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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):72-92



Artigos Originais

(Des)Construindo a violência filioparental - análise de um caso de intervençao terapêutica na violência filioparental com adolescente em acolhimento institucional

(De) Constructing Child-to-Parent Violence - Therapeutic Intervention in Child-to-Parent Violence, featuring an Adolescent in Institutional Care

Neusa Patuleia*; Isabel Alberto**; Roberto Pereira***

Resumo

Na sequência do crescente fenômeno de violência filioparental (VFP) em Portugal, e sem que profissionais e famílias tenham um referencial comum em torno dessa problemática, proliferam pedidos de avaliaçao e intervençao no âmbito da proteçao de adolescentes com comportamentos disruptivos colocando-se recorrentemente em situaçoes de risco, sem que os pais lhes consigam impor qualquer limite. Depois de avaliados, percebemos que as problemáticas apontadas sao consequência de um padrao de VFP. Ilustramos um processo de intervençao terapêutica num desses casos, com adolescente em acolhimento institucional, visando a reunificaçao familiar. Numa perspetiva de intervençao ecossistêmica, preconizou-se trabalho em todas as áreas de vida da adolescente, nos diferentes níveis socioterapêuticos, a partir da intervençao terapêutica familiar, que decorreu em sessoes de coterapia mensais (10 sessoes+2 follow-up). Tendo como referência o protocolo utilizado no Centro de Intervençao em VFP, Euskarri, procurou-se reformular o problema identificado e desconstruir as narrativas dominantes em torno da VFP, incidindo nas 3 áreas disfuncionais da família: hierarquia; proteçao/segredo; separaçao/fusao. Com a intervençao terapêutica realizada, o problema passou do adolescente violento para a dinâmica familiar vigente, pela circularidade e metacomunicaçao; verificaram-se mudanças qualitativas no padrao de funcionamento familiar, e foi possível a reunificaçao familiar.

Descritores: Violência filioparental; Intervençao terapêutica; Acolhimento institucional; Mudança; Reunificaçao familiar.

Abstract

Following the growing phenomenon of Child-to-Parent Violence (CPV) in Portugal, with no common reference around this problematic available to both professionals and families, requests for assessment and intervention within the protection of youth proliferate, of adolescents characterized as having a disruptive behavior, placing themselves constantly in hazard, with parents being unable to impose limits. Once evaluated, we realize the problematics highlighted are the result of a CPV pattern. This paper presents a process of therapeutic intervention in a CPV case, featuring an adolescent in the context of institutional care, towards the completion of family reunification. In a perspetive of an ecossystemic intervention, work was professed in all areas of the teenager's life, on different sociotherapeutic levels, from the familiar therapeutic intervention, held in monthly cotherapy sessions (10 sessions+2 follow-up).Taking as reference the Protocol used in the Intervention Center in CPV, Euskarri, it was sought to reformulate the identified problem and to deconstruct the dominant narratives around CPV, focusing on the 3 dysfunctional areas of the family: hierarchy, protection/secret; separation/fusion. During the intervention period, the problem perspetive changed from the violent adolescent to current family dynamics, through circularity and meta-communication; qualitative changes in the pattern of the family functioning were noted and reunification was possible.

Keywords: Child-to-Parent Violence; Therapeutic Intervention; Institutional Care; Change; Family Reunification.

 

 

INTRODUÇAO:

Cottrell (2001)1 define a violência filioparental (VFP) como um ato cometido por um filho com a intençao de causar medo e dano físico, psicológico ou financeiro e que tem como objetivo a aquisiçao de controle e poder sobre o progenitor, envolvendo, por isso, ameaça, intimidaçao e dominaçao (Paterson et al. 2002)2. Pereira (2006)3 define a VFP como um comportamento de violência física (agressoes, empurroes, atirar objetos); verbal (insultos repetidos, ameaças); ou nao verbal (ameaças de agressao, destruiçao de objetos apreciados), realizado de maneira repetida por parte dos filhos em relaçao aos progenitores ou adultos que ocupem o seu lugar.

A violência filioparental (VFP) é um problema social que se manteve na obscuridade durante décadas (Robinson et al. 2004)4. A primeira referência na literatura é creditada a Harbin e Madden (apud Walsh e Krienert, 2007)5, que a definem em 1979 como um "novo" tipo de violência familiar. Os estudos indicam que, nas décadas de 80 e 90, anualmente, 5 a 10% dos adolescentes nos EUA agrediam os seus progenitores (Cornell e Gelles 1982; Agnew e Huguley 1989; ambos apud Brezina 1999)6 e que 7 a 18% de famílias biparentais e 29% das famílias monoparentais tinham vivido situaçoes de VFP (Peek et al. 1985)7. No Canadá, enquanto DeKeseredy (1993)8 estimou que 1 em cada 10 progenitores eram agredidos pelos seus filhos, o Canadian National Clearing House of Familiy Violence (2003)9, num estudo de larga escala, indicava que 14% dos progenitores já tinham sido fisicamente agredidos pelos seus filhos adolescentes. Na França, o valor apontado por Laurent et al. (1999)10 é significativamente mais baixo, de 0,6%.

Mais recentemente, Cyrulnik (2005)11 referencia que a VFP tem adquirido dimensoes mundiais, com uma incidência de 1% nas famílias francesas, 4% nas japonesas e 6% nas norte-americanas. Corroborando essa ideia, uma investigaçao levada a cabo em Bilbao (Calvete et al. 2010)12 com 1.427 adolescentes indicou que 7,2% haviam sido violentos contra os seus pais.

