Rev. bras. psicoter. 2013; 15(1):26-45
Barros LF, Roos KNC, Badia IE, Hernández BG, Honório DR. A influência da imigraçao na relaçao de casal: estudo de um caso. Rev. bras. psicoter. 2013;15(1):26-45
Artigos Originais
A influência da imigraçao na relaçao de casal: estudo de um casoa
The Influence of Immigration in Couple Relationship: Case Studya
Luisa Falceto de Barros*; Karla N. Conejero Roos**; Inmaculada Edo Badia***; Begoña Gil Hernández****; Dora Rebelo Honório*****
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Como se sabe, o casal tem evoluído ao longo do tempo, e isso fica patente nos casais que emigram para outros países e recebem influências da cultura local sobre sua formadeorganizaçao. Cerca de 5.000 chilenos emigraram para Barcelona, e outros muitos escolheram outras cidades da Espanha, numa tentativa de melhorarsuas condiçoes de vida. O foco desta pesquisa é o tema do casal e da relaçao conjugal com particular ênfase nos possíveis efeitos da imigraçao sobre o casal.
No que se refere ao casal, desenvolvemos uma definiçao, expomos a situaçao atual do casal e os conceitos que conformam os componentes do amor, descrevemos o que entendemos por vinculaçao amorosa, os elementos relacionais do casal, seu ciclo vital e, dentro dele, a importância dos acordos nos projetos básicos e no comprometimento, e acrescentamos uma tipologia de casal segundo a forma de administrar os conflitos. Para entendermos melhor o processo migratório, consideramos a perspectiva de gênero e descrevemos os conceitos de vínculos brandos e fortes, os modelos culturais dos casais latinoamericanos e também o que entendemos por perda ambígua e lealdades familiares.
Casal e relaçao conjugal
Conforme Campo e Linares1, um casal está conformado por duas pessoas de famílias diferentes (com algumas exceçoes), geralmente de diferente gênero do ponto de vista estatístico e demográfico, que resolvem vincular-se afetivamente para compartilhar um projeto comum, o que inclui apoiar-se e oferecer um ao outro coisas importantes, e que têm um espaço próprio que exclui os outros, mas que interage com o entorno social. A relaçao de casal é uma das mais intensas que se podem estabelecer, constituindo a única comunidade de máxima significaçao fora da família de origem, com a diferença de que o casal deve construir o vínculo e passa por uma trabalhosa acomodaçao das identidades individuais.
Além disso, o casal é um sistema muito complexo, pois é composto por dois indivíduos já complexos que trazem potencialidades de pensamento, emoçoes e açoes para a relaçao e que agem no presente com seus respectivos passados.
A instituiçao conjugal passou por diferentes transformaçoes ao longo do tempo. Assim, na atualidade, o casal é dificilmente concebível sem certo grau de vinculaçao amorosa ou de atraçao sexual, além de implicar a ideia de que amar é fazer com que o outro se sinta amado. Para que o encontro e a escolha se tornem possíveis se deve verificar um certo estado de insatisfaçao com o presente, um desejo de mudança e deve existir uma predisposiçao ou energia interior para iniciar uma nova etapa. Isso conflui na identificaçao de uma série de necessidades que o outro precisa satisfazer e que estao relacionadas com questoes tao básicas como o pertencimento ou a diferenciaçao.Segundo os mesmos autores citados1 , no amor se encontram componentes cognitivos, emocionais e pragmáticos (o que pensamos, sentimos e fazemos em relaçao ao ser amado), que mudam quando o amor se transforma em desamor.
Os componentes cognitivos sao o reconhecimento e a valorizaçao. Por um lado, o reconhecimento é a percepçao do outro como ser dotado de uma identidade própria. Com o amor, a confirmaçao implica aceitar o ser amado como alguém diferente e cuja existência se impoe com intensidade. Com o desamor, pode se produzir a desconfirmaçao, pela qual o outro é ignorado e esquecido, tendo sua identidade apagada (a identidade do outro perde importância). E, por outro lado, a valorizaçao implica destacar e apreciar as qualidades de alguém. Com o amor, é comum que se dê uma tendência à mitificaçao e, com o desamor, surge a desqualificaçao, que é o fenômeno contrário.
