Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):72-92
Patuleia N, Alberto I, Pereira R. (Des)Construindo a violência filioparental - análise de um caso de intervençao terapêutica na violência filioparental com adolescente em acolhimento institucional. Rev. bras. psicoter. 2013;15(1):72-92
Artigos Originais
(Des)Construindo a violência filioparental - análise de um caso de intervençao terapêutica na violência filioparental com adolescente em acolhimento institucional
(De) Constructing Child-to-Parent Violence - Therapeutic Intervention in Child-to-Parent Violence, featuring an Adolescent in Institutional Care
Neusa Patuleia*; Isabel Alberto**; Roberto Pereira***
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO:
Cottrell (2001)1 define a violência filioparental (VFP) como um ato cometido por um filho com a intençao de causar medo e dano físico, psicológico ou financeiro e que tem como objetivo a aquisiçao de controle e poder sobre o progenitor, envolvendo, por isso, ameaça, intimidaçao e dominaçao (Paterson et al. 2002)2. Pereira (2006)3 define a VFP como um comportamento de violência física (agressoes, empurroes, atirar objetos); verbal (insultos repetidos, ameaças); ou nao verbal (ameaças de agressao, destruiçao de objetos apreciados), realizado de maneira repetida por parte dos filhos em relaçao aos progenitores ou adultos que ocupem o seu lugar.
A violência filioparental (VFP) é um problema social que se manteve na obscuridade durante décadas (Robinson et al. 2004)4. A primeira referência na literatura é creditada a Harbin e Madden (apud Walsh e Krienert, 2007)5, que a definem em 1979 como um "novo" tipo de violência familiar. Os estudos indicam que, nas décadas de 80 e 90, anualmente, 5 a 10% dos adolescentes nos EUA agrediam os seus progenitores (Cornell e Gelles 1982; Agnew e Huguley 1989; ambos apud Brezina 1999)6 e que 7 a 18% de famílias biparentais e 29% das famílias monoparentais tinham vivido situaçoes de VFP (Peek et al. 1985)7. No Canadá, enquanto DeKeseredy (1993)8 estimou que 1 em cada 10 progenitores eram agredidos pelos seus filhos, o Canadian National Clearing House of Familiy Violence (2003)9, num estudo de larga escala, indicava que 14% dos progenitores já tinham sido fisicamente agredidos pelos seus filhos adolescentes. Na França, o valor apontado por Laurent et al. (1999)10 é significativamente mais baixo, de 0,6%.
Mais recentemente, Cyrulnik (2005)11 referencia que a VFP tem adquirido dimensoes mundiais, com uma incidência de 1% nas famílias francesas, 4% nas japonesas e 6% nas norte-americanas. Corroborando essa ideia, uma investigaçao levada a cabo em Bilbao (Calvete et al. 2010)12 com 1.427 adolescentes indicou que 7,2% haviam sido violentos contra os seus pais.
As diferenças nos valores estimados podem decorrer do uso de diferentes escalas de medida e métodos de recolha de dados, pelo que se torna difícil estabelecer comparaçoes. Por outro lado, tal como acontece nas outras formas de violência intrafamiliar, há o consenso quanto a que a prevalência da VFP é superior à apontada pelos dados estatísticos, uma vez que os progenitores têm vergonha em reconhecer a VFP na sua família, chegando a tolerar altíssimos níveis de agressao antes de solicitarem ajuda. Numa tentativa de preservar o mito da harmonia familiar, mantêm a VFP como um segredo13, rejeitando o confronto, evitando a discussao aberta sobre a conduta violenta, ocultando-a ou minimizando-a, e resistem a impor castigos e respostas consistentes antes das agressoes14 .
A crença generalizada de que os progenitores precisam proteger os seus filhos, mesmo contra a sua vontade, e a falta de clareza e objetividade acerca do que é um comportamento aceitável ou intolerável têm contribuído para o reconhecimento tardio da VFP, mesmo entre os profissionais de ajuda e decisores políticos15 .
