Rev. bras. psicoter. 2012; 14(3):40-49
Mendonça LSC. Um estudo sobre atuaçao. Rev. bras. psicoter. 2012;14(3):40-49
Artigos Originais
Um estudo sobre atuaçao
A study on acting-out
Liana Souto Corrêa de Mendonça*
Resumo
Abstract
A atuaçaoa é um comportamento marcado por um ato impulsivo e inconsciente que surge com o intuito de substituir uma angústia que nao consegue ser expressa pela verbalizaçao. Assim, a resoluçao do conflito nao é permeada pela reflexao e pela elaboraçao. A evacuaçao aplaca a angústia. Esse foi o entendimento construído após a pesquisa realizada para a escrita deste trabalho.
O conceito de atuaçao, nos dias de hoje, tem se tornado quase vazio de significado, um jargao banalizado, que, sem um uso restrito, enfraquece os subsídios que a atuaçao pode fornecer sobre o paciente. Fala-se tanto em paciente atuador, em atuaçao na clínica, que cabe a pergunta: o que é, de fato, atuaçao?
O fenômeno designado por atuaçao tem gerado problemas na esfera conceitual, pois nao existe um consenso acerca do que ela seja, efetivamente, e, no âmbito da clínica - em que há um acordo quanto a que sua apariçao é um acontecimento importante no tratamento psicoterápico -, nem sempre é devidamente percebida, sendo, portanto, um grande desafio para o terapeuta.
O presente texto tem como objetivo principal realizar uma revisao teórica sobre o termo "atuaçao" e seus desdobramentos. Para esse fim, o trabalho está dividido em três partes.
Na primeira, será delineada uma definiçao do conceito, tendo como recurso teórico autores como Freud, Etchegoyen, Laplanche e Pontalis, Grinberg, Greenacre, Limentani, Zimerman.
Na segunda parte, a caracterizaçao do conceito é ampliada, assim como seus desdobramentos, chegando à discussao sobre as possibilidades que o entendimento da atuaçao abre no tratamento.
E, por fim, os comentários finais, em que procurarei sistematizar o conhecimento adquirido por meio deste estudo.
1 DEFINIÇAO DE ATUAÇAO
A atuaçao pode ser definida como uma açao impulsiva com o intuito de substituir uma recordaçao, uma verbalizaçao, um pensamento. Quem atua faz isso para nao pensar, nao lembrar, nao verbalizar, nao simbolizar e nao elaborar.
Desde sua origem, a noçao de atuaçao nao atinge uma concordância conceitual. Há indícios, como menciona Etchegoyen2, de que Freud se refere pela primeira vez ao tema em 1901, em "Psicopatologia da vida cotidiana", quando empregou o termo handeln, que significaria um ato-sintoma e que existiria para manter distante da consciência algo que nao pode ser recordado.
Em 1905, no caso Dora, Freud usa outro termo, agieren, que em português é traduzido como "atuar". Dessa forma, o que verdadeiramente importa é que Freud3,4,5 percebe esse comportamento em seu trabalho e Dora o ajuda a compreender a atuaçao, noçao já presente, portanto, nos primeiros escritos da área.
Assim, encontramos no caso Dora, de Freud, uma exemplificaçao de atuaçao, quando Dora, ao invés de falar sobre seus desejos, suas fantasias, seus conflitos, ela os atua perante o seu analista. Em seus escritos, diz Freud4:
[...] ela se vingou de mim como queria vingar-se dele, e me abandonou como se acreditara enganada e abandonada por ele. Assim, atuou uma parte essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no tratamento (p. 113, vol. VII).
Termo usado em psicanálise para designar as açoes que apresentam, quase sempre, um caráter impulsivo, relativamente em ruptura com os sistemas de motivaçao habituais do sujeito, relativamente isolável no decurso das suas atividades, e que toma muitas vezes uma forma auto ou hetero-agressiva. Para o psicanalista, o aparecimento do acting out é a marca da emergência do recalcado. Quando aparece no decorrer de uma análise (durante a sessao ou fora dela), o acting out tem de ser compreendido na sua conexao com a transferência, e frequentemente como uma tentativa para ignorá-la radicalmente (p. 6).