Quanto aos componentes afetivos, os autores1 destacam um estado afetivo de base, a ternura, que pode durar o tempo de toda a história amorosa. Com o desamor, a ternura desaparece, e evidencia-se se o amor nasceu pela igualdade (que faria aflorar o tédio), ou pela diferença (pelo que surgiria a irritaçao). A paixao, por sua vez, é pouco duradoura e pode degenerar em raiva e ódio quando desponta o desamor.
Por último, dentre os componentes pragmáticos, destacam-se: o desejo, constituído por impulsos voltados à aproximaçao em relaçao ao outro, e que pode se transformar em rejeiçao quando o amor desaparece; o sexo, que é a prática mais específica do casal e cujo significado varia extraordinariamente, sendo uma metáfora expressiva da situaçao do casal. O sexo também é descrito como um comportamento relacional complexo ligado à obtençao de prazer (que, com o desamor, transforma-se em desprazer e, ainda, em dor), na gestao da vida cotidiana; aliado ao amor, ele produz colaboraçao e apoio, enquanto que, com o desamor, o contínuo boicote e abandono.
Amar e sentir-se amado nao significam a mesma coisa para todo o mundo. Esses sentimentos remetem a experiências e aprendizados adquiridos previamente no seio da família de origem. Assim, os cônjuges precisam negociar se desejam uma vinculaçao amorosa total ou parcial. O acordo quanto a esse aspecto é um dos fundamentos básicos do casal, e qualquer acordo é válido desde que exista concordância nos termos.
A vinculaçao total é o desejo de compartilhar toda a vida. Nesse caso, a relaçao se torna determinante e prioritária: o outro passa a ser um referente significativo e necessário, o que implica ser amado e o estabelecimento de um vínculo pelo qual ambos os membros do casal esperam sentir-se valorizados, desejados e reconhecidos de forma recíproca com expectativas de lealdade. Os ingredientes dessa vinculaçao sao a confiança e a segurança.
A vinculaçao parcial se foca em áreas ligadas à relaçao. Nao se exige que o vínculo impregne toda a vida, nem que satisfaça todas as necessidades afetivas de forma prioritária, pois existem outras relaçoes afetivas intensas (filhos, pais, irmaos, etc.).
Vários elementos conformam a organizaçao do casal. Eles sao negociados e sao alvo de consensos entre os membros, evoluindo ao longo do tempo. Os elementos mais destacados dessa organizaçao sao a hierarquia, a coesao e a adaptabilidade.1
A hierarquia pode tender para a simetria ou para a complementaridade. Sob a simetria, os participantes tendem a igualar sua conduta recíproca. Nesse caso, a interaçao se caracteriza pela igualdade e pela diferença mínima. Sob a complementaridade, a conduta de um dos participantes complementa à do outro; existiriam na relaçao duas posiçoes diferentes: uma pessoa estaria numa posiçao superior, ou primária, e a outra, numa inferior, ou secundária. Esse tipo de interaçao estaria baseado num máximo de diferença.2
Os casais podem funcionar bem com qualquer fórmula hierárquica desde que haja um acordo básico e mecanismos de negociaçao permanentes. O contexto social fornece um marco de referência externo, regulado inclusive pelas leis. Hoje, na nossa sociedade, a lei preconiza a igualdade de deveres e direitos, propiciando a simetria, mesmo que seja o casal quem decide e define o tipo de relaçao. Os casais complementares rígidos correm o risco de que o membro inferior tenha confirmadas suas inclinaçoes para a depressao ou o alcoolismo, ou de que o superior faça uso da violência. As simétricas, por sua vez, podem chegar à ruptura ou à triangulaçao dos filhos.
Outro elemento da organizaçao é a coesao. O casal pode tender a dissolver sua individualidade no espaço dual (aglutinaçao), ou a afirmar e consolidar a singularidade nos espaços pessoais (desligamento).