As diferenças nos valores estimados podem decorrer do uso de diferentes escalas de medida e métodos de recolha de dados, pelo que se torna difícil estabelecer comparaçoes. Por outro lado, tal como acontece nas outras formas de violência intrafamiliar, há o consenso quanto a que a prevalência da VFP é superior à apontada pelos dados estatísticos, uma vez que os progenitores têm vergonha em reconhecer a VFP na sua família, chegando a tolerar altíssimos níveis de agressao antes de solicitarem ajuda. Numa tentativa de preservar o mito da harmonia familiar, mantêm a VFP como um segredo13, rejeitando o confronto, evitando a discussao aberta sobre a conduta violenta, ocultando-a ou minimizando-a, e resistem a impor castigos e respostas consistentes antes das agressoes14 .

A crença generalizada de que os progenitores precisam proteger os seus filhos, mesmo contra a sua vontade, e a falta de clareza e objetividade acerca do que é um comportamento aceitável ou intolerável têm contribuído para o reconhecimento tardio da VFP, mesmo entre os profissionais de ajuda e decisores políticos15 .

Apesar de se encontrarem referências a pesquisas relativas às intervençoes clínicas, a literatura indica que a VFP é um problema relevante que tem sido negligenciado pela investigaçao clínica2. A análise realizada identifica como estratégias de intervençao em situaçoes de VFP os modelos narrativos e focados na soluçao, que convidam os adolescentes a assumir a responsabilizaçao pelos seus comportamentos violentos, e as vítimas, a reescreverem as suas vidas com uma visao de empoderamento (De Shazer e Berg, 199216; Jenkins, 199017; Micucci, 199518; Sheehan, 199719; White, 198820; White e Epston, 199021). Contudo, a investigaçao desenvolvida nos últimos anos demonstra que a VFP nao resulta de uma relaçao de causa única, mas é um fenómeno complexo, multifacetado e pluricausal que só pode ser compreendido a partir de um modelo ecológico que integre variáveis intrapessoais, familiares, culturais e comunitárias22. Sendo que o tratamento dessa problemática deve incidir numa abordagem relacional, para ampliar as possibilidades de êxito, é necessário intervir no circuito em que se estabelece a violência e nao só no membro familiar que manifesta o sintoma23. Por essa razao, Loketek (apud Alarcao 2000)24 considera que, na leitura da violência, a intervençao terapêutica deve implicar todos os elementos em relaçao, explorando a violência nos diferentes subssistemas familiares.

Assim, a partir da revisao de estudos sobre a experiência clínica e do trabalho terapêutico com famílias nas que ocorre VFP, consideramos pertinente apresentar um processo de intervençao realizado com uma família sinalizada com VFP, em que a filha adolescente tinha uma medida de institucionalizaçao, recorrendo ao Protocolo de Intervençao em VFP desenvolvido por Pereira (2006)25 com base numa compreensao ecológica do fenômeno.


ENQUADRAMENTO DO CASO

O agregado é constituído por 3 elementos: os dois progenitores e Maria. A mae trabalha num restaurante, e o pai é jardineiro. Maria tem 15 anos e concluiu o 4º ano de escolaridade. Eles vivem nos arredores de um grande centro urbano.

Nao se verificam relaçoes próximas com família alargada. A família de origem do pai vive no norte de País, restringindo-se o contacto a visitas anuais. A mae de Maria foi abandonada quando criança, vivendo com uma madrinha até aos 11 anos de idade, altura em que foi trabalhar como empregada doméstica, nao tendo qualquer referência da família alargada.

O acolhimento institucional de Maria surge como resposta à sinalizaçao pelo sistema de proteçao de situaçao de perigo no seu meio natural de vida26. Tendo como base o princípio da prevalência da família como um direito essencial ao desenvolvimento saudável do ser humano, sempre que nao exista inibiçao judicial de contatos, deve-se procurar envolver a família num projeto de intervençao social e terapêutica que promova o desenvolvimento integral e harmonioso da criança/adolescente com vistas à diminuiçao dos fatores de risco e à melhoria da qualidade das relaçoes familiares a fim de preconizar a reunificaçao familiar26. Assim, Maria foi acolhida num Centro de Acolhimento Temporário para Adolescentes (CAT) a 160 km de distância da residência do seu agregado familiar, pelo prazo de seis meses, na sequência de um crescente absentismo escolar, fugas da casa dos pais, comportamentos violentos para com a mae, destruiçao de objetos, ausência de um efetivo controle por parte dos progenitores e a consequente iniciaçao de percursos alternativos desadequados, nomeadamente, no plano de relaçoes com pares igualmente com percurso de exclusao social, comportamentos disruptivos, consumos e envolvimento em pequenos furtos.

Os progenitores nao demonstravam capacidade para gerir essa situaçao, assumindo nao conseguir "forçar" a jovem a frequentar a escola e a travar os comportamentos de violência e risco. A situaçao foi acompanhada por serviços locais de 1º linha na área da Infância e Juventude que responsabilizavam os pais pela ausência de limites da jovem, pelo seu percurso de desinvestimento escolar, procurando envolver a jovem num acompanhamento psicológico e psiquiátrico que nunca se chegou a efetivar face à oposiçao de Maria.


ENQUADRAMENTO DA INTERVENÇAO

Após o acolhimento de Maria, a assistente social e a psicóloga da equipe do CAT recolheram informaçao sobre a família e a intervençao realizada até entao numa reuniao com os técnicos dos vários serviços que acompanhavam e sinalizaram a situaçao e numa 1º entrevista com os progenitores.

As problemáticas apontadas pelos serviços e progenitores centravam-se nas seguintes questoes:

-Absentismo escolar;

-Constantes fugas da casa dos pais (4 participaçoes à Polícia);

-Falta de respeito pelos pais;

-Muita agressividade contra objetos e progenitora (empurroes);

-Violência verbal dirigida à progenitora.


