ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2012; 14(3):25-39



Artigos Originais

Enactment: alguns aspectos do conceito e da sua abordagem em Psicoterapia de Orientaçao Analítica

Enactment: some aspects of the concept and its boarding in psychotherapy of analytical orientation

Alexandre Goellner*

Resumo

O conceito de enactment surgiu num cenário em que a contratransferência e os fenômenos resultantes da interaçao entre o paciente e o terapeuta passaram a ser cada vez mais discutidos e valorizados. Atualmente o termo é compreendido como uma revivência, uma encenaçao de elementos afetivos inconscientes de origem arcaica tanto do paciente como do terapeuta. Pode ser entendido como a resultante do interjogo de identificaçoes projetivas cruzadas entre a dupla, sendo que um participante "força" o outro a entrar em cena, assumindo um papel simbólico em sua vida. Tem havido considerável discussao na literatura sobre os limites do conceito. Alguns autores defendem a ideia de que todo o processo terapêutico nada mais é do que o desenrolar de inúmeros microenactments que ocorrem a todo instante ao longo do tratamento e que se constituiriam em pré-requisito para a ocorrência de mudanças psíquicas, sendo, portanto, desejáveis. Já outros autores permanecem mais reservados, assumindo a ideia de que o conceito, dessa forma, perderia sua especificidade. Eles preferem reservar o termo para um evento mais focal, em que um conluio inconsciente da dupla terapêutica é encenado. De qualquer forma, é consenso que, quando inevitavelmente acontece, um enactment poderá servir como ferramenta de trabalho se o terapeuta conseguir compreendê-lo, elaborá-lo contratransferencialmente e interpretálo para o paciente.

Descritores: Psicoterapia; Inconsciente (Psicologia); Atuaçao (Psicologia).

Abstract

The concept of enactment appeared in a scenario where the countertransference and the resultant phenomena from the interaction between the patient and the therapist became increasingly discussed and valued. Currently, the term is understood as a re-experience, a staging of unconscious affective elements of archaic origin both the patient's and therapist's. It can be understood as resulting of an interplay of cross projective-identifications between the dyad, being that a participant "forces" the other to enter into the scene, assuming a symbolic role in his or her life. There has been considerable discussion in the literature about the limits of the concept. Some authors argue that the whole therapeutic process is nothing more than the conduction of countless micro-enactments that occur throughout the treatment, making enactment a prerequisite for the occurrence of psychic changes and, therefore, a desirable event. Other authors remain more reserved, positing that the concept, if addressed so, would lose its specificity. These prefer to use the term for a more focal event, wherein an unconscious collusion of the therapeutic dyad is staged. Nevertheless, it is consensual that enactment, when it inevitably come about, can serve as a work tool, if the therapist can understand and elaborate his or her countertransference and interpret it to the patient.

Keywords: Psychotherapy; Unconscious (Psychology); Acting Out.

 

 

"Um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade"
Raul Seixas



INTRODUÇAO

O conceito de enactment tem se demonstrado importante nas últimas décadas por fazer parte dos fenômenos de campo analítico e intersubjetividade que enaltecem a importância da participaçao do terapeuta e da dupla como um todo no processo terapêutico. Sua compreensao cresce em importância, sobretudo entre psicoterapeutas mais jovens e inexperientes, que provavelmente têm uma maior tendência a "atuar" incons cientemente a contratransferência durante o processo terapêutico. Essas atuaçoes, se nao puderem ser bem compreendidas pelo terapeuta, podem levar a problemas de pontos cegos, impasse, violaçao de fronteiras e abandono de tratamento.

Ao contrário, quando a contratransferência pode ser bem compreendida e elaborada pelo terapeuta, torna-se importante ferramenta para o trabalho terapêutico.

Neste trabalho, busco fazer uma revisao bibliográfica sobre o conceito de enactment, com os principais autores que escreveram sobre o tema, e desenvolvo algumas consideraçoes a respeito da técnica para o seu manejo, utilizando um caso clínico como ilustraçao.


BASES HISTORICAS

Freud nunca se referiu ao termo enactment, mas emprega pela primeira vez o verbo agieren (acting, atuaçao) em 1905, no Posfácio do caso Dora, para designar que "a paciente atuou (agieren) um fragmento essencial de suas lembranças e fantasias, em lugar de reproduzi-lo no tratamento" (p. 113)1.

Assinalamentos quanto ao papel do terapeuta na produçao do acting-out aparecem nos trabalhos de Fenichel2, Bird3, Rosenfeld4 e Grinberg5,6.

