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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):46-58



Artigos Originais

Algumas consideraçoes sobre postura ética em psicoterapia de orientaçao analítica

Ethical Considerations in Psychonalytic Psychotherapy

Adriano Neujahr Agostini*

Resumo

INTRODUÇAO: a ética em psicoterapia de orientaçao analítica vem sendo discutida desde o início da psicanálise, visto que é condiçao indispensável ao aparato técnico do psicoterapeuta. Determinadas situaçoes na clínica psicoterápica tendem a tirar o terapeuta de sua posiçao ética, sendo necessário que ele resolva o problema sem infringir o código de valores da profissao.
OBJETIVOS: o autor busca identificar e discutir brevemente fatores relevantes em uma possível definiçao de postura ética a ser seguida pelo psicoterapeuta de orientaçao analítica.
MATERIAL E MÉTODO: foi realizada revisao sobre o tema na literatura de embasamento predominantemente freudiano e foram elaboradas, para ilustraçao e reflexao, quatro vinhetas clínicas, a partir da prática psicoterápica do autor.
RESULTADOS/CONCLUSOES: sao apontados os seguintes fatores: 1) a capacidade de se manter uma atençao livremente flutuante ao longo do processo; 2) a possibilidade de sustentar a estrutura do setting; e 3) o monitoramento da contratransferência e do que ocorre no campo bipessoal. É discutida a importância desses fatores de acordo com as particularidades de cada caso, bem como seu papel crucial na decisao de seguir ou nao com os atendimentos.

Descritores: Ética; Psicoterapia; Ordens quanto à conduta (Ética médica).

Abstract

INTRODUCTION: Ethics in analytic psychotherapy has been discussed since the beginning of psychoanalysis, given its indispensability as a condition within the psychotherapist's technical apparatus. Certain situations in psychotherapeutic clinic tend to drive the therapist out of an ethical position, in which cases she should solve this problem without hurting the code of her profession. Objectives: the author identifies and briefly discusses relevant factors in a possible definition of ethical posture to be followed by the analytic psychotherapist.
MATERIAL AND METHOD: a literature review on the subject was performed on texts mainly in the Freudian tradition, and four clinical vignettes were produced for illustration and further reflections, taken from the author's clinical practice.
RESULTS/CONCLUSIONS: the following factors are indicated: 1) the ability of maintaining a free-floating attention throughout the process; 2) the possibility of sustaining the setting's structure; and 3) the monitoring of counter-transference and what occurs within the bipersonal field. The importance of these factors is discussed according to specificities of each case as well as its crucial role in the decision about whether the treatment should be maintained or not.

Keywords: Ethics; Psychotherapy; Indications of Conduct (Medical Ethics)

 

 

INTRODUÇAO

Augusto comparece à primeira consulta, pontualmente, após agendamento via contato telefônico. Senta-se na poltrona e, após certo receio inicial, começa seu relato. Demonstra tristeza e me desperta empatia ao descrever determinada situaçao envolvendo a mae. Sinto-me conectado com seu estado emocional e capaz de ajudá-lo até que ele acrescenta: "Ela gostou do tratamento que fez aqui contigo e também por isso tenho esperança de que tu possas me ajudar". Deparo-me, entao, com um dilema ético: poderei receber Augusto em tratamento, tendo já atendido sua mae, mesmo com o tratamento dela já encerrado?

Situaçoes como a descrita acima, numerosas e imprevisíveis na prática clínica, despertaram meu interesse pelo tema da postura ética a ser adotada pelo psicoterapeuta em tais situaçoes. Sinto-me desafiado diante de casos em que os limites estabelecidos pela ética na literatura psicanalítica e de psicoterapia de orientaçao analítica sao pouco claros ou insuficientes. Ademais, esses casos exigem decisoes baseadas em experiência clínica e na presunçao de um julgamento adequado sobre cada situaçao. Deve a moral individual interferir na decisao? Agirei da melhor maneira e de acordo com os preceitos profissionais estabelecidos? O que fazer ao me deparar com uma situaçao eticamente questionável em um tratamento já iniciado?