Na entrevista com os progenitores, o pai referiu que a Maria sempre foi "rebelde e autoritária" e que, desde pequena, dizia querer bater na mae ou no pai, enquanto a mae lamentou ter sido tao protetora e terem-lhe feito todas as vontades, apontando os 13 anos de Maria como o momento de início do namoro com um jovem com comportamentos de risco e dos comportamentos agressivos, colocando a "culpa" dos comportamentos da filha no namorado e nas "companhias", uma vez que ela era rebelde mas "tinha um fundo bom e meigo".

O acolhimento da jovem foi pautado por algumas crises de desespero (com choro e gritos) e revolta, manifestada por comportamentos e atitudes desafiantes (ex. gritos, ofensas, pontapés nos móveis, ameaças de fuga e de suicídio).

Em 1º entrevista individual com Maria, ela falou dos comportamentos de desafio em relaçao aos progenitores (absentismo, fugas, gritos e ofensas à progenitora) sem lhes reconhecer gravidade suficiente para justificar o seu acolhimento. Disse que o principal responsável por estar institucionalizada era o pai, por ter feito queixa de algumas fugas, mas assegurou saber que a mae nao aguentava estar longe dela, pelo que iria tirá-la dali, verbalizando: "a minha mae nao vive sem mim (...) ela nao vai aguentar e ainda lhe dá uma coisa má (...) o meu pai sim (...) ele quer-me presa (...) mas a minha mae nao (...) ela nao vai permitir isto".

Aferiu-se a disponibilidade dos progenitores para o processo terapêutico e acordou-se dar início à terapia familiar, conciliando a sua disponibilidade em se deslocarem ao CAT para visitarem Maria e realizar as sessoes mensalmente.

Numa perspetiva de intervençao ecossistêmica, procurou-se trabalhar com Maria nas diferentes áreas da sua vida, nomeadamente no plano individual e educativo, na relaçao com adultos e pares, visando a promoçao de competências pessoais, sociais e de responsabilizaçao. A par do acompanhamento psicológico individual, com a integraçao em turma de 2º ciclo, em programas de voluntariado e em atividades culturais e desportivas, procurou-se promover vivências que lhe permitissem desenvolver competências de vida de acordo com a sua faixa etária24. Por parte de Maria, verificou-se um padrao de desinvestimento acentuado em atividades (escolares e outras), mas esse padrao conseguiu por vezes ser colmatado com o investimento efetuado pelos adultos e/ou pares com que se relacionava, apontando para estratégias de intervençao em que as atividades se realizavam de forma acompanhada, funcionando como motivaçao.


INTERVENÇAO TERAPEUTICA FAMILIAR25,27

Esta intervençao foi efetuada em coterapia, com dois elementos da equipe técnica do CAT, em sessoes familiares mensais. Durante esse processo, recorreu-se a estratégias interventivas dos modelos de primeira e segunda cibernéticas que permitiram a reformulaçao do problema e a desconstruçao das narrativas dominantes em torno da violência filioparental, procurando pontuar os acontecimentos de forma diferente, coconstruindo uma narrativa mais adaptativa24 .

1ª Sessao - progenitores e Maria

O pai referiu que o casamento foi na sequência de uma gravidez nao planejada, que nao fazia parte dos seus planos.

A mae verbalizou ter ficado muito feliz com a gravidez de Maria, uma vez que sempre tinha ambicionado ser mae e ter uma família.

Maria identificou-se como mais próxima do pai quando era pequena e mais "ligada à mae na adolescência".

Ambos os progenitores verbalizaram que sempre tinham dado tudo (ex. roupas de marca, celulares, computador) e feito todas as vontades de Maria (ex. café da manha na cama, fruta cortada, bolachas e cereais especiais e mais caros para ela), sendo que ela nao tinha sabido dar o devido valor a isso e, na entrada da adolescência, as exigências tinham sido a ser também em relaçao às saídas à noite, dormidas fora de casa e dinheiro, procurando impor a sua vontade com gritos, pontapés nas portas e ofensas à mae, chegando mesmo a empurrá-la.

Maria confirmou essa situaçao e nao demonstrou qualquer ressonância afetiva à tristeza e desilusao dos pais; pelo contrário, descentrou-se do problema apresentado por eles verbalizando: "deram e fizeram porque quiseram", assumindo uma postura acusatória pelo fato de estar institucionalizada e os progenitores nao.

Ilustramos o padrao relacional de Maria com os progenitores, numa perspetiva instrumental, associado à obtençao de ganhos materiais. Procuramos enfatizar a acomodaçao da família a esse padrao de funcionamento e dar uma leitura explicativa da conduta violenta à luz dos antecedentes/desencadeadores, começo, duraçao, reaçoes e atitudes de todos os elementos do sistema familiar.

Os pais estavam muito centrados no namoro de Maria, colocando a tônica dos problemas de comportamento da jovem no início e manutençao do namoro. Procurou-se, entao, colocar a tônica do problema no sistema familiar, refletindo com eles sobre o fato de nao se poder controlar os comportamentos dos outros, mas podermos assumir parte do controle sobre o que se passa na nossa família, sobre a soluçao, e no investimento nas relaçoes com quem nos é próximo. Validou-se ainda o sofrimento de todos os elementos da família, decorrente da relaçao disfuncional instalada.

Foi-lhes proposto que identificassem qualidades dos restantes elementos do sistema de forma a descentrá-los dos aspetos unicamente negativos que referiam de cada um dos outros.

2ª Sessao - só com os progenitores, pois Maria nao quis participar

Maria tinha feito uma fuga do CAT, e os progenitores estavam muito centrados no comportamento de risco, com dificuldade em colocar a tônica na relaçao.

Continuou-se trabalhando na clarificaçao da conduta violenta (solicitando que descrevessem alguns episódios) e explorando o funcionamento familiar em torno do sintoma da violência/desafio.

Realizou-se o genograma familiar e falou-se sobre a história familiar de cada um dos progenitores, bem como sobre os problemas que ambos tinham sentido nos seus percursos de vida.