Betty Joseph7 mostrou modos como pacientes de difícil acesso podem recrutar sutilmente o analista, induzindo-o a reagir de forma a entrar num conluio inconsciente com objetivos de evitar o insight.

Grinberg5,6 explica a existência do que ele chamou de "contraidentificaçao projetiva", designando com isso as reaçoes do analista frente a pacientes com identificaçoes projetivas maciças. Nela, o terapeuta se vê levado passivamente a desempenhar o papel que, de forma ativa - ainda que inconsciente -, o analisado "forçou dentro de si". Ele explica que, na contraidentificaçao projetiva, "o analista reage, em grande parte, de forma independente de seus próprios conflitos e corresponde de forma predominante ou exclusiva à intensidade e qualidade da identificaçao projetiva do analisado" (p. 117).

Etchegoyen8, destacando o papel do analista, e fazendo uma crítica a Grinberg5,6, afirma que "sempre pode se pensar que o analista, em última instância, participou, ainda que tenha se sentido forçado ou obrigado pela identificaçao projetiva do paciente". Para ele, a contraidentificaçao projetiva proposta por Grinberg pode ser uma forma "ativa" de nao compreender ou de preferir ser invadido. "Estas ocasioes", diz ele, "podem, muitas vezes, revelar o calcanhar de Aquiles do analista" (p. 152).

Zac9, sublinhando a peculiaridade do fenômeno em que o terapeuta participa na produçao/manutençao do acting-out do paciente, afirma que, quando isso acontece, "o acting-out inocula o receptor" (p. 335).

Sandler10 afirma que o paciente pode pressionar o analista a atuar determinados papéis (roles) da relaçao. Essas situaçoes poderiam ser consideradas como momentos em que está em jogo uma forma intermediária de resposta do terapeuta, entre suas próprias tendências e o papel que o paciente inconscientemente trata de estabelecer. Sandler chamou de role-responsiveness essa interaçao de fantasias e de comportamento, que muitas vezes determina um padrao específico de relaçao do paciente e de resposta do terapeuta, aproximando-se bastante do conceito de enactment. Ele enfatiza, ainda, que o mecanismo principal de compreensao desse interjogo relacional é o fenômeno da identificaçao projetiva.

A partir do entendimento de Bion11 a respeito da identificaçao projetiva, nao apenas como um produto vindo do paciente em relaçao ao terapeuta, mas também como um meio de comunicaçao entre as pessoas, foram sendo construídos os conceitos de campo analítico e intersubjetividade, que frisam a importância da relaçao da dupla terapeuta-paciente: ela teria peculiaridades únicas, sendo mais do que a soma de suas partes, e, nela, o terapeuta desempenharia um relevante papel.

É a partir de tais conceitos que o termo enactment começou a ganhar vida, frisando os acontecimentos decorrentes da interaçao terapeuta-paciente.


CONCEITO

Enactment, encenaçao, ou "colocaçao em cena da dupla", como propoe Cassorla12, é um termo que começou a ser utilizado na década de 80 por autores como Jacob13,14 e Mclaughlin15,16, que se referiam aos atos inconscientes da dupla terapeuta-paciente representativos de conflitos psicológicos arcaicos revividos no setting. É um conceito que guarda relaçao estreita com os conceitos de contratransferência, campo psicanalítico e intersubjetividade, na medida em que enfatiza fenômenos construtivo-dinâmicos da interaçao da dupla terapeuta-paciente.

Jacob13, em 1986, levantou a hipótese de que um enactment é resultado de comportamentos do paciente, do analista, ou de ambos, que brotam como uma resposta aos conflitos e às fantasias criadas pelo par durante o trabalho terapêutico. Para ele, a ideia de enactment contém a noçao de reenactment, ao relembrar fragmentos do passado psicológico da dupla.

Segundo Mclaughlin15, o termo enactment contém como sílaba principal "act", com seus derivativos, ou seja, é uma palavra derivada de "açao", "exercer poder", "um ator que exerce pressao sobre outro". Esse autor conceitua enactment como as interaçoes regressivas (defensivas) que ocorrem na dupla analítica, experimentadas como consequência do comportamento do outro. Ele explica, ainda, que todas as maneiras de interaçao entre o paciente e o analista, incluindo os gestos e as posturas, pertenceriam ao conceito de enactment.