Em revisao da literatura, encontram-se poucos trabalhos acerca do tema. Cruz1 ressalta a importância do respeito à intimidade do paciente e do estabelecimento de limites claros entre a curiosidade necessária ao trabalho do psicoterapeuta e o fetichismo invasivo motivado por uma provável patologia narcísica sua, baseando-se nos escritos de Bion e Meltzer sobre o tema. No mesmo trabalho, Golbert1 complementa tal ponto de vista, embasando-se em Freud2, quando ele afirma que, devendo superar a tentaçao de assumir uma postura messiânica, cabe ao médico propiciar ao paciente recursos egoicos que o capacitem a tomar suas próprias decisoes, sendo esse seu papel. Penso serem também os textos técnicos de Freud a principal fonte para o embasamento de toda a prescriçao ética para o psicoterapeuta.

Neste trabalho, pretendo realizar uma revisao teórica sobre ética, em sua origem na filosofia e em suas aplicaçoes na técnica da psicoterapia de orientaçao analítica e, baseado em experiências clínicas ímpares e curiosas, identificar e discutir fatores importantes para o estabelecimento de uma conduta ética específica para o procedimento psicoterápico.


ÉTICA E MORAL: CONCEITUAÇAO FILOSOFICA E DIFERENCIAÇAO

Cortina & Martínez3 definem que "ética" procede do grego "ethos", palavra que inicialmente definia a casa ou lugar em que se vive e, posteriormente, passou a significar "caráter ou modo de ser de um indivíduo ou grupo". Da mesma forma, atribuem a origem de "moral" ao termo latino "mos" ou "moris", com significado original de "costume", tendo evoluído também para "caráter ou modo de ser". Assim, os autores concluem que "ética" e "moral" confluem em um significado semelhante: ambos os termos fariam alusao a tudo o que se refere ao caráter, adquirido e aprimorado ao longo da existência pela prática de hábitos considerados bons. Propoem que se mantenha o termo "moral" para denotar os diferentes códigos morais concretos e o termo "ética", para definir a filosofia moral. Portanto, cabem à ética o esclarecimento, a fundamentaçao e a aplicaçao dos princípios morais.

Furrow4 diz que a ética nao se restringe à moral. Amplia-se, porque busca a fundamentaçao teórica das açoes morais para encontrar o melhor modo de viver e conviver, isto é, propoe a busca de um melhor estilo de vida, tanto público quanto privado. Segundo ele, o estudo da moral passa pelo entendimento da açao moral, executada pelo agente moral. O principal pré-requisito para a açao moral é a autonomia, que engloba a capacidade de tomar decisoes e responsabilizar-se por elas, para que outros possam se responsabilizar por suas próprias tomadas de decisoes.

Furrow segue dizendo que podemos entender a moralidade de duas maneiras: a primeira como motivada pelo interesse próprio, originando o que se conhece em filosofia por egoísmo ético, e a segunda em termos de contrato social. O egoísmo ético define-se por açoes que dizem respeito a motivaçoes individuais, levando-se em conta apenas a liberdade individual. Torna-se paradoxal quando pensamos em moral como base de uma conduta ética. Nesse ponto, entram as motivaçoes, conscientes ou inconscientes (estas últimas nao consideradas pelo autor) do que motiva um contrato social. Se o egoísmo ético imperasse, viveríamos sempre à mercê de sucumbirmos ao desejo de liberdade do outro. Logo, pensa-se na moralidade como um contrato social em funçao do qual é necessário abrir mao de parte da liberdade individual para se obter segurança. Assim, pode-se concluir que agir moralmente implica em ser um cooperador confiável. Do contrário, abrem-se precedentes para a desonestidade e a incoerência.


ÉTICA PROFISSIONAL INTEGRADA AOS OBJETIVOS DA PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇAO ANALITICA

O profissional que exerce a psicoterapia de orientaçao analítica deve seguir o código de ética de seu conselho profissional. Em relaçao aos médicos, Cesarino diz:

"(...) enquanto membro ativo de suas sociedades profissionais, gerais e de especialidades, o psicanalista está, como todos os outros profissionais médicos, ligado às determinaçoes de seu Código de Ética (...). Isso define com clareza suficiente suas obrigaçoes enquanto protagonista da sociedade em que vive e trabalha."5 p. 201.