O pai vem de uma família de origem em que o seu próprio pai era alcoólico e violento com a mae e filhos, daí condenar uma conduta mais agressiva e ter sido demasiado passivo com Maria.

A mae sentia que só tinha tido uma família quando casou e Maria nasceu e, por isso, sempre a viu como uma dádiva e lhe permitiu fazer tudo.

Identificou-se nesta família um estilo educativo permissivo-liberal28, relacionado principalmente com a fusao emocional entre uma jovem violenta e o progenitor agredido, o que se enquadra na atual conceitualizaçao de VFP29. Assim, a hipótese terapêutica formulada foi: a inversao do poder na hierarquia familiar e a associaçao que Maria realizava entre pais e bens de consumo, tendo dessa relaçao com os seus progenitores uma perspectiva estritamente instrumental. A manutençao desse padrao resulta da necessidade de os seus progenitores se confirmarem como "bons pais cuidadores" e mais próximos da jovem, salvaguardando-se do envolvimento emotivo, da manifestaçao e comunicaçao de afetos positivos e negativos.

Trabalhamos na necessidade de subverter esse padrao de "pais-bens de consumo" para "paisfunçoes parentais" (dos afetos aos limites), pensando em conjunto em como é que se poderiam introduzir mudanças nesse padrao relacional.

Ambos os progenitores mostraram capacidade de perceber o valor do seu comportamento, assumindo que essa era a forma como se sentiam mais próximos de Maria, compensando-a por aquilo que eles mesmos nao tinham tido, e reconheceram a angústia que sentiam por Maria só valorizar o ganho imediato. A mae assumiu que teria dificuldade em fazer diferente, apesar de ser uma mudança que lhe fazia sentido.

3ª Sessao - momentos individuais com cada um dos progenitores

Procurou-se perceber o funcionamento familiar na perspetiva individual de cada um dos progenitores, uma vez que sentimos que o casal tinha se organizado em torno de Maria e se mantinha focado no problema identificado.

A progenitora considerava que o pai deveria ser mais firme na educaçao de Maria e que ela tinha sido muito "mae-galinha, muito protetora... demais", em oposiçao ao marido, que tinha sido "permissivo e ausente demais". Demonstrou dificuldade em perceber-se como parte do problema e da soluçao, uma vez que sentia que a filha nao sabia valorizar tudo o que ela tinha feito por ela. Assumiu que procurava compensar a filha por aquilo que ela própria nunca tinha tido. Referiu que o marido era distante e pouco afetuoso com ela e com a filha, mas que nao ligava, que nao falavam sobre os seus sentimentos.

O progenitor verbalizava e manifestava o seu sofrimento e insatisfaçao na relaçao familiar, fruto da sua relaçao de casal. Assumiu que estava contrariado na relaçao e que tinha acabado por se demitir do seu papel ativo no âmbito familiar para evitar conflitos maiores. Mencionou ter consciência da responsabilidade que ambos tinham no processo educativo da filha e mostrou-se disponível para mudar, apesar de se sentir impotente e nao saber como fazer, solicitando que as terapeutas assumissem uma postura educativa para com eles, pais.

Procurou-se ressalvar o seu papel de pai em detrimento do seu papel de marido e das opçoes que tomasse a esse respeito.

4ª Sessao de terapia familiar

Momento com a mae

Surgiu a necessidade de pontuar com a progenitora a relaçao familiar e a dinâmica familiar, uma vez que ela mostrou estar muito defensiva e reativa, com dificuldade em assumir-se como parte do problema e, como tal, parte da soluçao. Procurou-se desmontar a necessidade dos contatos constantes com a filha, no poder que conferia a essa última com essa manifestaçao de ausência de autocontrole em relaçao às suas preocupaçoes, que acabavam por ser completamente desvalorizadas por Maria e surtiam um efeito perverso na relaçao entre ambas, muitas vezes culminando em violência.

Momento com o pai

Com o progenitor, pontuaram-se as mesmas questoes abordadas com a mae. Contudo, o pai assumiu muito mais a sua responsabilidade nesse processo, como parte do problema e como parte da soluçao. Salvaguardamos a questao da culpa sentida pelo progenitor no papel de marido, pela insatisfaçao sentida, que o levara a se anular no papel de pai, considerando nao ter legitimidade para interceder.

O progenitor demonstrou capacidade de refletir sobre essas questoes e disse estar procurando fazer diferente. Verbalizou ter estado mais presente na vida da mulher desde o início da terapia, procurando estar mais ativo em casa. Disse sentir-se melhor com isso, uma vez que era o que a sua consciência mandava fazer.

Momento com ambos os progenitores

Considerando que progenitores demasiado permissivos, que mantêm uma relaçao parento-filial simétrica desde tenra idade dos seus filhos, registrando-se uma ausência de regras hierarquizadas, demonstram dificuldades acrescidas em assumir o poder parental30, colocou-se a tônica na formulaçao de objetivos comuns e na delimitaçao do processo em torno da revisao da medida daí a 6 meses, bem como na triangulaçao temporária do sistema familiar com a instituiçao, a fim de propiciar o distanciamento necessário à reorganizaçao do poder e da hierarquia familiar.

Refletiu-se sobre a importância da comunicaçao entre os progenitores e do acordo entre ambos na funçao parental, uma vez que Maria tinha crescido sentindo-os em lados opostos e "jogava" com isso, tirando dividendos em termos de bens adquiridos e permissao para saídas.

Procurou-se clarificar a dificuldade desse processo e o fato de ser bastante doloroso para ambos, reforçando a necessidade de serem mais consistentes25 .

5ª Sessao

1º Momento - com ambos os progenitores

Começou-se por devolver-lhes um novo olhar sobre a forma como o sistema familiar tinha se desenvolvido, sendo que Maria foi aprendendo a tirar ganhos imediatos da relaçao de algum distanciamento entre o casal. Ambos perceberam e aceitaram essa leitura.