Para diferenciar o referido conceito do termo acting-out, Mclaughlin16 se refere às atuaçoes e encenaçoes específicas do paciente com objetivos nao terapêuticos. Neste último caso, o terapeuta nao participa ativamente, mas apenas como observador. Já no enactment, existe participaçao ativa do terapeuta na produçao de um cenário em que sao revividas, no campo, experiências arcaicas da dupla. É quando o acting-out deixa de ser algo exclusivo do paciente e passa a integrar as açoes da dupla. Grinberg5,6 afirma que o acting-out se constrói como um sonho: certos elementos da realidade se transformam, regressivamente, em processo primário, e sao dramatizados e atuados na vigília, como um sonho que nao pode ser sonhado. Poderíamos entender o enactment da mesma forma, como um sonho sendo reproduzido no setting e compartilhado na mente do paciente e do analista.

A Associaçao Americana de Psicologia (APA), em 1992, definiu enactment como "uma vivência atualizada (actualization) da transferência, com um envolvimento involuntário do analista". A definiçao do conceito continua: "é visto como o esforço inconsciente do paciente para persuadir, ou forçar o analista para uma açao recíproca: um interjogo das configuraçoes internalizadas mais fundamentais do paciente" (p 78)17. Essa definiçao se aproxima bastante do conceito de identificaçao projetiva, quando o terapeuta é pressionado a sentir e se comportar de uma maneira consistente com as fantasias que o paciente projeta nele. Além disso, a APA nao dá tanta ênfase para o papel ativo, ainda que inconsciente, das açoes do terapeuta na produçao do enactment.

Os fenômenos de identificaçao projetiva recíproca e cruzada descritos por Racker18,19 e enfatizados pelos Baranger20 ao detalharem a teoria do campo analítico implicam momentos de indiscriminaçao inconsciente entre paciente e terapeuta. Nessas ocasioes, o mundo interno do terapeuta pode estar habitado pelos objetos internos do paciente, fazendo-o atuar padroes de comportamento complementares aos do paciente.

Por outro lado, o conceito de enactment enfatiza a participaçao ativa do analista na sua modelagem, que, por meio de seus conflitos e fantasias inconscientes em curso, interage e responde às pressoes recebidas do paciente em funçao das suas identificaçoes projetivas.

Gus21 enfatiza aspectos da realidade psíquica como sendo outro tipo de experiência subjetiva que ocorre paralelamente ao mundo dos objetos externos. As manifestaçoes dessa realidade psíquica sao percebidas pela transferência e pela contratransferência. Quando se inclui a realidade psíquica do terapeuta juntamente com a do paciente, criam-se fenômenos decorrentes de duas realidades internas. Pelo fato de a palavra mostrar-se insuficiente e nao conseguir conter sensaçoes e percepçoes dolorosas, estas precisam ser veiculadas por meio de atos e comportamentos nao verbais.

Cassorla12 evidencia pelo menos três utilidades práticas para o conceito de enactment: chama a atençao para algo que nao estava nomeado claramente, embora já descrito; nao tem o aspecto pejorativo atribuído ao termo acting-out e vai além desse conceito; ao insistir no papel de ambos os membros da dupla analítica, influindo-se mutuamente, enfatiza o aspecto intersubjetivo.

Para Gabbard22, as respostas contratransferenciais do terapeuta serao ativadas pelos estímulos do paciente, mas sua forma final será determinada pelos seus próprios conflitos e representaçoes internas. Ele chama a atençao para o fato de que o enactment representa, também, um risco para a violaçao de fronteiras profissionais. Como a contratransferência é, inicialmente, sempre inconsciente, os terapeutas podem nao ter certeza dos verdadeiros motivos de seu comportamento. Eles podem pensar que o que estao fazendo pelo paciente está baseado nas necessidades desse último, enquanto que um consultor ou supervisor poderá notar as necessidades muitas vezes óbvias do terapeuta e que estao sendo gratificadas ao serviço de uma bem racionalizada estratégia de ajuda ao paciente. Gabbard relata, ainda, que uma falha na mentalizaçao da dupla pode desencadear uma impossibilidade de reconhecer a dimensao do "como se fosse" da transferência e da contratransferência, sendo que, nessas ocasioes, o terapeuta pode agir, concretamente, como "pai bom", "mae boa", ou "amante ideal". Assim, a diferença entre símbolo e objeto se perde, e ambos os membros da dupla sucumbem num enactment nao mentalizado.


CONTROVÉRSIAS

Algumas controvérsias rondam o tema. Primeiramente, questiona-se se a ocorrência de um enactment seria, tipicamente, uma oportunidade benigna para o insight e crescimento pessoal, ou se suas consequências seriam mais frequentemente negativas. Para alguns autores, como Levenson23 e Renik24, o enactment assume potencialmente um caráter benigno. Renik chega a afirmar que o enactment nao é meramente a expressao de uma indesejável limitaçao contratransferencial, mas um pré-requisito para a mudança psicológica do paciente. Para ele, uma "experiência emocional corretiva" só pode acontecer numa interaçao terapêutica emocionalmente carregada, na qual o terapeuta pode participar espontaneamente. Lucion25, em 1999, relatando um caso clínico, afirma que "o fato de ter me deixado invadir por suas projeçoes, atuado contratransferencialmente e, posteriormente, ter podido discriminar o que era dela e o que era meu, permitiu um acesso diferente a conflitos da paciente" (p. 110).