É importante definir os espaços em que a ética se realiza. Zajdsznajder6 fala-nos sobre cinco deles: 1) o da atividade humana propriamente dita, que envolve a tomada de decisoes sobre atos específicos (mentir ou dizer a verdade, por exemplo) e no que se colocam as divisoes interiores e os sentimentos de culpa, angústia ou superioridade moral, sendo este considerado o espaço de base para os demais; 2) o da reflexao ética, como subconjunto do primeiro, em que se examinam as questoes em jogo e se buscam justificativas para os atos; 3) o das normas ou dos códigos, como espaço do discurso e das instituiçoes sociais em que se afirmam os deveres e expectativas; 4) o dos conceitos éticos, em que se tratam os nós conceituais que unem o discurso, o juízo e as reflexoes éticas (como liberdade, responsabilidade, dever, inclinaçao, justiça, felicidade); 5) o das teorias éticas, cujo objetivo é o de apresentar as razoes para que se cumpram as normas éticas, pela elucidaçao da natureza da situaçao ética e também da elucidaçao conceitual, pelo questionamento filosófico. Em termos da prática médica e psicoterápica, pode-se dizer que as realizaçoes nos espaços 4 e 5 embasam as formulaçoes no espaço 3, que, por sua vez, normatiza as aplicaçoes nos espaços 1 e 2.

Sobre o sigilo profissional, Liberal7 coloca que é o principal pilar de sustentaçao do prestígio da medicina. Diz também que é peça fundamental, pois garante ao paciente o direito de expor suas fragilidades com a maior liberdade possível e o respeito à sua intimidade.

Sobre o aspecto da ética na psiquiatria, Fé8 destaca a importância de um entendimento dinâmico do adoecer psíquico, por vezes a única maneira encontrada pelo paciente para expressar seu anseio por liberdade e autonomia e pela qual engendra uma fuga para a dor frente a situaçoes de vida com as quais nao é capaz de lidar. O autor aponta também que a finalidade do tratamento é promover crescimento e amadurecimento emocionais, o que demanda uma atitude de profundo respeito por parte do médico. Em linha semelhante, a respeito da ética na psicoterapia, Portolese9 enfatiza que a experiência emocional necessária à mudança no tratamento precisa de espaço e receptividade para ocorrer. Ressalta também a importância da neutralidade como peça chave no desenvolvimento da confiança na relaçao, o cuidado que o terapeuta deve ter no contato social com seu paciente, sem adotar uma atitude fóbica, e a necessidade de cuidar de si próprio para que possa, entao, cuidar adequadamente de seus pacientes.


SOBRE AS RECOMENDAÇOES DE FREUD

Freud inicia "Recomendaçoes aos Médicos que Exercem a Psicanálise" dizendo:

"As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência, no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos (...). Minha esperança é que a observaçao delas poupe aos médicos que exercem a psicanálise muito esforço desnecessário e resguarde-os contra algumas inadvertências. Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; nao me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ser levado a adotar atitude diferente em relaçao a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta."10 p. 125.


O teor ético do texto evidencia-se na preocupaçao de estabelecer regras relativas à postura psicanalítica e psicoterápica e na afirmaçao de que essas regras nao sao universais e absolutas, servindo à individualidade do autor e sendo oferecidas como modelo para seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, conforme assinala Mabilde11, o tom do texto é conciliador, mas sua autoridade é total, uma vez que desvios de conduta poderiam levar a erros e prejuízos graves ao paciente, ao analista e à própria psicanálise.