Procurou-se encontrar novas formas de se relacionarem entre si, partindo do pressuposto de que as mudanças e os modelos têm de partir dos progenitores. Trabalhou-se a partir da ideia preconcebida e aceite no sistema de que a atribuiçao de ganhos imediatos (bens de consumo) significavam "gostamos de ti, filha", substituindo as manifestaçoes de afeto e a dimensao emocional.

Pretendeu-se regular em conjunto, no sistema terapêutico, as questoes da aliança mae-filha e do papel periférico do pai que tinham facilitado a triangulaçao e o exercício invertido de poder:

  • Contatos telefônicos diários em conjunto (máx. 3 por dia);
  • Formas de comunicaçao assertiva, manifestando preocupaçao;
  • Saber dizer "nao" aos pedidos e amuos de Maria sem descurar transmitir-lhe apoio, preocupaçao e afeto pela palavra.


  • Foi ponderada a necessidade de Maria ir a casa nalguns fins de semana para se trabalhar a relaçao filha-progenitores, mas eles, principalmente a mae, mostraram-se reticentes, com receio de que a jovem fugisse de novo.

    2º Momento - com progenitores e Maria

    Maria quis contar ao pai que fumava e escreveu numa folha de papel - pois queria dizê-lo, mas nao era capaz - que mostrou ao pai na sessao. Essa iniciativa revelou maior proximidade na comunicaçao e confiança na relaçao pai-filha, pelo que conversamos sobre o valor/significado dessa atitude para todos.

    Chegou-se a acordo de que era importante que a jovem fosse a casa no fim de semana e que fosse planejado em conjunto um programa centrado na família. Num processo coconstruído em contexto de terapia familiar, foi elaborado um programa, de forma a transmitir sentimentos de segurança e compromisso a todos os elementos do sistema.

    6ª Sessao - ambos os progenitores e Maria

    Conversou-se sobre o fim de semana familiar e sobre o que cada um tinha sentido e valorizado. Foi notória a satisfaçao em comunicar sentimentos associados aos momentos de partilha.

    Ficou combinado que Maria iria quinzenalmente passar os fins de semana a casa, com vistas à manutençao da relaçao entre os elementos do agregado e para haver oportunidade para a mudança nos padroes e dinâmicas de relaçao do sistema familiar, com o pacto "sem violência e sem fugas".

    7ª Sessao - ambos os progenitores e Maria

    Trabalhou-se em torno dos fins de semana, com incidência no último.

    Para o pai, a experiência tinha superado as expectativas e corrido muito bem. Considerou que a filha tinha mostrado estar mais madura, já sabendo ouvir. Descreveu a realizaçao de programas a dois, enquanto a mae estava trabalhando, e verbalizou que tinham conversado sobre coisas do dia a dia e nao tinham se centrado nos problemas do passado; acima de tudo, destacou ter se sentido bem e o fato de terem conseguido conversar. Referiu que o momento mais importante tinha sido quando estavam almoçando frente a frente, por terem dedicado mais atençao um ao outro e terem conversado olhos nos olhos.

    Maria contou que o momento mais importante para ela tinha sido quando dançou a valsa com o pai, no sábado à noite, quando saíram os 3. Inicialmente, demonstrou muita dificuldade em atribuir as razoes que a tinham levado a sentir-se bem, tendo referido inicialmente a música e a dança, mas acabou por expressar que se sentiu mais próxima do pai.

    A mae disse ter tido pena de ter tido de trabalhar no sábado e nao ter estado com eles, mas manifestou ter gostado muito de ter dançado com Maria a música "Mae Querida", tendo referido que foi muito importante para ela por ter sido no Dia das maes. Nessa altura, verificaram-se beijos, sorrisos e cumplicidade entre os 3 elementos do sistema. Relatou ainda sobre momentos em casa, de partilha, de alegria entre ambas, referindo que "ser mae é uma das coisas mais importantes da vida". Referiu que o que mais tinha lhe custado foi o momento em que levou Maria ao ônibus de regresso.

    Maria foi questionada acerca de qual havia sido o momento mais significativo com a mae, e, de imediato, ela referiu: "batatas cozidas", rindo em seguida. Explicou que há batatas cozidas na instituiçao muitas vezes e pontuou o que havia sido realmente importante para ela: "comida feita pela minha mae é diferente". Clarificando o significado dessa verbalizaçao, surgiu a importância e o valor que estar com a mae e ter a sua atençao e carinho tinha para ela. Quando esse tema foi aprofundado, Maria valorizou "ter sido a mae quem a servira ao prato", o que novamente pontuamos no plano dos afetos.

    Maria entusiasmou-se e quis contar um episódio em que esteve dançando com a mae em casa: ela tinha ensinado a mae a dançar Kizomba, e a mae tinha lhe ensinado outras danças. Referiu que tinha gostado desse momento em que "estavam bem, rindo, ensinando e aprendendo uma com a outra".

    Abordou-se também o que tinha corrido menos bem após esse fim de semana, já com Maria no CAT.

    Segundo a mae, a jovem tinha sido mal-educada e arrogante ao telefone, quando ela lhe falou sobre o que estavam planejando para o seguinte fim de semana em família: rancho e fados. Maria foi prepotente e nao foi capaz de falar com a mae sobre qualquer alternativa de que gostasse mais, nomeadamente estar com o namorado. Disse à mae, aos gritos, que nao ia a casa, e a mae também lhe disse, que, sendo assim, nao poderia ir. A mae verbalizou que estavam disponíveis para ouvirem Maria sobre o que ela tinha para dizer relativamente ao que gostava de fazer, mas nao para que ela impusesse a sua vontade.

    O pai considerou, tal como a mae, que Maria nao podia começar aos gritos e a impor a sua vontade.