Porém, para outros autores12,13,14,22,26,27,28,29, o enactment apresenta aspectos potencialmente negativos, na medida em que é uma oportunidade para que aconteçam pontos cegos e conluios, com a produçao de limitaçoes na capacidade do analista de poder pensar e conter o paciente. Para eles, embora o enactment seja considerado inevitável e informativo, pode ser também prejudicial para o paciente e para o processo terapêutico. Steiner26,27,28 considera que "um enactment interpretativo é considerado indesejável, porque suas influências nao-analíticas nos pacientes impedem sua capacidade de desenvolver seus próprios sentimentos e julgamentos". Ivey29 explica que o enactment é um caminho para a evasao inconsciente da dor psíquica. Dessa perspectiva, ele pode ter um caráter de comunicaçao da contrarresistência do terapeuta. O paciente, pela expressao de seus conflitos, pressiona o terapeuta, inconscientemente, a atuar de forma antiterapêutica, o que torna o enactment potencialmente perigoso para o sucesso do tratamento. Cassorla12 também segue essa linha, afirmando que um enactment nao é recomendável durante um processo de tratamento, mas lembra que sua ocorrência pode ser significativa em alguns pacientes.

Outra questao trazida à pauta diz respeito a se o enactment seria uma expressao comportamental inevitável da experiência contratransferencial, podendo ser, inclusive, pré-condiçao para a conscientizaçao e resoluçao da contratransferência, ou se a contratransferência poderia ser experienciada sem ser "encenada". Novamente, Levenson22 e Renik23 assumem a ideia de que o enactment é um fenômeno contínuo que constitui "o material sobre o que se está falando" na sessao. Sentimentos e expressoes seriam simultâneos e, mesmo que o terapeuta tente disfarçar seus estados afetivos, eles acabam por ser visíveis para o paciente na forma de postura, ritmo da respiraçao, gestos, expressao facial, entonaçoes da voz. Renik afirma, inclusive, que o enactment é precondiçao para que a conscientizaçao da contratransferência ocorra.

Carpy30 argumenta que um enactment contratransferencial parcial pode ser inevitável e necessário para o paciente reintrojetar seus aspectos cindidos. Dessa forma, a contratransferência é, ao mesmo tempo, expressada e tolerada. Se o terapeuta consegue nao atuar grosseiramente a sua contratransferência, o paciente poderá vê-lo sendo afetado pelo que está sendo projetado, percebendo entao que ele é "forte" o suficiente para tolerá-lo, o que pode trazer crescimento mental.

Para Steiner26,27,28, o conceito de enactment tem como premissa um limite entre pensamento e açao. Baseando-se em Bion11, ele afirma que o pensar é central para o conceito de "continência", o qual se refere à capacidade do analista de receber projeçoes, tolerando a tensao para reagir, e de responder afetivamente a elas. Nessa linha, ele faz uma clara distinçao entre conscientizaçao da contratransferência e o enactment.

Uma outra questao que suscita divergência entre os autores seria a relativa a se os enactments sao contínuos ou ocasionais. Friedman e Natterson31 apresentam a visao extrema de que os enactments sao contínuos nas análises e sao, essencialmente, apenas outra forma de descrever o processo analítico. Para eles, os enactments sao baseados na contínua vivência de fantasias inconscientes da dupla, sendo terapeuta e paciente participantes em equidistância.

Ivey29 critica essa visao no sentido de que ela pode estar eliminando a necessária assimetria entre terapeuta e paciente, além de ignorar o fato de que nem todos os pacientes inclinam o terapeuta para um enactment. Jacob14 também faz uma crítica aos mesmos autores, quando afirmam que qualquer açao na análise, incluindo a fala, constitui um enactment. Dessa forma, haveria uma ampliaçao demasiada do conceito, o que acarretaria a perda da sua especificidade.