Uma das mais importantes recomendaçoes afirma ser condiçao fundamental para tornar-se analista submeter-se ao que Freud chama de "purificaçao psicanalítica". Tal estado poderia ser atingido tanto pela autoanálise ou a análise dos próprios sonhos, como também pelo que mais tarde convencionou-se chamar de análise didática, ou seja, o candidato a analista deve submeter-se a uma análise pessoal com um colega mais experiente. Isso o tornaria apto a perceber os seus próprios conflitos (ou a cura da própria neurose, caso houvesse alguma) e melhoraria a sua capacidade de voltar o seu inconsciente receptor ao inconsciente emissor do paciente, o que propiciaria o tipo de comunicaçao favorável à análise. Mondrzak12 reafirma a importância que essa recomendaçao de Freud assumiu ao longo dos últimos cem anos, ao apontar que, nos institutos ligados à International Psychoanalytical Association (IPA), a análise pessoal é uma exigência para a formaçao analítica.

A recomendaçao descrita acima lança as bases para o desenvolvimento de outra. Nela, Freud diz ser essencial que o médico mantenha o que chama de atençao livremente flutuante, que seria a contrapartida do médico à associaçao livre do paciente. Assim como na associaçao livre é recomendável despir-se de censuras para evitar o surgimento de resistências e seleçao ao material relatado, a atençao flutuante evita que o médico escolha demais o que apreender do material apresentado. Aqui encontram concordância também as recomendaçoes de nao tomar notas nem aferrar-se às lembranças factuais da história, e também a afirmaçao de que, no caso de o médico conseguir manter uma atençao flutuante suficientemente livre, as memórias importantes ligadas aos fatos ou afetos da sessao surgirao no momento oportuno10 .

Duas das regras sugeridas por Freud causam estranheza quando vistas na atualidade, pela forma como foram enunciadas na época. As metáforas do cirurgiao e do espelho descrevem a frieza e a opacidade/reflexividade que o médico deveria ter para com seu paciente, para evitar que seus conflitos interferissem no conflito do paciente, sobrecarregando-o. Além disso, evitariam também que o envolvimento emocional excessivo do médico com os dilemas de seus pacientes o tornasse incapaz de um atendimento analítico adequado10. Ao longo dos últimos cem anos, tais recomendaçoes aperfeiçoaram-se, originando as conhecidas regras do anonimato e da neutralidade. Sabe-se também, à luz da teoria e técnica contemporâneas, considerando-se os mais recentes desenvolvimentos em termos de campo analítico e intersubjetividade, que o anonimato e a neutralidade nao sao nem devem ser absolutos. Eizirik13 cunhou o termo "neutralidade possível" para referir-se a esse aspecto ético da técnica psicanalítica dos dias atuais, cujos objetivos terapêuticos permanecem os mesmos da época de Freud apesar das mudanças ocorridas em sua forma.

Outras duas prescriçoes originam o que se convencionou chamar de regra da abstinência. Freud recomenda que se evitem sugestoes ou condutas educativas do paciente a respeito do próprio funcionamento mental, como sugestoes de livros ou explicaçoes técnicas. Isso poderia levar a excessivas intelectualizaçoes e à falsa sensaçao de compreensao e melhora, visto que funcionaria como defesa ou resistência. Ademais, Freud alerta quanto aos riscos de se exigir do paciente um grau ou quantidade de sublimaçoes acima do que é capaz de alcançar10. Quando o médico avalia alguém para tratamento, é inevitável que desenvolva expectativas de melhora que acabem por envolver a sua própria capacidade e menospreze as limitaçoes ou os objetivos do paciente em relaçao à análise. Os riscos envolvidos na manutençao dessa tensao de expectativas discrepantes sao os de um desfecho desfavorável do tratamento e prejuízo ao paciente, bem como o de frustraçao do médico ao perceber o ocorrido como um fracasso terapêutico.

Em relaçao à tomada de notas ou elaboraçao de material clínico para apresentaçao, Freud recomenda que as informaçoes colhidas sejam breves e até inexatas, para evitar a seleçao indevida de material e a fim de manter o anonimato do paciente. Além disso, reforça que jamais se trabalhe sobre um caso ainda em andamento, pois isso poderia influenciar o processo analítico e acarretar-lhe problemas, ao depositar expectativas quanto ao caso10.