    Maria acusou a mae de também gritar e desresponsabilizou-se completamente das atitudes que tomava, pondo a tônica nos outros, demonstrando ter muita dificuldade em aceitar que os pais têm a última palavra a dizer no que diz respeito às decisoes em casa.

    Analisou-se de forma circular a questao do fim de semana, que Maria fez depender de estar com

    o namorado e que os pais, apesar de estarem dispostos a ceder a essa questao inicialmente, com a rigidez, imposiçao e arrogância da jovem, acabaram por considerar que nao havia condiçoes para que ela fosse a casa.

    Maria acabou por nao conseguir verbalizar querer ir, independentemente de estar ou nao com o namorado, e acabou por nao ir nesse fim de semana (tentativa de impor o poder que sente que está perdendo e de manter a relaçao tal como a conhece).

    8ª Sessao terapia familiar - pais e Maria

    Validou-se a forma como progenitores e Maria tinham gerido a sua relaçao, ilustrando com episódios de fins de semana, rotinas familiares redefinidas, comunicaçao e confiança restabelecidas e ganhos para os diferentes elementos nessa redefiniçao dos limites, hierarquia e poder familiares.

    9ª Sessao - ambos os progenitores e Maria

    Combinaram-se as férias de verao da jovem de acordo com as férias dos pais.

    Maria -"Já sou capaz de esperar". Dá o exemplo das férias, em relaçao às quais aceitara de bom grado a forma como os pais haviam considerado se organizar.

    A mae -"Ela já é capaz de esperar sem fazer birras". Valorizou o fato de a filha ter arrumado o quarto na sequência do seu pedido: "eu pedi-lhe e ela fez (...) pedi-lhe também para ir buscar roupa que tinha deixado no tanque, e ela foi."

    O pai verbalizou: "está tudo diferente, mas ainda tem um longo caminho a percorrer." Voltamos a pontuar e a devolver-lhes onde estava a necessidade de mudança: em todos os elementos do sistema24.

    Em relaçao à comunicaçao:

    Mae menciona: -"tenho mais calma e tomo posiçoes mais firmes (...) tento falar mais calmamente e com respeito (...) sinto-me bem neste papel (...) ela respeita-me e eu respeito-a".

    Pai refere: -"nao mudei a minha forma de falar, mas falo mais e sinto-me mais próximo delas, que pertencemos todos ao mesmo".

    Maria destaca: -"nao sei explicar (...) falamos muito mais e fazemos coisas juntos".

    10ª Sessao - ambos os progenitores e Maria

    Os progenitores mostraram-se apreensivos com a possibilidade de Maria ficar com eles 3 semanas seguidas. A comunicaçao e relaçao entre eles e a filha estavam bastante melhor, mas preocupavam-se em nao conseguir assumir o poder dessa relaçao num período tao alargado.

    Refletiu-se sobre essa questao, bem como sobre a importância de os progenitores restabelecerem a hierarquia familiar, procurando ensinar e manter de forma consistente os limites com a filha, que nao tinham sido colocados em tempo devido27 .

    Os progenitores falaram da ausência de envolvimento da jovem em qualquer atividade, que assumia tudo como "uma seca", ficando na cama toda a manha, e o pai verbalizou que continuavam dando a ela tênis novos, celular e roupa, mesmo o celular sendo um problema para a família, uma vez que Maria passava as noites e os dias ao celular.

    Reiteramos a importância de eles assumirem o seu papel e poder na relaçao, sendo que alimentar esse padrao de funcionamento só promoveria a continuaçao dos comportamentos da jovem.

    Na sequência desse período de férias, a jovem começou a ir semanalmente à casa dos pais.

    11ª Sessao (follow-up 1) - ambos os progenitores e Maria

    Ponto da situaçao das idas de Maria a casa em relaçao à dinâmica familiar, comunicaçao, rotinas e confiança. A comunicaçao entre a família foi apontada como muito positiva: a jovem respeitava os pais e participava nas dinâmicas familiares, tirando proveito no plano afetivo, e os progenitores tinham assumido e se apropriado do seu papel e poder na relaçao.

    12ª Sessao (follow-up 2) - ambos os progenitores e Maria

    A reorganizaçao familiar contou com algumas tentativas de Maria de extrapolar os limites e reapropriar-se do poder indevido, mas os progenitores conseguiram definir claramente os limites, contando com a relaçao de proximidade e a comunicaçao positiva entre a díade parental24.

    Síntese da conceitualizaçao do caso:

    Estávamos perante um sistema familiar em que os comportamentos de desafio e violência filioparental apareceram como sintoma de uma relaçao patológica entre os diferentes elementos. Por um lado, um progenitor demissivo e, por outro, uma relaçao fusional entre progenitora e filha, triangulando com ela em oposiçao ao pai. Com a entrada de Maria na fase da adolescência e a hierarquia do sistema subvertida, sem qualquer adulto com legitimidade para assumir o poder, Maria começou a revelar um conjunto de comportamentos indicadores da falta de limites relacionais que caracteriza a patologia relacional.

    A violência familiar emerge como resultado da interaçao dos diferentes elementos da família, pelo que a intervençao deve ser familiar, centrada nas dinâmicas que geram e mantêm a violência13 .

    Esta família apresentava 3 áreas disfuncionais que potenciavam os comportamentos de desafio e a violência filioparental27:

    1) Hierarquia

    a) Os progenitores tinham abdicado do seu papel, sendo que o pai tinha se distanciado da relaçao parental e a progenitora tinha estabelecido uma relaçao fusional e simétrica com a jovem;

    b) Ambos os progenitores atribuíam essa abdicaçao à personalidade da adolescente rebelde e às suas companhias;

    c) Manifestavam dificuldade em perceber que o poder de estabelecer regras e fazê-las cumprir se encontrava neles;

    d) Comportamento agressivo da parte da jovem como tentativa de "controle" e de imposiçao de poder na dinâmica familiar.