Outro componente é a adaptabilidade aos diferentes contextos e às etapas evolutivas que impoe o ciclo vital. Os casais mais flexíveis serao capazes de modificar sua estrutura em funçao das circunstâncias, e os mais rígidos terao dificuldades para adaptar-se ao meio.1
Além da organizaçao, no casal também existe uma mitologia, construída mediante alguma forma de negociaçao implícita a partir das narrativas individuais que cada membro traz e que comprometerá os cônjuges a compartilharem espaços cognitivos, valores e crenças, emocionais (clima emocional) e pragmáticos, rituais. 1
A organizaçao e a mitologia dos casais criam uma atmosfera relacional que inclui os dois membros e outras pessoas que dependam deles. Campo e Linares1 estabelecem tipologias de casal e realizam uma classificaçao de acordo com a forma de conduzir conflitos. Os autores distinguem três tipos de casais: 1. o casal convalidante, com boa capacidade de negociaçao baseada na aceitaçao da legitimidade das posiçoes recíprocas e numa tolerância do conflito como fenômeno interativo; 2.o casal explosivo, com alto grau de conflituosidade; brigam constantemente, mas lidam com essa situaçao naturalmente; 3. o casal evitador, que nega o conflito constantemente.
Também o ciclo vital exerce influência sobre o casal, pois ele é um sistema relacionalmente vivo, em constante interaçao com o entorno e submetido a uma continua evoluçao. O casal passa por diferentes etapas.
A primeira etapa, ou fundadora, é um período de exploraçao mútua para construir uma relaçao estável. A relaçao constitui-se inicialmente olhando para o presente com a troca amorosa (reconhecimento, valorizaçao, ternura e prazer). Nessa etapa, a consolidaçao do casal virá com a explicitaçao do comprometimento e a elaboraçao de uma espécie de contrato, quando é realizado algum ritual. O comprometimento faz referência ao contrato implícito estabelecido pelos membros do casal e pelo qual é definido de comum acordo o que é, para eles, ser um casal.
Essa consolidaçao também se efetivará pela incorporaçao de projetos em comum. Se ambos estiverem interessados em que a relaçao prevaleça, o acordo será sobre a finalidade e o conteúdo dos planos em comum. Qualquer projeto pode ser válido desde que seja assumido de forma suficientemente clara por ambos. Caso contrário, o projeto pode se transformar facilmente num motivo de conflito. Projetos como os de ter uma casa em comum, ou filhos, sao exemplos de questoes em relaçao às quais o casal deve decidir e que, às vezes, implicam que um dos participantes tenha de abrir mao dos seus próprios projetos pessoais e, por isso, a atitude do outro é decisiva. A emigraçao em busca de melhores condiçoes de vida se inscreve nesta seçao. A falta de acordo nessas áreas pode se dar desde o início, mas, às vezes, acontece que os desacordos decorrem de mudanças individuais originadas com o tempo e que colocam em questao o núcleo do casal.A segunda etapa, marcada pela chegada dos filhos, é de grandes mudanças, e, para ser pais, nao é conveniente deixar de ser um casal. Quando os filhos crescem, transformam-se em atores ativos e podem passar a intervir em jogos disfuncionais do casal. A terceira etapa se desenvolve com o novo desafio que implica o adolescente para a família. Quando os filhos começam a se ausentar, começa a quarta etapa, a da síndrome do ninho vazio. Essa última etapa é a mais longa e complexa e pode exacerbar conflitos que levem à separaçao ou ao divórcio. A quinta etapa vem com a velhice, fecha o ciclo vital do casal com eventos de perdas, como a da atividade profissional, a de membros da família significativos, etc. Na relaçao com os filhos, acontece uma inversao devido à doença e ao processo de envelhecimento dos dois membros do casal.