Ao fim do texto, Freud diz sentir-se cético e pouco esperançoso quanto ao tratamento analítico de familiares dos pacientes. Nao especifica se pelo mesmo terapeuta, mas creio que se pode depreender que sim10. Em "Sobre o início do tratamento", escreve:

"Dificuldades especiais surgem quando o analista e seu novo paciente, ou suas famílias, acham-se em termos de amizade ou têm laços sociais um com o outro. O psicanalista chamado a encarregar-se do tratamento da esposa ou do filho de um amigo deve estar preparado para que isso lhes custe essa amizade, qualquer que seja o resultado do tratamento; todavia, terá de fazer o sacrifício, se nao puder encontrar um substituto merecedor de confiança."14 p. 141.


Sobre a técnica dos dias atuais, Mabilde11 reforça que muito do que Freud apregoou em 1912 precisou ser modificado, principalmente quando se passou, entendo eu, a valorizar a contratransferência e seus desenvolvimentos conceituais, apresentados pelos intersubjetivistas. Estes últimos, de acordo com o autor supracitado, passam a considerar o terapeuta como interativo no processo, o que torna impossível a neutralidade absoluta e a atençao flutuante em seu estado mais puro, conforme recomendado por Freud. Barranger & Barranger15 propoem que o insight proporcionado pela situaçao analítica ocorre nao pela observaçao objetiva e interpretaçao do analista sobre o que se passa com o paciente, mas pela compreensao do que acontece no campo dinâmico que se forma entre analista e paciente, o que inclui a própria situaçao contratransferencial. Dessa forma, paciente e analista estabelecem um novo tipo de comunicaçao e constroem algo juntos, ao compartilharem um processo reparatório15 .

Vinhetas clínicas: um psicoterapeuta em busca de uma postura ética

Apresento e discuto a seguir quatro situaçoes ocorridas em minha clínica psicoterápica que se prestam a questionamentos de natureza ética. Tais situaçoes exigiram-me reflexao e decisao acerca da conduta mais adequada a ser tomada com vistas a propiciar as melhores condiçoes para o desenvolvimento de um atendimento psicoterápico eficiente e útil. Considerei o benefício do paciente, a melhor capacidade do terapeuta e, nos casos em que decidi pela continuidade do atendimento, também a capacidade mental do paciente em lidar com a situaçao.

Os métodos utilizados para a manutençao do sigilo nas descriçoes clínicas foram o disfarce de características pessoais, o fornecimento mínimo de informaçoes e o uso de compostos, conforme descritos por Gabbard16. Ao mesmo tempo, preservaram-se os dados necessários ao entendimento dinâmico dos casos16 .

I. Augusto e a mae, ou a mae de Augusto?

Retomo nesta vinheta o caso iniciado na introduçao.

Ao saber que a mae de Augusto havia sido minha paciente, ocorrem-me importantes questionamentos de ordem ética. Poderei aceitá-lo em psicoterapia, uma vez que já atendi sua mae? A alta fora recente, com uma percepçao de objetivos iniciais concluídos e, na medida do possível, uma correspondência de expectativas entre terapeuta e paciente.

Tento afastar-me desses pensamentos e concentrar-me no que me relata Augusto. A partir do primeiro momento em que o paciente a menciona, a mae parece invadir a sessao, tanto na mente do paciente quanto na minha.

Sinto como se travasse uma batalha entre manter uma atençao livremente flutuante, sem prenderme rigidamente ao relato propriamente dito, e uma necessidade em manter-me totalmente atento a tudo o que me relata. Tento permanecer neutro, mas é difícil. A cada vez que Augusto menciona a mae, a figura que me vem à mente é a de minha antiga paciente, em conflito com a mae que o paciente traz. A sessao prossegue, e, durante todo o tempo, questiono-me quanto a se conseguirei manter a separaçao entre ambas em minha mente. Ao final, percebo que nao e julgo-me incapaz, em termos éticos, de prover a Augusto um atendimento psicoterápico adequado e honesto no qual eu consiga manter-me neutro e abstinente o bastante para nao comparar as duas visoes sobre a mae e nao emitir julgamentos a respeito das relaçoes entre mae e filho.

No encerramento da consulta, comunico-lhe meu impedimento, com uma explicaçao breve sobre o motivo. Augusto lamenta, mas aceita e parece entender a situaçao. Ao despedir-se, agradece e diz ter percebido minha atitude como honesta. Encaminho Augusto a um colega próximo.