[...] podemos dizer que o paciente nao recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuaçao ou atua-o. Ele o reproduz nao como lembrança, mas como açao; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo (p. 165, vol. XII).
Talvez a descriçao mais sistemática da atuaçao foi apresentada por Fenichel, que o definiu como um ato no qual o inconsciente alivia a tensao mental e acarreta descargas parciais de impulsos repelidos (nao importa se esses impulsos expressam diretamente demandas instintivas ou sao reaçoes a demandas instintivas originais, por exemplo, sentimentos de culpa); a presente situaçao, de alguma maneira, conectada com o conteúdo reprimido, é usada como uma ocasiao para descarga de energias reprimidas; a catexia é deslocada das memórias reprimidas para o presente, e o deslocamento torna essa descarga possível (p. 455)b.
a) Caráter impulsivo;
b) Substitui o pensamento, a recordaçao, a simbolizaçao, a palavra e a elaboraçao;
c) Perturba a tarefa concebida no setting terapêutico; mas pode servir como fonte de conhecimento, uma vez compreendida e interpretada pela dupla;
d) Pode estar a serviço da comunicaçao ou apenas da informaçao, ou, ainda, da nao comunicaçao;
e) Representa o recalcado;
f) Pode ser compreendida como uma forma de transferência, ao mesmo tempo em que pode significar uma tentativa de ignorar a transferência;
g) Alivia a tensao mental;
h) Pode ser um meio para evacuaçao de energia.
Bion sustenta que o bebê nasce com uma preconcepçao do seio e, quando se encontra com o próprio seio (realization), constrói-se uma concepçao do seio. O que determinará o primeiro pensamento para Bion é a ausência do seio. Frente a essa emergência decisiva, o bebê tem duas alternativas: tolerar ou evitar a frustraçao (ausência). Se o bebê evitar a frustraçao, transforma o seio ausente em um seio mau presente e expulsa-o como um elemento beta. No entanto, quando é capaz de refrear a açao e tolera a frustraçao, reconhecendo o seio como ausente, constrói seu primeiro pensamento. O ato pelo qual, em vez de pensar o seio bom como ausente, expulsa-o como seio mau presente na forma de elemento beta é, para mim, o protótipo do acting out (p. 403).
[...] se poderia dizer que na atuaçao há um domínio do id sobre o ego mediante a intervençao de um superego primitivo que se faz executor das demandas do id, submetendo o ego. Quando a relaçao tirânica é projetada dentro do objeto, por meio da identificaçao projetiva, o superego projetado funciona como um superego parasitário que induz para o objeto a atuaçao (p. 705).
Nos pacientes atuadores se vê, paradoxalmente, um manejo exitoso da percepçao e da realidade, que lhes permite detectar com precisao o que ocorre nos objetos depositários de suas atuaçoes, em franco contraste com a distorçao da realidade manifestada por outra parte de seu ego. Poder-se-ia dizer que, com elementos do processo secundário, atacam e "transformam" a realidade em elementos do processo primário. A atuaçao seria a dramatizaçao de um sonho, pela qual os pacientes tratam de modificar aloplasticamente o objeto para transformá-lo de autônomo em depositário. Utilizam massivamente a identificaçao projetiva para atacar os limites impostos pela realidade externa e os objetos contidos nela, e os convertem arbitrariamente, como fariam ao construir um sonho, transformando os elementos da realidade (restos diurnos) em elementos do processo primário. Corresponderia à forma em que, no passado infantil, se teria aproveitado a alucinaçao a serviço do princípio do prazer (p. 707).
Se a situaçao de atuaçao é trazida à análise, o paciente pode desenvolver sintomas claustrofóbicos. Ainda que Bion nao o explique, poderia se interpretar de acordo com a teoria continente-contido, no sentido de que quando a atuaçao é contida pela análise como um continente e nao é atuada o paciente se sente "preso" (p. 54).
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