Apesar de se encontrarem referências a pesquisas relativas às intervençoes clínicas, a literatura indica que a VFP é um problema relevante que tem sido negligenciado pela investigaçao clínica2. A análise realizada identifica como estratégias de intervençao em situaçoes de VFP os modelos narrativos e focados na soluçao, que convidam os adolescentes a assumir a responsabilizaçao pelos seus comportamentos violentos, e as vítimas, a reescreverem as suas vidas com uma visao de empoderamento (De Shazer e Berg, 199216; Jenkins, 199017; Micucci, 199518; Sheehan, 199719; White, 198820; White e Epston, 199021). Contudo, a investigaçao desenvolvida nos últimos anos demonstra que a VFP nao resulta de uma relaçao de causa única, mas é um fenómeno complexo, multifacetado e pluricausal que só pode ser compreendido a partir de um modelo ecológico que integre variáveis intrapessoais, familiares, culturais e comunitárias22. Sendo que o tratamento dessa problemática deve incidir numa abordagem relacional, para ampliar as possibilidades de êxito, é necessário intervir no circuito em que se estabelece a violência e nao só no membro familiar que manifesta o sintoma23. Por essa razao, Loketek (apud Alarcao 2000)24 considera que, na leitura da violência, a intervençao terapêutica deve implicar todos os elementos em relaçao, explorando a violência nos diferentes subssistemas familiares.
Assim, a partir da revisao de estudos sobre a experiência clínica e do trabalho terapêutico com famílias nas que ocorre VFP, consideramos pertinente apresentar um processo de intervençao realizado com uma família sinalizada com VFP, em que a filha adolescente tinha uma medida de institucionalizaçao, recorrendo ao Protocolo de Intervençao em VFP desenvolvido por Pereira (2006)25 com base numa compreensao ecológica do fenômeno.
ENQUADRAMENTO DO CASO
O agregado é constituído por 3 elementos: os dois progenitores e Maria. A mae trabalha num restaurante, e o pai é jardineiro. Maria tem 15 anos e concluiu o 4º ano de escolaridade. Eles vivem nos arredores de um grande centro urbano.
Nao se verificam relaçoes próximas com família alargada. A família de origem do pai vive no norte de País, restringindo-se o contacto a visitas anuais. A mae de Maria foi abandonada quando criança, vivendo com uma madrinha até aos 11 anos de idade, altura em que foi trabalhar como empregada doméstica, nao tendo qualquer referência da família alargada.
O acolhimento institucional de Maria surge como resposta à sinalizaçao pelo sistema de proteçao de situaçao de perigo no seu meio natural de vida26. Tendo como base o princípio da prevalência da família como um direito essencial ao desenvolvimento saudável do ser humano, sempre que nao exista inibiçao judicial de contatos, deve-se procurar envolver a família num projeto de intervençao social e terapêutica que promova o desenvolvimento integral e harmonioso da criança/adolescente com vistas à diminuiçao dos fatores de risco e à melhoria da qualidade das relaçoes familiares a fim de preconizar a reunificaçao familiar26. Assim, Maria foi acolhida num Centro de Acolhimento Temporário para Adolescentes (CAT) a 160 km de distância da residência do seu agregado familiar, pelo prazo de seis meses, na sequência de um crescente absentismo escolar, fugas da casa dos pais, comportamentos violentos para com a mae, destruiçao de objetos, ausência de um efetivo controle por parte dos progenitores e a consequente iniciaçao de percursos alternativos desadequados, nomeadamente, no plano de relaçoes com pares igualmente com percurso de exclusao social, comportamentos disruptivos, consumos e envolvimento em pequenos furtos.
Os progenitores nao demonstravam capacidade para gerir essa situaçao, assumindo nao conseguir "forçar" a jovem a frequentar a escola e a travar os comportamentos de violência e risco. A situaçao foi acompanhada por serviços locais de 1º linha na área da Infância e Juventude que responsabilizavam os pais pela ausência de limites da jovem, pelo seu percurso de desinvestimento escolar, procurando envolver a jovem num acompanhamento psicológico e psiquiátrico que nunca se chegou a efetivar face à oposiçao de Maria.
ENQUADRAMENTO DA INTERVENÇAO
Após o acolhimento de Maria, a assistente social e a psicóloga da equipe do CAT recolheram informaçao sobre a família e a intervençao realizada até entao numa reuniao com os técnicos dos vários serviços que acompanhavam e sinalizaram a situaçao e numa 1º entrevista com os progenitores.