II. Vizinhos de porta

O telefonema de Joao parecia já repleto de ruídos: perguntou se eu era mesmo psiquiatra, se atendia na cidade, se tinha consultório, há quanto tempo; queria saber em quais dias da semana eu atendia e teve muita dificuldade em agendar um horário possível para comparecer à consulta. Uma vez superada essa parte, Joao solicita um segundo horário, no mesmo dia, para que eu atendesse seu vizinho de apartamento, de preferência em sequência, pois faziam questao de ir juntos à consulta.

Expliquei-lhe que só faço atendimentos individuais, e ele insistiu em dizer que eram duas consultas, individuais, que apenas queriam ir juntos, pois como moravam no mesmo prédio, gostariam de dividir o custo do transporte. Nao havia disponibilidade na agenda para o mesmo dia de Joao, de modo que ofereci outro dia para o atendimento de seu vizinho. Joao insistiu em encontrar outro dia em que o arranjo fosse possível.

Fiquei desconfortável com a situaçao, senti-me pressionado desde o início do contato a fazer concessoes e moldar meu trabalho às preferências de Joao. Procurei outro dia na agenda, passei-lhe a data, mas ressaltei que ficaria distante e pareceu-me necessário fazer-lhe algumas perguntas: viriam de fora da cidade? Onde moravam? O deslocamento era difícil? Aparentemente, nenhum dado da realidade confirmava a necessidade do comparecimento conjunto no mesmo dia. Sugeri que mantivéssemos o horário de Joao e agendássemos a consulta de seu vizinho para outro dia, ao que ele agradeceu, dizendo que preferia, entao, manter apenas o seu horário. Joao nao compareceu no dia combinado e nunca mais entrou em contato.

Penso no que pode ter motivado essas duas pessoas a tentarem uma consulta em dupla com tanta insistência. A situaçao e a agenda nao nos davam muitas alternativas ao rumo tomado, mas questiono-me se teria sido diferente caso eu nao tivesse perguntado sobre distâncias e tivesse cedido a agendar da maneira como queriam no dia em que fosse possível. Penso que seria necessário avaliar muito bem a situaçao, examinar o quanto seriam dois atendimentos separados ou um atendimento duplo, com interferências, tanto de maneira direta quanto de um jeito mais sutil, pela intromissao de um na mente do outro através de minha própria mente. Seria eu capaz de manter, novamente, o distanciamento adequado e necessário para o bom atendimento?

Se, por um lado, optei por nao ceder e deixei passar a oportunidade de examinar in loco uma situaçao peculiar, por outro, penso que o sentimento contratransferencial suscitado pelo telefonema tenha sido um bom indicador de que algo poderia nao correr bem no processo. Em geral, sou bastante flexível com solicitaçoes de agendamento ou mesmo trocas de horários, mas, neste caso, a partir de um determinado ponto, passei a me sentir sem saída. Ao mesmo tempo, era como se houvesse intromissoes que impedissem um atendimento fluido, espontâneo, livre. Nessas pré-condiçoes, julguei-me incapaz de continuar com o caso. Talvez com outro terapeuta a situaçao se desenvolvesse de maneira completamente diferente, e aí vejo também a necessidade de um posicionamento ético, de nos propormos a atender somente quando nos sentirmos capazes disso.

III. Primos

Após quatro meses de tratamento, ao final de uma sessao, Alberto diz que precisa contar-me algo sobre seu primo, Ernesto, também meu paciente, em acompanhamento há cerca de cinco meses. A família se preocupa com que Ernesto tenha deixado de me contar algo muito importante, mas que, ao mesmo tempo, causa a ele muita vergonha e que já havia deixado de contar a outros médicos, o que levara tratamentos anteriores ao insucesso.

Sinto-me alarmado, pois a colocaçao de Alberto poe em xeque um princípio ético fundamental, o da manutençao do sigilo médico. Lembro-me da história de Ernesto, identifico um ponto bastante sensível que ele já havia me contado e sobre o qual trabalhávamos e contenho meu impulso de acalmar Alberto contando-lhe isso, pois parece genuinamente preocupado. Afinal, agora os complicadores sao dois: ambos sao parentes, o que eu desconhecia, e um queria falar sobre o outro.