    2) Proteçao da harmonia familiar

    a) A família inicialmente negava a seriedade dos comportamentos agressivos da jovem;

    b) Procurava preservar o mito da harmonia e da paz familiar;

    c) Tinha desenvolvido regras que conduziam à manutençao do segredo;

    d) Os pais chegaram a tolerar níveis altos de agressividade antes de tomarem medidas;

    e) Tanto os pais como a jovem recusavam a confrontaçao ou discussao aberta sobre o comportamento evidente, isto é, sobre o comportamento agressivo, mostrando resistência em abordar essas questoes em contexto de terapia familiar, centrando-se mais nos comportamentos externos, como fugas e absentismo;

    f) Os progenitores recusavam a imposiçao de castigos ou respostas de forma consistente, manifestando oscilaçoes e limites, ora muito permeáveis, ora demasiado rígidos (ex. um dia, o pai danificou propositadamente um celular e, no dia seguinte foi com a jovem comprar outro. Outro exemplo é o das compras de bens materiais desajustadas em relaçao às necessidades ou ao comportamento da jovem).


    3) Separaçao e fusao

    a) A carência de autoridade parental tinha "empurrado" a filha a assumir um papel independente antes do tempo - Pseudoindependência (dependência emocional);

    b) O episódio violento é um mecanismo primitivo de distanciamento forçado, uma vez que a relaçao de dependência/fusional começa a ser uma fonte de pressao e impossibilita o estabelecimento de outras relaçoes, que sao encaradas como traiçoes à lealdade da relaçao filioparental, nomeadamente, neste caso, no que dizia respeito à relaçao com a mae.


    Refletimos, em sessao com os pais e Maria, sobre o fato de os comportamentos da jovem surgirem em consequência da relaçao comprometida entre a díade parental. Maria foi gradualmente estabelecendo uma aliança com a mae, posicionando-se de igual para igual com a progenitora, ocupando uma posiçao de poder no sistema familiar, dado o afastamento/demissao do progenitor desse papel.

    Envolvida na dinâmica do casal, Maria, claramente distanciou-se do pai e aproximou-se, de forma simétrica, da mae, triangulando com a mae em oposiçao ao pai, assumindo crescentemente um "poder" que nao lhe era devido. Entendia-se e impunha-se como capaz de gerir a sua vida e, consequentemente, assumia todos os comportamentos de risco referidos, sem que nenhum adulto se afigurasse como referência afetiva e de autoridade.

    Em decorrência disso, essa violência da parte da jovem desencadeou um afastamento e desinvestimento cada vez maior da parte do progenitor e uma "reaçao branda" da parte da progenitora, que potenciou a sua submissao numa escalada complementar24 .


    ESTRATÉGIAS TERAPEUTICAS

    Procurou-se implicar os progenitores na reformulaçao do problema, devolvendo-o à família e, por consequência, devolvendo também a soluçao, responsabilizando-os pelo seu papel parental, redefinindo os seus papéis e tarefas.

    Apesar de, inicialmente, os progenitores estarem muito centrados no comportamento de risco, com dificuldade em ver essas questoes de um ponto de vista mais macro, colocando a tônica na relaçao familiar, fomos pensando em conjunto como é que poderíamos tentar alterar esse padrao de relaçao.

    Procurou-se dar sentido aos comportamentos agressivos e de desafio da jovem, passando do ato à palavra, e contextualizamos o comportamento, trabalhando nas seguintes questoes27:

    a) Pensar no processo desencadeador da violência e no seu significado;

    b) Refletir acerca dos ganhos de cada um dos elementos com a homeostase do sistema familiar, assente no comportamento agressivo e desafiante da jovem;

    c) Introduzir novas leituras compreensíveis dos comportamentos agressivos;

    d) Tornar compreensível o comportamento da jovem no funcionamento do sistema familiar, sem o legitimar;

    e) Procurar funcionalidade em estratégias alternativas de gerir situaçoes de conflito;

    f) Pensar em conjunto nos benefícios para a jovem e para o seu sistema familiar de um funcionamento diferente;

    g) Mudar a história;

    h) Valorizar a importância da palavra e da comunicaçao assertiva na família;

    i) Considerar a definiçao clara de consequências em funçao dos comportamentos.


    Procurou-se adequar os contatos pais-filha, permitindo uma maior autonomizaçao da jovem, sobretudo em relaçao à mae. No que concerne ao pai, potenciou-se a relaçao, aumentando os contatos e tempo de lazer compartilhado com a filha, redefinindo o seu papel no sistema.

    Na sequência do trabalho familiar desenvolvido, ponderamos a necessidade de Maria começar a passar alguns fins de semana com os pais para trabalhar a relaçao entre eles, e, apesar de, inicialmente, os progenitores se terem mostrado resistentes, com receios de que a jovem fugisse e se colocasse novamente em situaçoes de risco, essas idas à casa dos pais aos fins de semana foram correndo gradualmente melhor e foram sendo trabalhadas em contexto de terapia familiar. Nunca ocorreu nenhuma fuga em contexto familiar, e a agressividade foi sendo contida de parte a parte, dando lugar a momentos de comunicaçao positiva entre os elementos do sistema.

    A associaçao "pais-bens" que a jovem realizava, pela qual percebia essa relaçao como meramente instrumental, foi subvertida pela associaçao "pais-funçoes parentais" e, consequentemente, detentores do poder e limites necessários, pelo que se considerou que o processo de terapia familiar havia concretizado os seus objetivos.

    Maria começou a ir regularmente passar os fins de semana e períodos mais alargados com os pais, revelando maior estabilidade no cumprimento das regras estabelecidas, o que refletiu a reposiçao na hierarquizaçao dos papéis dos pais e da filha.