Casais no contexto intercultural
O fenômeno migratório tem provocado a coabitaçao entre pessoas com diferentes patrimônios culturais e, consequentemente, o nascimento do contato entre culturas que marca a sociedade atual. Seja pelo aspecto econômico, sociopolítico, ou por razoes ideológicas, as migraçoes sao um fator relevante a considerar quando se analisa o fenômeno psicológico ou social.3
Os novos modelos familiares ligados à migraçao (transnacionais) apresentam formas muito diversas em funçao de uma variedade de fatores e circunstâncias, como: quem emigra primeiro e quem depois; onde nascem os filhos (no país de origem, ou no país de acolhida); se o casal está constituído por pessoas do mesmo país ou nao (casais mistos); quantas pessoas e quem estao reagrupados; se a uniao é de direito ou de fato; etc.4
Hoje em dia, ainda persiste uma perspectiva teórica individual que considera o imigrante isolado do contexto familiar e social. Por conseguinte, um avanço nesse sentido, e voltado para a conquista de uma perspectiva mais ampla e enriquecedora, implicaria o reconhecimento de que o projeto migratório nao afeta apenas o indivíduo, mas que conforma, por sua vez, um processo tanto familiar quanto social.5
A migraçao - seja ela opcional ou imposta - implica uma adaptaçao psicológica profunda.3 Essa perda que Falicov6 desenvolve sob o conceito de desenraizamento, divide-se em três tipos: social, cultural e físico. O desenraizamento social está ligado ao fato de que, com a migraçao, as subsequentes redes sociais de apoio se perdem. Por desenraizamento cultural, o autor entende que as histórias pessoais e as visoes pessoais sobre a realidade estao ancoradas em experiências vividas sobre gênero, raça, etnicidade e classe social, bem como nos significados retroalimentados a partir da cultura de origem. Por último, o desenraizamento físico compreende o fato de viver sem a familiaridade, nem as sensaçoes físicas habituais (os cheiros da comida, as cores e os sons). Assim, o desenraizamento é o resultado do estressante encontro com uma nova cultura e entorno, junto com a dor pela perda de cada aspecto físico, social e cultural da antiga cultura.
Os sentimentos de perda, pena e dor que acompanham uma migraçao já foram comparados com o processo de luto que acompanha outros tipos de perdas, como se reflete na chamada Síndrome de Ulisses. 7
Independentemente do tipo de migraçao, é inevitável que se dê uma reestruturaçao que afeta tanto a homeostase quanto a identidade familiar. Linares8 se refere à identidade como basicamente individual, mas fala da organizaçao familiar como sendo a soma das identidades.Ela compreende os diferentes subsistemas e seus respectivos limites, a hierarquia ou posiçoes de poder na família, as relaçoes entre as diferentes geraçoes e os papéis que cada uma das pessoas desempenha dentro do sistema familiar. Ao mesmo tempo, a referida reestruturaçao acontece durante um processo de luto caracterizado por uma perda ambígua que afeta cada membro da família e a família em sua totalidade.
O conceito de perda ambígua reflete, por um lado, a partida rumo a um novo país como um evento estressante que acarreta todos os tipos de perdas: o apoio da família, os amigos e a comunidade; a facilidade da língua materna; os costumes, a comida e as diferentes conexoes com o país de origem. Essas ausências físicas, mesmo que reais, sao diferentes daquelas causadas pela morte: numa migraçao, sempre é possível fantasiar com um eventual retorno ou com uma próxima reuniao com os seres queridos. Por outro lado, os imigrantes também conservam a esperança de que as cargas adicionais passem a ser mais leves quando seu árduo trabalho for recompensado com melhores condiçoes econômicas ou educacionais, ou com novas liberdades políticas ou culturais.6
A necessidade de restabelecer um sentido de coerência e de outorgar um significado às circunstâncias adversas se manifesta no surgimento do que poderia se pensar como rituais espontâneos que evocam presenças apesar das ausências mediante a recriaçao da familiaridade dos antigos espaços, sons, rostos, cheiros conhecidos, junto com outros rituais culturais na nova terra.
Pakman9 fala de dois conceitos importantes no processo migratório das famílias. Preconiza que o sistema social, por si mesmo, define os padroes e os roteiros que espera que seus membros repitam. Esses processos explícitos e implícitos fluem pelo simples fato de serem postos em andamento pela maioria dos indivíduos. No entanto, dentro do contexto social, cada pessoa cria vínculos próprios que a definem como um membro particular do sistema em que se encontra. Os vínculos fortes sao evidentes e explícitos; sao as relaçoes familiares e as amizades, por exemplo. Já os vínculos brandos sao menos explícitos e aparentemente menos importantes. É o caso das rotinas cotidianas (as comidas, os cheiros, a forma de cumprimentar, etc.) e os hábitos e costumes adquiridos por repetiçao. Isso coincide com o conceito de desenraizamento físico.6 Na imigraçao, esses vínculos ganham uma importância fundamental, pois passam a somar-se à experiência de ser desconhecido ou transparente num novo contexto social que se organiza de forma nao habitual para o sujeito, o que determina que o indivíduo precise voltar a dar sentido a sua existência, a demonstrar sua singularidade.