Tomo a atitude que costumo tomar quando familiares que nao se tratam comigo trazem situaçoes semelhantes: digo a ele que entendo sua preocupaçao e que ele nao deve contar-me o suposto segredo de seu primo, uma vez que isso implicaria em um rompimento de sigilo e nao parece haver motivos para isso (riscos de agressao ou morte). Sugiro que os familiares conversem com Ernesto sobre essa preocupaçao e que o incentivem a trazer esse assunto em sua próxima consulta comigo, ou que alguém da família, que nao seja Alberto, acompanhe Ernesto em sua próxima consulta, com o seu consentimento, caso achem necessário. Digo-lhe também que preciso contar a Ernesto sobre nosso contato, certamente sem revelar qualquer informaçao sobre o tratamento de Alberto.

O paciente parece aliviado, e seu primo traz o assunto na consulta seguinte. Com isso resolvido, o parentesco até entao desconhecido entre eles paira no ar junto com minha dúvida quanto a poder continuar a atendê-los simultaneamente. Tenho receio de nao saber lidar com possíveis situaçoes futuras que possam advir, semelhantes ou até mesmo mais complicadas, suscitadas por suas relaçoes. Como esta é a primeira vez que um surge no tratamento e mesmo na história do outro, julgo ser possível manter os dois atendimentos, em paralelo, como vinha fazendo até entao, uma vez que, neste caso, nao sinto minha capacidade de pensar afetada por memórias de um ou de outro durante as sessoes. Aquela foi a única vez em que suas vidas mentais cruzaram uma com a outra em meu consultório.

IV. Encaminhada pelo ex-namorado

De um local onde trabalhei, surge um encaminhamento: um colega de outra área com quem tenho pouco contato solicita meu cartao, pois gostaria de recomendar-me a uma amiga, que estaria sofrendo de uma tristeza desmedida nos últimos meses.

Passo-lhe o contato e depois de algumas semanas recebo em atendimento Regina, mulher de meia idade, funcionária pública, separada, com dois filhos adultos, satisfeita profissionalmente, mas afundada em sintomas depressivos intensos, quase incapacitantes. Questionada sobre o possível fator desencadeante para a crise atual, revela-me que tudo começou após o término de um namoro poucos meses antes. O ex-namorado decidira encerrar a relaçao, depois de muitas idas e vindas de Regina, apaixonada pelo parceiro, mas também culpada por pensar que seus filhos nao aceitariam o namoro. Insistia em manter o relacionamento em segredo, o que incomodava ao ex-namorado e a ela também, por nao se sentir satisfeita com a relaçao, apesar de desconfiar que seus filhos já soubessem.

Por algum tempo nao consegue ir além desse ponto. As sessoes parecem se repetir e percebo que me sinto, ora como Regina, insatisfeito pela limitaçao em nosso trabalho, imposta por algo nao dito, ora talvez como os filhos, desconfiado de que ela sonegasse informaçoes importantes sobre si. A sensaçao se confirma quando Regina inicia uma sessao dizendo ser impossível continuar caso nao me conte algo que vem escondendo desde o início: que seu ex-namorado é o meu colega de trabalho que a encaminhou.

Neste caso, surge a questao da ética entre profissionais. Fico receoso de que meu colega me pergunte sobre Regina e penso em como evocar o sigilo sem desequilibrar meu ambiente profissional. Acredito ser possível continuar a atendê-la sem que isso seja um problema, em especial pela própria conduta ética de meu colega. Uma vez, após o início do tratamento de Regina, ao passar por mim no trabalho, agradeceu-me por eu tê-la recebido em atendimento, e aquela foi a única ocasiao em que tocou no assunto. Como disse, nao éramos próximos. Convivíamos no trabalho, trocávamos cumprimentos e eventualmente tínhamos algumas conversas triviais.