Cassorla12 propoe que chamemos de enactments normais os enredos compartilhados pela dupla e que o terapeuta vai desfazendo com suas intervençoes e de enactments patológicos aqueles derivados de identificaçoes projetivas cruzadas anormais e que sao difíceis de evitar ou desfazer. Ele propoe a hipótese de que o enactment pode ser crônico ou agudo. Para esse autor, no enactment crônico, a performance inconsciente da dupla intromete-se no processo terapêutico, como se fosse uma colusao "necessária", enquanto a relaçao analítica nao se fortalece. Os enactments crônicos apareceriam sobremaneira no tratamento de pacientes mais frágeis, psicóticos, borderline. No enactment agudo, o processo terapêutico já se encontraria mais fortalecido, e a encenaçao da dupla poderia ser revelada por açao do terapeuta, que pode se dar conta do conluio e comunicá-lo ao paciente.

Outra questao trazida à discussao faz jus ao papel da subjetividade do terapeuta na construçao de um enactment. A visao do terapeuta como alguém inteiramente isento, neutro, que faz uma funçao de espelho do paciente e que enxerga a contratransferência como um obstáculo, hoje está superada. No entanto, pode-se ter muitas vezes a ideia de que o analista, utilizando a contratransferência a favor da terapia, conseguiria sempre de forma rápida e eficaz isolar e compreender as contribuiçoes de seus próprios conflitos para o desenvolvimento de um enactment. Segundo Ivey29, essa visao é uma lamentável ficçao. Para ele, o que é digno de nota nao é somente o quao atrasada e lenta pode ser a capacidade do terapeuta de perceber a contratransferência, mas também o quanto os esforços de analisar a si mesmo podem ter sucesso ou nao. Dentro dessa perspectiva, é importante frisar que, provavelmente, quanto melhor o nível de formaçao do terapeuta, bem como a possibilidade de estabelecer contatos com supervisores e colegas, maiores serao as possibilidades de autocompreensao e continência, diminuindo as chances de ocorrência de enactments.

Nao há, na literatura revisada, citaçoes quanto às chances de ocorrência de enactments em relaçao à fase em que se encontra o processo terapêutico. Penso que eles podem ocorrer em qualquer momento, mas que, nas fases iniciais de um processo, quando a aliança terapêutica pode ainda nao estar bem estabelecida, além de os mecanismos dinâmicos do paciente poderem nao estar ainda bem compreendidos, as chances de ocorrência de enactments, principalmente aqueles mais prejudiciais, sejam maiores.

Também nao foram encontradas citaçoes sobre possíveis diferenças entre a ocorrência de um enactment num processo de psicanálise ou num de psicoterapia de orientaçao analítica. Penso que sua ocorrência pode se dar em qualquer dos dois, mas que talvez num processo de psicoterapia seus potenciais danos poderao ser maiores, já que a frequência menor de sessoes propicia menos espaço terapêutico para abordar conluios inconscientes da dupla, com maiores riscos de abandono. Por outro lado, é provável que numa análise ocorram mais chances de desenvolvimento da neurose de transferência, o que acarreta uma maior regressao no campo e um analista possivelmente mais pressionado, o que também aumenta a chance de ocorrência de sentimentos contratransferenciais mais intensos.


EXEMPLO CLINICO

S é um homem de 46 anos, separado, com um filho adolescente, profissionalmente bem-sucedido. Havia brigado recentemente com a namorada, 15 anos mais moça. Para reatarem, ela havia exigido que S se tratasse, pois o achava "pedante", "chato" e afirmava que ele queria sempre impor suas regras no relacionamento. O tratamento iniciou com frequência de uma sessao por semana.

S relatava que nao entendia as mulheres, que tinha as melhores intençoes, mas que invariavelmente aconteciam discussoes e brigas sem motivos aparentes.

Na relaçao terapêutica, S era sentido por mim como crítico e arrogante. Em seu discurso predominavam relatos de brigas e discussoes que tinha na relaçao com a namorada. O foco era afirmar que nao se sentia compreendido, de que "ela" (a namorada) nao demonstrava afeto, nao tinha tempo para ele, só queria saber de trabalhar. Parecia que sentia o terapeuta aliado à namorada, já que verbalizava que estava se tratando por obrigaçao e achava que ela é quem deveria estar se tratando.

O jeito crítico de S tinha muitas vezes um efeito "paralisante" em mim. Quando dizia: "vocês, terapeutas, só sabem impor regras"; ou, entao: "eu acho que ir ao psicólogo ou psiquiatra é o mesmo que se prostituir", eu nao respondia verbalmente, mas me sentia atacado e permanecia em silêncio. Em muitas ocasioes, chamava-me de "meu guri" ou de "meu rapaz", o que me fazia sentir inferiorizado.

