite). Nesses casos, foi recomendado que se buscasse acompanhamento contínuo, frisando o caráter preventivo de se procurar tratamento precoce.

O atendimento à equipe de socorristas do SAMU teve um enfoque similar ao do atendimento aos profissionais das UPAs. Notou-se em nosso contato com tais profissionais que, frente às demandas, muitos se submetem voluntariamente a uma carga horária intensa (alguns estavam de plantao havia mais de 40 horas). Tal alteraçao do ciclo circadiano é um fator que contribui para o desenvolvimento de reaçoes póstraumáticas nesses profissionais2t. Portanto, frisou-se a necessidade de esses profissionais cuidadores atentarem para o cuidado de si mesmos e buscarem suprir suas necessidades básicas. Além disso, os profissionais relataram como um fator que contribuía para o estresse a pressao social que envolve o trabalho do socorrista. Muitos nos relataram que se sentiam pressionados ao verem pessoas próximas e a mídia colocando-os numa posiçao de heróis e exigindo que demonstrassem resistência. Isso torna difícil a expressao do sofrimento que implica, para a maioria das pessoas, presenciar situaçoes nas que se entra em contato com cenas impactantes.

Por fim, o atendimento a familiares no hospital exigiu um manejo diferente dos realizados nos outros locais. Tal atendimento ocorreu nos corredores e salas de espera do hospital, enquanto os familiares aguardavam por informaçoes sobre o paciente internado ou pelo horário de visita. Considerando que poucos foram expostos diretamente a cenas traumáticas e que muitos deles estavam em um momento de apreensao por aguardarem respostas sobre o estado do paciente internado, a aproximaçao da equipe teve um caráter mais voltado para o acolhimento de seu estado emocional naquele momento. Assim, nesse caso, houve uma maior preocupaçao da equipe em nao ser invasiva, já que, dentro dos grupos de familiares, seus membros prestavam apoio uns aos outros. Consideramos esse suporte intrafamiliar, se bem realizado, muito mais efetivo do que o suporte prestado por um profissional que pouca intimidade tem com os sujeitos da família. Portanto, ao abordarmos os grupos de familiares, reforçávamos a importância do apoio mútuo, colocando-nos à disposiçao para informaçoes sobre trauma e luto e fornecendo-as quando solicitados. Intervençoes mais focadas eram realizadas apenas quando se notava um familiar expressando reaçoes intensas de ansiedade ou desamparo.

Nos dias finais de atuaçao, buscou-se estruturar redes que pudessem dar continuidade ao atendimento realizado. Serviços públicos de saúde e profissionais residentes na cidade foram acionados. Mesmo a equipe do NEPTE tendo encerrado sua atuaçao direta na cidade, capacitaçoes continuaram a ser oferecidas junto à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Além disso, o serviço continuou a receber as vítimas e familiares no ambulatório do NEPTE situado na PUCRS. Acreditamos que, mesmo com a realizaçao de atendimentos emergenciais e preventivos como os PSP, açoes contínuas sao de extrema importância, pois é ao longo do tempo que os efeitos desse tipo de evento podem ser restaurados, devendo os profissionais estarem preparados para lançarem mao de estratégias que potencializem tal processo.


CONSIDERAÇOES FINAIS

A atuaçao dos profissionais da saúde mental em situaçoes de catástrofes é uma prática que vem sendo estruturada em nosso país faz muito pouco tempo. As intervençoes devem ser minuciosamente planejadas considerando o impacto que esse tipo de evento pode ter nos sujeitos que o vivenciam. A literatura internacional aponta que existem intervençoes que nao sao efetivas, ou que podem ser até mesmo prejudiciais, como o debriefing psicológico; entretanto, os Primeiros Socorros Psicológicos parecem ser uma alternativa segura de intervençao preventiva nessas situaçoes.

Até onde sabemos, nosso relato é o primeiro a expor a aplicaçao dos PSP no contexto brasileiro. Em nossa experiência, tal intervençao possibilita o acolhimento emocional do sujeito de forma empática e nao invasiva, o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento (coping) adaptativas de forma conjunta e a busca por apoio social. O esclarecimento de informaçoes e o material informativo se destacam como uma ferramenta necessária para a conscientizaçao de que reaçoes intensas nesse contexto sao normais e para a orientaçao quanto a como buscar ajuda nos casos em que a recuperaçao se mostrar difícil.

Ressalta-se, ainda, a necessidade de que estudos controlados e longitudinais possam testar o impacto dessas intervençoes no contexto brasileiro. Com o desenvolvimento desses estudos, tornar-se-á possível o estabelecimento de rotinas e protocolos nacionais a serem aplicados em tais casos. Mesmo em eventos desse porte, profissionais técnicos e de saúde precisam estar prontamente capacitados para que, frente ao imprevisível, seja possível reduzir o impacto negativo acarretado por eles.


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* Graduando de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
** Psicóloga, doutoranda em Cogniçao Humana pelo Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
*** Graduanda de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
**** Graduanda de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
***** Psicóloga, mestranda em Cogniçao Humana pelo Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
****** Médica psiquiatra, mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
******* Médico psiquiatra, doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor do Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenador do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.
******** Psicólogo, doutor em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador do Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse.

Departamento e instituiçao: Núcleo de Estudo e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Porto Alegre - RS.

Autor responsável para correspondência:
Thiago Loreto Garcia da Silva
Endereço: Av. Ipiranga, 6681 - Partenon - Prédio 11, 9º Andar, Sala 915
Porto Alegre/RS - CEP: 90619-900
Telefone: (51) 82404457/(51)33347137
E-mail: thiagoloreto@hotmail.com

 

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