Essa distância certamente também contribuiu para que a imagem do parceiro trazida por Regina e minha própria visao de meu colega nao interferissem, nem no tratamento dela, nem em minhas relaçoes profissionais. Acredito que teria sido mais difícil ou mesmo impossível caso fôssemos amigos próximos. Muitas vezes, ao encontrar meu colega, eu me lembrava de Regina e do que me relatava sobre seu relacionamento com ele.


CONCLUSAO

Esses quatro breves relatos podem servir como ilustraçao para tantas outras situaçoes que contribuem para o abalo da posiçao ética do psicoterapeuta. Manter a postura é difícil e requer um constante exercício de autorreflexao. Perdê-la momentaneamente para, em seguida, retomá-la mediante entendimento do que se passa no processo psicoterápico contribui para que possamos continuar a ser colaboradores confiáveis enquanto terapeutas. Ogden17 considera essencial que terapeuta e paciente sejam capazes de assumir a plena responsabilidade por seus próprios e respectivos comportamentos, conscientes e inconscientes, dentro da sessao.

Refletir sobre si próprio e sobre a própria conduta no atendimento é um processo complexo que perpassa vários conceitos e temas psicanalíticos importantes. Dentre eles, considero possível destacar a atençao livremente flutuante, os aspectos da estrutura de setting (a neutralidade e seus correlatos: abstinência e anonimato) e a análise da contratransferência e do que se passa no campo bipessoal.

Manter a atençao livremente flutuante tornou-se difícil no caso de Augusto, pois o prévio conhecimento de sua mae como paciente influenciava minha capacidade de pensá-la como a mae internalizada pelo paciente em vez de como a mulher que se apresentara anteriormente a mim, com sua própria configuraçao de mundo interno.

Os aspectos de estrutura do setting perpassam todos os quatro casos descritos, mas acredito que o destaque surja no caso de Ernesto e Alberto. Aqui, pode-se constatar que uma quebra de sigilo ocorre (a confirmaçao indireta de que Ernesto era meu paciente), mesmo que sem maiores consequências, como resultado de uma rigidez excessiva do terapeuta ao propor a conversa entre os familiares e a presença de um acompanhante na sessao seguinte. Ao pensar sobre o caso, vejo que uma conduta mais adequada teria sido ouvir o que Alberto tinha a dizer e permanecer em silêncio sobre qualquer aspecto referente a Ernesto. Creio que o temor, comum em psicoterapeutas iniciantes, de que uma flexibilidade excessiva pudesse levar a uma transgressao, tenha influenciado minha prolixidade neste caso.

Quanto à análise da contratransferência e observaçao do campo, destaca-se tanto no caso dos vizinhos quanto no de Regina. No primeiro, a insistência para que eu modificasse minha agenda e meus horários conforme a vontade de Joao despertou-me algo inicialmente nao identificado, uma espécie de alerta perturbando um campo intersubjetivo já pré-estabelecido desde o telefonema. Caso os atendimentos houvessem ocorrido, a contratransferência poderia ter servido de ferramenta para o entendimento do que se passava com cada um e entre os dois. Já com Regina, a sensaçao de estar constrito e de ter informaçoes sonegadas forneceu-me uma pista para algo que surgia e poderia ter se tornado um entrave no tratamento. Além disso, refleti também sobre se conseguiria manter-me anônimo a ela, uma vez que mantinha contato com alguém que fazia parte de meu círculo profissional e chegara até mim por indicaçao dele.

Definir uma conduta ética universal a ser seguida pelo psicoterapeuta é tarefa presunçosa, frustrada e desafiadora. Creio, porém, que levantar questionamentos e tecer consideraçoes a respeito do assunto seja a melhor maneira de abordar esse aspecto tao relevante para a nossa prática profissional.


REFERENCIAS

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* Psiquiatra.

Instituiçao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Medicina, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Centro de Estudos Luis Guedes.

Correspondência
Adriano Neujahr Agostini
Rua Visconde de Pelotas, Nº 603 - Sala 601
CEP: 95020-180 - Caxias do Sul (RS)
E-mail: adagostini@gmail.com

Trabalho de conclusao do 1º ano do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luis Guedes, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, 2012, orientado por Luiz Carlos Mabilde.

 

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