Numa sessao, após S relatar uma discussao com a namorada, intervim assinalando a possibilidade de haver participaçao sua na gênese da discórdia. S respondeu desta forma: "tá, o que é que eu faço com isso?". Intimamente, comecei a desejar que S abandonasse o tratamento. Numa ocasiao, S solicitou troca do horário de sua sessao, e, mesmo possuindo horários disponíveis, observei-me negando a possibilidade. Em outra oportunidade, após relatar outra discussao com a namorada e verbalizar que estava perdendo seu tempo, que pedia meus conselhos e eu nao lhe respondia nada, sem perceber, finalizei a sessao alguns minutos antes da hora. Sentia que, apesar de tentar me comunicar com S, ele nao recebia minhas intervençoes como eu esperava, o que me fazia sentir angustiado e impotente.

Levando o caso para minha supervisao e também para meu tratamento pessoal, pude compreender que S estava exercendo um papel inconsciente em meu mundo interno. Percebi que estava atuando meus sentimentos contratransferenciais no campo. Sentia raiva de meu paciente, pois ele nao se comportava como eu desejava, nao me valorizava, nao era um "bom paciente", nao demonstrava gostar das minhas intervençoes; pelo contrário, fazia-me sentir agredido, inferiorizado, desvalorizado, o que me ocasionava intensos sentimentos de angústia e ódio, dos quais eu precisava me livrar, ora atuando meu desejo de que S abandonasse o tratamento, ora agredindo S por meio de interpretaçoes pouco afetivas ou sem timing, que refletiam a "briga" inconsciente que se desenrolava. Os momentos em que eu ficava em silêncio eram momentos de paralisia da minha capacidade de pensar, já que nao estava conseguindo manejar meus intensos sentimentos contratransferenciais.

Entendi que esses sentimentos, revividos na relaçao com S, tinham significados especiais para mim, pois eu já os havia vivenciado em momentos anteriores de minha vida pessoal. Percebi que S exercia o papel de meu pai, nao necessariamente o "real", mas aquele que eu muitas vezes havia vivenciado pregressamente em minha fantasia infantil como "crítico", "arrogante", que castrava meus desejos libidinais e agressivos.

Pude entender que o mesmo, de maneira muito provável, também se dava com S, pois, ao invés de me perceber como alguém em quem podia confiar, via-me como alguém com quem precisava disputar algo. Muito provavelmente era o mesmo que ele sentia e lhe causava seus insucessos nas relaçoes amorosas. Posteriormente, isso ficou confirmado em funçao do aparecimento, nas sessoes, de sua relaçao historicamente "difícil" com seu pai.

Dessa forma, pelo interjogo de identificaçoes projetivas cruzadas inconscientes, configurou-se a ocorrência de um enactment, sendo que o processo terapêutico foi palco para a reencenaçao de conflitos internos da dupla terapeuta-paciente.

Compreendendo melhor essa dinâmica, pude lidar melhor com minha contratransferência, o que me propiciou a possibilidade de separar o que era "meu" do que era "dele". É importante dizer que, quando percebi e aceitei a minha raiva, também pude tolerá-la, o que propiciou o advento do meu sentimento de compaixao no campo. Pude aceitar meu paciente do jeito que ele era, com suas limitaçoes, suas defesas, sua agressividade. Segue trecho de uma sessao aos quatro meses do tratamento, na qual eu tentava manejar meus sentimentos contratransferenciais:

P: A M (namorada) nao sai da minha cabeça. Essa história de terminarmos e reatarmos várias vezes é meio estranha. Aquilo que tu me falaste, de eu ficar tentando controlar as coisas, até que me passou pela cabeça. Nao sei, o que tu achas?

T: É algo que tu sentiste como uma possibilidade. O que mais te vem à mente sobre isso? (tom de voz menos afetivo, mais defensivo).

P: (irritado) Nao sei, acho que nada. Aliás, essa é uma sensaçao que eu tenho seguidamente aqui. Eu venho, a gente conversa sobre um monte de coisas que eu nao sei bem o que sao, e eu fico cada vez mais confuso.

T: S, acho que quando eu nao te dei uma resposta como tu esperavas, tu ficaste frustrado (com tom de voz mais afetivo).

P: Pode ser. Mas a gente ficar falando essas coisas, nao consigo enxergar aonde isso vai me ajudar. Eu até percebo essa questao da necessidade de controle, isso de precisar respostas exatas, da necessidade de que me compreendam. Mas, e daí? Parece que eu nao vou conseguir passar por essa barreira.

T: Que barreira?

P: Pois é, aí é que está. Eu nao sei. E essa coisa de eu ter de transpor esta barreira me deixa mais confuso ainda. Porque, quando tu falas essas coisas, eu até entendo. Mas a sensaçao é de que eu vou continuar controlando, vou continuar precisando de respostas exatas, vou continuar necessitando que me compreendam.