Conforme Rouse (in Falicov)6, a adaptaçao dos imigrantes ao país de acolhida se apresenta sob uma bifocalidade cultural, que teria relaçao com a capacidade de ver o mundo a partir de duas escalas de valores diferentes. Nesse sentido, o conflito intrafamiliar poderia surgir quando entre os membros, diferem os ritmos em que os novos valores sao adquiridos ou em que os anteriores sao conservados.
Em relaçao ao gênero, é possível afirmar que os papéis tradicionais continuam estando presentes em graus diferentes nas famílias latinas. No entanto, essa estrutura está mudando, especialmente nos casais jovens, nos quais o homem está mais disposto a aprender novas habilidades e a envolver-se nas tarefas da casa e no cuidado dos filhos.10
Quando chegam à Europa, os imigrantes latinos devem enfrentar novas complexidades em relaçao com os papéis de gênero e as dinâmicas de poder. As mudanças ocorridas no casal em decorrência da residência em um novo contexto demonstram que, assim como a migraçao pode aumentar a vulnerabilidade, ela também tem o potencial de redefinir os papéis e empoderar as mulheres.10 Quando as mulheres imigrantes encontram liberdades econômicas e de gênero que lhes eram negadas anteriormente, surgem dilemas estruturais. Elas estao mais predispostas a adotar novos valores que lhes permitam obter maiores liberdades pessoais.6
Outro ponto a considerar no processo migratório é o relativo às lealdades familiares. Segundo Boszormenyi-Nagy e Spark11, a lealdade pode se traduzir nas expectativas compartilhadas, mas nao escritas, que, mais tarde, seus membros chegam a cumprir, ou nao. Esse é um tema extremamente importante na hora de analisar situaçoes complexas de mudanças no ciclo vital, como é o caso da imigraçao.
A base biológica da lealdade familiar consiste principalmente nos vínculos consanguíneos e matrimoniais. O compromisso de lealdade é fundamental para gerar uma família e sustentá-la. Geralmente, a lealdade tem maior expressao nos laços de consanguinidade do que nos da família política. Quando uma nova família se forma, a partir da formaçao do casal, cada um dos membros entra com seus próprios roteiros, tradiçoes, mitos e rituais. Esses elementos que cada um traz, por sua vez, vao contribuindo para a definiçao e para a homeostase da família, dando a ela mais ou menos dinamismo, e maior ou menor rigidez a sua identidade cultural própria.
O conceito de lealdade se relaciona com o componente ético das relaçoes: a incapacidade para cumprir as obrigaçoes geradas pelo comprometimento com a família gera sentimentos de culpa, que, entao, funcionarao como forças de regulaçao do mesmo sistema ou do sistema de relaçoes criado pelo indivíduo em dívida. De fato, é possível afirmar que a dimensao ética é a que justifica a relaçao humana. O objetivo é sempre a igualdade/equidade, e o que justifica a proximidade e interesse entre as pessoas nao é tanto a qualidade de sua relaçao, mas, antes, a cooperaçao e o compartilhamento de suas raízes.12
A transmissao das heranças familiares é importante para a manutençao da coesao familiar e para a criaçao de significados comuns, desde que nao seja sentida como uma imposiçao. Uma família chega a um ideal de adaptaçao cultural quando proporciona a seus membros um espaço para sua própria criatividade e improviso.