    Realizou-se uma 2ª sessao de follow-up, 2 meses após a reunificaçao familiar, visando pontuar o processo de reorganizaçao familiar, procurando dar suporte e segurança à família na manutençao e consistência das mudanças conseguidas no concernente à dinâmica familiar.

    Intervençao psicológica:

    Maria teve acompanhamento psicoterapêutico desde a sua integraçao no CAT, com a psicóloga afeta à equipe, que também é uma das terapeutas familiares.

    Numa 1º fase, o acompanhamento psicoterapêutico centrou-se nas seguintes questoes:

    1. Coconstruçao da relaçao terapêutica;

    2. Construçao da sua história de vida;

    3. Elaboraçao das relaçoes e dinâmicas familiares;

    4. Organizaçao de si própria em relaçao ao momento do acolhimento;

    5. Estratégias alternativas para gerir o vazio afetivo manifesto em funçao do acolhimento institucional e consequente ruptura com as rotinas habituais;


    Maria aderiu ao processo psicoterapêutico de forma adequada e colaborante. A jovem manifestava capacidade de insight, de reflexao em relaçao à forma como percebia o que a rodeava, a si própria e às relaçoes familiares, mas, tendencialmente, assumia uma postura de desresponsabilizaçao em relaçao aos seus comportamentos e atitudes, colocando a tônica no exterior, procurando adotar estratégias de aliança e seduçao com o adulto, visando a prossecuçao dos seus objetivos.

    A jovem via a relaçao com os pais de forma muito utilitária, manifestando alguma dificuldade em pensar nos progenitores em termos de afetos, como outros para além dela, com sentimentos e angústias. Consequentemente, mostrava dificuldade em perspectivar as relaçoes sem que fosse para satisfaçao dos seus interesses.

    Numa 2ª fase, procuramos centrar o acompanhamento psicoterapêutico na reorganizaçao de si própria, tendo em conta todas as mudanças na dinâmica familiar. Procuramos trabalhar numa perspectiva individual as questoes que eram abordadas em contexto de terapia familiar, de reorganizaçao do padrao da relaçao vigente, no sistema e na forma como Maria se percebia como elemento desse núcleo familiar, levando-a a se reposicionar no seu papel de filha.

    Numa 3ª fase, procuramos continuar o acompanhamento psicoterapêutico consolidando as seguintes questoes:

    1. Identificaçao do padrao de relaçoes de dependência com objetos amados (pais, namorado);

    2. Alternativas de formas de relaçao mais adequadas e satisfatórias;

    3. Estratégias alternativas para gerir a agressividade latente, quando era contrariada;

    4. Organizaçao de si própria em relaçao ao seu projeto de vida;

    5. Definiçao de objetivos de vida a curto e médio prazos.


    Maria manifestava um padrao de relaçao amor/ódio com todas as pessoas que se revelavam significativas na sua vida, o que desencadeava episódios de agressividade manifesta quando sentia que estava perdendo o controle/poder na relaçao. Esse padrao de relaçao foi sendo invertido significativamente na relaçao com os pais, o que contribui para a sua estabilidade emocional, bem como para a sua reorganizaçao e autonomia emocional, e lhe permitiu, progressivamente, centrar-se mais nos seus interesses e objetivos (ex. envolver-se mais no seu percurso escolar/formaçao; aderir às atividades culturais/desportivas propostas; ter iniciativa de proposta de atividades; participar em açoes de voluntariado).


    CONCLUSAO

    Na prossecuçao do direito a uma família que assegure os direitos fundamentais ao desenvolvimento de uma criança/adolescente, priorizamos o trabalho com as famílias, sempre que possível, a fim de aumentar competências, re-enquadrar o problema familiar que está na origem da institucionalizaçao e encontrar alternativas de funcionamento com o sistema, de forma a potenciar o regresso do jovem à família.

    No caso ilustrado, com a intervençao terapêutica familiar realizada, o problema deixou de estar em cada um dos elementos do sistema - em Maria (comportamentos de risco e violentos, absentismo), no pai (distante) ou na mae (permissiva) - e passou a ser identificado na dinâmica familiar que se criou e instalou com o contributo de todos. Assim, foi pela metacomunicaçao que se pôde propor e gerar mudança.

    No contexto da aplicaçao de uma medida de acolhimento institucional, foi possível triangular a relaçao pais-filha com a instituiçao, propiciando o distanciamento necessário à intervençao ecossistémica e à progressiva reorganizaçao familiar.

    Com o processo de terapia familiar procurou-se reparar a relaçao familiar, ajudando os pais a apropriarem-se gradualmente do seu poder parental com o apoio e segurança da instituiçao como reguladora externa da relaçao familiar.

    O processo de intervençao individual e socioeducativo com a jovem permitiu minimizar os danos da institucionalizaçao, aumentar competências, diminuir recidivas nos comportamentos de risco e ajudála a reposicionar-se na reorganizaçao familiar.


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    * Psicóloga clínica e terapeuta familiar na Associaçao "Chao dos Meninos"; doutoranda do Curso Interuniversitário em Psicologia Clínica - Psicologia da Família e Intervençao Familiar (Faculdade de Psicologia e Ciências da Educaçao da Universidade de Coimbra - FPCE Coimbra e Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa - FP Lisboa).
    ** Docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educaçao - Universidade de Coimbra; membro do Centro de Ciências Forenses - CENCIFOR; terapeuta familiar.
    *** Psiquiatra; terapeuta familiar; diretor de Euskarri, Centro de Intervençao em Violência Filioparental.

    Instituiçao: Associaçao de Amigos da Criança e da Família "Chao dos Meninos", Évora, Portugal

    Endereço para correspondência:
    Apartado 66 2554-909
    Cadaval, Portugal
    e-mail: neusapatuleia@gmail.com

     

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