T: Pois é. Temos de ver o que é essa barreira, e talvez o "tem de" esteja ligado a isso.

P: Tem de o quê? Nao entendi.

T: Sim. Há pouco tu usaste esta expressao para dizer como tu te sentes a respeito desta barreira. Que tu "tens de" atravessá-la. Uma obrigaçao, uma exigência.

P: Mas isso é real! Existe uma exigência de que eu mude! As coisas nao estao dando certo pra mim.

T: Sim. Claro que existe um pouco de exigência e obrigaçoes, senao ninguém se trataria. Mas o que chamou a atençao foi a ausência do outro lado disso, a tua liberdade de escolha.

P: (Pensa).

T: Talvez, tu estejas te questionando sobre se realmente queres mudar.

P: Ah, bom, aí até pode ser. É uma coisa que eu nao tinha pensado.

T: Por exemplo, às vezes se percebe que tu nao sentes as minhas intervençoes como um auxílio. Acho que isso acontece, porque elas nao entram em ti em prol de uma mudança que tu gostarias, mas sim como uma "obrigaçao de mudar". E aí fica pesado para ti.

P: Pode ser. Mas e daí. Como é que eu mudo isso? (Pensa) Porque até deve ter terapeutas por aí que, se isso acontece, acham que o paciente nao quer mudar e o mandam embora. Tipo "ah, tu nao quer te tratar, entao vai procurar tua turma". Mas eu acho que isso já é algo que tenha de ser tratado.

T: Sim, S, tu tens razao. O tratamento começa por aí.


No primeiro trecho da sessao, S entrega para mim a funçao de pensar. Faz isso porque nao tolera o pensar sobre si, já que essa tarefa vem acompanhada de severos julgamentos internos, o que lhe ocasiona angústia e culpa. A comunicaçao inconsciente que ele tenta endereçar a mim é que, na verdade, está sofrendo e precisa de meu auxílio, precisa que eu seja um terapeuta continente, afetivo, que aceite suas limitaçoes e pense por ele, pelo menos por algum tempo. Eu, por minha vez, nao me dando conta disso num primeiro momento, por estar ainda impregnado pela contratransferência negativa, devolvo a ele quase que imediatamente a tarefa, de maneira cruenta, nao transformada, praticamente num contra-ataque. Sentia que S nao se comportava como deveria, ele nao era um bom paciente, nao pensava, nao colaborava, apenas me pressionava para que resolvesse seus problemas por ele. Em minha fantasia inconsciente, meu desejo de ser valorizado e amado nao era satisfeito por S; pelo contrário, era reiteradamente frustrado, o que me agredia, angustiava e frustrava, e eu precisava me livrar desses sentimentos e devolver a ele toda essa tensao.

Após o paciente verbalizar que nao se sentiu compreendido, pude me dar conta da minha contratransferência e dos efeitos que sua atuaçao tinha tido em S, bem como do conluio inconsciente que ocorria entre nós, o que me permitiu acessar e interpretar o conteúdo latente do que ocorria no campo. Esforçando-me para tentar retirar de cena o que pertencia a mim, pude me apoderar melhor de meu papel de terapeuta continente, com isso podendo comunicar ao paciente o que ele sentia. Percebe-se que S vai se sentindo mais compreendido e "acolhido" no transcorrer da sessao, consegue observar em si mesmo a ocorrência de "barreiras" e praticamente pede para que o terapeuta nao o abandone, mas sim o ajude a se tratar.

Penso que o fato de eu ter reagido contratransferencialmente em muitos momentos nao foi precondiçao para o insight. Pelo contrário, significou potencial risco de insucesso para o tratamento. Minha atitude calma e compreensiva, "contendo" as projeçoes do paciente de forma afetiva, sem contra-atacar, foi o que propiciou o "desarme" e a compreensao por parte do paciente de seus próprios sentimentos agressivos e defensivos, aprofundando o processo terapêutico e levando-o a outro plano no qual a capacidade de autorreflexao pôde ser desenvolvida.


CONCLUSAO

Da mesma forma que vários autores12,13,14,22,26,27,28,29, penso que o conceito de enactment deve guardar especificidade para um evento com características mais focais, no qual a dupla terapeuta-paciente "reencena" vivências arcaicas de ambos no setting, e que acontece devido à nao elaboraçao da contratransferência por parte do terapeuta, que desta forma "atua", de forma inconsciente, as suas fantasias na relaçao com o paciente.