Essa transmissao de heranças é um movimento natural para procurar dar continuidade e expressao à identidade. Idealmente, o indivíduo deveria encontrar na sua família criada espaço para diferenciar-se de sua família de origem, mantendo os valores e tradiçoes que mais preza e, ao mesmo tempo, as características particulares com as quais foi se definindo como indivíduo. As circunstâncias da migraçao, o equilíbrio psicológico, o contexto social atual e outros fatores podem influenciar no grau de tolerância ao estresse da migraçao.12
Sluzki13, Hernández e Mc Goldrick14 apontam a fratura da rede de origem, com a necessidade de reconstruçao de uma nova rede que decorre dela, como uma das consequências diretas da imigraçao. Essa particularidade faz emergir as necessidades que ficam sem satisfaçao em funçao da restriçao da rede social. Dessa forma, evidencia-se a dificuldade dos membros da família para atender a todas as necessidades de modo absoluto e harmônico. No caso específico do casal que apresenta um tipo de hierarquia interna complementar12, é possível que ocorra uma polarizaçao de papéis.
Tudo o que foi exposto até aqui nos faz pensar que o processo de imigraçao tem um efeito direto sobre a relaçao conjugal do casal imigrante. Além disso, supomos que é importante considerar esse efeito nas terapias familiares ou de casal de pessoas que vivenciam essa situaçao. Este estudo pretende se aproximar dessas mudanças.
OBJETIVOS
O objetivo geral deste trabalho é estudar o efeito da imigraçao na organizaçao de um casal sulamericano imigrante na Espanha, focando o estudo na mudança de papéis e do sistema de hierarquia de complementar para simétrico.
Procuramos aprofundar na questao do peso de fatores determinantes, como os da perda ambígua com o consequente desenraizamento físico, social e cultural, na mudança da hierarquia interna da relaçao conjugal do casal estudado.
Esse objetivo pode ser dividido em cinco objetivos específicos: 1. determinar a influência dos modelos culturais, próprios e do país de acolhida, na mudança da hierarquia interna da relaçao conjugal do casal; 2. delimitar o papel das famílias de origem de ambos os cônjuges na relaçao de casal; 3. apontar a importância da rede de apoio social de cada cônjuge, tanto no país de origem, quanto no país de acolhida; 4. indagar sobre o projeto migratório de cada membro do casal; 5. determinar como se deu a adaptaçao, tanto individual, quanto de casal, no país de acolhida.
METODOLOGIA
Nesta pesquisa, utilizamos o método de análise qualitativa do discurso, que propoe o estudo sistemático do texto falado e transcrito (produto do discurso) como forma do uso da língua como interaçao humana simbólica em seu contexto social, cognitivo, cultural, político e histórico.15
Participantes
A amostra é composta por um casal de imigrantes de origem chilena, residentes em Barcelona hádois anos. O casal foi atendido no Espaço Intercultural da Escola de Terapia Familiar do Hospital Sant Pau. O processo terapêutico começou em fevereiro de 2008 e constou de oito sessoes de terapia familiar. Os dois membros do casal compareceram, sozinhos, a sete sessoes, pois a sessao inicial foi com a família nuclear, uma vez que nao havia uma solicitaçao formal de terapia de casal. Os critérios de inclusao foram: dispor do material necessário (as gravaçoes das sessoes da terapia); que o casal tivesse uma hierarquia interna complementar no país de origem; e que algum membro da nossa equipe tivesse presenciado o processo terapêutico da família.
Descriçao do caso
Dados pessoais. A mulher (K), nascida em 1975, trabalhava, no momento da consulta, cuidando de uma pessoa idosa. O homem (D), nascido em 1978, trabalhava como peao. As filhas eram V (nascida em 1995, filha de K com um companheiro anterior) e B (nascida em 2004 e filha do casal K e D). Ambos os membros do casal eram de classe média-baixa no país de origem e tinham emigrado em busca de um futuro mais estável economicamente e de melhores oportunidades para suas filhas.
Motivo da consulta. O casal chegou à consulta encaminhado pela psicopedagoga do colégio da filha mais velha. O motivo apresentado pela mulher foi o comportamento da filha mais velha e a situaçao de separaçao vivenciada pelo casal alguns meses atrás. Outro motivo de preocupaçao era a irregularidade da situaçao administrativa da família na Espanha.
Quanto aos outros dados de interesse, cabe assinalar que a mae de K, R, foi a primeira a emigrar para a Espanha. O casal e as meninas vieram algum tempo depois e, atualmente, todos eles moram juntos num apartamento. No país de origem, D era quem trabalhava e sustentava economicamente a família, enquanto K era a encarregada dos afazeres domésticos e da criaçao das meninas.
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