As problemáticas apontadas pelos serviços e progenitores centravam-se nas seguintes questoes:
-Absentismo escolar;
-Constantes fugas da casa dos pais (4 participaçoes à Polícia);
-Falta de respeito pelos pais;
-Muita agressividade contra objetos e progenitora (empurroes);
-Violência verbal dirigida à progenitora.
- Contatos telefônicos diários em conjunto (máx. 3 por dia);
- Formas de comunicaçao assertiva, manifestando preocupaçao;
- Saber dizer "nao" aos pedidos e amuos de Maria sem descurar transmitir-lhe apoio, preocupaçao e afeto pela palavra.
a) Os progenitores tinham abdicado do seu papel, sendo que o pai tinha se distanciado da relaçao parental e a progenitora tinha estabelecido uma relaçao fusional e simétrica com a jovem;
b) Ambos os progenitores atribuíam essa abdicaçao à personalidade da adolescente rebelde e às suas companhias;
c) Manifestavam dificuldade em perceber que o poder de estabelecer regras e fazê-las cumprir se encontrava neles;
d) Comportamento agressivo da parte da jovem como tentativa de "controle" e de imposiçao de poder na dinâmica familiar.
a) A família inicialmente negava a seriedade dos comportamentos agressivos da jovem;
b) Procurava preservar o mito da harmonia e da paz familiar;
c) Tinha desenvolvido regras que conduziam à manutençao do segredo;
d) Os pais chegaram a tolerar níveis altos de agressividade antes de tomarem medidas;
e) Tanto os pais como a jovem recusavam a confrontaçao ou discussao aberta sobre o comportamento evidente, isto é, sobre o comportamento agressivo, mostrando resistência em abordar essas questoes em contexto de terapia familiar, centrando-se mais nos comportamentos externos, como fugas e absentismo;
f) Os progenitores recusavam a imposiçao de castigos ou respostas de forma consistente, manifestando oscilaçoes e limites, ora muito permeáveis, ora demasiado rígidos (ex. um dia, o pai danificou propositadamente um celular e, no dia seguinte foi com a jovem comprar outro. Outro exemplo é o das compras de bens materiais desajustadas em relaçao às necessidades ou ao comportamento da jovem).
a) A carência de autoridade parental tinha "empurrado" a filha a assumir um papel independente antes do tempo - Pseudoindependência (dependência emocional);
b) O episódio violento é um mecanismo primitivo de distanciamento forçado, uma vez que a relaçao de dependência/fusional começa a ser uma fonte de pressao e impossibilita o estabelecimento de outras relaçoes, que sao encaradas como traiçoes à lealdade da relaçao filioparental, nomeadamente, neste caso, no que dizia respeito à relaçao com a mae.
a) Pensar no processo desencadeador da violência e no seu significado;
b) Refletir acerca dos ganhos de cada um dos elementos com a homeostase do sistema familiar, assente no comportamento agressivo e desafiante da jovem;
c) Introduzir novas leituras compreensíveis dos comportamentos agressivos;
d) Tornar compreensível o comportamento da jovem no funcionamento do sistema familiar, sem o legitimar;
e) Procurar funcionalidade em estratégias alternativas de gerir situaçoes de conflito;
f) Pensar em conjunto nos benefícios para a jovem e para o seu sistema familiar de um funcionamento diferente;
g) Mudar a história;
h) Valorizar a importância da palavra e da comunicaçao assertiva na família;
i) Considerar a definiçao clara de consequências em funçao dos comportamentos.
1. Coconstruçao da relaçao terapêutica;
2. Construçao da sua história de vida;
3. Elaboraçao das relaçoes e dinâmicas familiares;
4. Organizaçao de si própria em relaçao ao momento do acolhimento;
5. Estratégias alternativas para gerir o vazio afetivo manifesto em funçao do acolhimento institucional e consequente ruptura com as rotinas habituais;
1. Identificaçao do padrao de relaçoes de dependência com objetos amados (pais, namorado);
2. Alternativas de formas de relaçao mais adequadas e satisfatórias;
3. Estratégias alternativas para gerir a agressividade latente, quando era contrariada;
4. Organizaçao de si própria em relaçao ao seu projeto de vida;
5. Definiçao de objetivos de vida a curto e médio prazos.
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