Penso que sua ocorrência nao deve ser considerada desejável, pelos riscos que representa para aumento da resistência, impasses e abandono de tratamento. Penso ainda, que atuar a contratransferência, mesmo sob formas sutis e nao verbais, nao é pré-requisito, nem tampouco o que proporciona a discriminaçao do que é do paciente e do terapeuta. Pelo contrário, entendo que a tolerância, a continência e a compreensao da díade transferência-contratransferência sao os fatores que podem levar ao sucesso terapêutico.

No entanto, é provável que a ocorrência de enactments seja inevitável na evoluçao de vários tratamentos, dependendo, para isso, de uma série de fatores, como experiência profissional e tratamento pessoal do terapeuta, intensidade da transferência e/ou das atuaçoes do paciente, bem como da fase em que o tratamento se encontra.

Quando acontece, deve-se procurar compreender o enactment em sua psicodinâmica, o que poderá proporcionar valioso material de trabalho, visando o insight. Para isso, depende-se da capacidade do terapeuta para compreender e tolerar a contratransferência, os papéis do paciente e de si mesmo na relaçao terapêutica e na produçao do enactment, além de uma sólida aliança terapêutica.


REFERENCIAS

1. Freud S. Fragmentos da análise de um caso de histeria. IV Postfácio (1905). In: Ediçao Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 2006. 19, p. 113.

2. Fenichel O. Teoria psicanalítica das neuroses (1934). Rio de Janeiro: Livraria Atheneu; 1981.

3. Bird B. A specific peculiarity of acting out. J Amer Psychoanal Assn 1957;5:630-647.

4. Rosenfeld HA. An investigation into the need of neurotic and psychotic pacients to act out during analysis. Psycothic States. New York: International Universities Press 1965.12:200-216.

5. Grinberg L. Sobre algunos problemas de técnica psicoanalítica determinados por la identificación y contraidentificación proyectivas. Revista de Psicoanálisis 1957;13:507-11.

6. Grinberg L. Perturbaciones en la interpretación por la contraidentificación proyectiva. Revista de Psicoanálisis 1957;14:23-30.

7. Etchegoyen RO. Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Porto Alegre: Artmed; 1987.

8. Joseph B. O paciente de difícil acesso. In: Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago; 1992.

9. Zac J. Consideraciones sobre el acting out y aspectos técnicos de su tratamiento. Revista de Psicoanálisis 1970;27:307-64.

10. Sandler J. Character traits and object relationships. J Psychoanal Q 1981;50:694-708.

11. Bion WR. The psycho-analitic study of thinking. Int J Psychoanal 1962;43:306-10.

12. Cassorla RMS. Desenvolvimento do conceito enactment ("colocaçao em cena da dupla") a partir do estudo de configuraçao borderline. Revista Brasileira de Psicanálise 2004;38(3):521-540.

13. Jacobs TJ. On countertransference enactments. J Am Psychoanal Assoc 1986;34:289-307.

14. Jacobs, TJ. Reflexoes sobre o papel da comunicaçao inconsciente e do enactment contratransferencial na situaçao analítica. In: Zaslavsky J, Santos MJP. Contratransferência: teoria e prática clínica. Porto Alegre: Artmed; 2006.

15. Mclaughlin J. The play of transference: some reflections on enactment in the psychoanalytic situation. J. Amer. Psichoanalytic Assn 1987;35:557-577.

16. Mclaughlin J. Clinical and theoretical aspects of enactment. J. Amer Psichoanalytic Assn 1991;39:595-612.

17. Hirsh I. The concept of enactment and theoretical convergence. Psychoanal Q 1998;67:78-100.

18. Racker H. Os significados e usos da contratransferência. In: Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed; 1982.

19. Racker H. A neurose de contratransferência. In: Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed; 1982.

20. Baranger W, Baranger M. La situación analítica como campo dinámico (1961). In: Problemas del campo analítico. Buenos Aires: Kairgieman; 1969. p. 129-164.

21. Gus M. Atuaçoes e encenaçoes (enactments). In: Eizirik CL, Aguiar RW, Schestatsky SS. Psicoterapia de orientaçao analítica: fundamentos teóricos e clínicos. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2005. p. 322-328.

22. Gabbard GO. Enactment contratransferencial e violaçao das fronteiras. In: Santos MJP, Zaslavsky J. Contratransferência: teoria e prática clínica. Porto Alegre: Artmed; 2006.

23. Levenson E. Response to John Steiner. Int J Psychoanal 2006;87:321-24.

24. Renik O. Analitic interaction: Conceptualizing technique in light of the analyst's irreducible subjectivity. Psychoanal Q 1993;62:553-571.

25. Lucion NK. Enactment. Rev Bras Psicot 1999;1(2):105-12.

26. Steiner J. Containment enactment and communication. Int J Psychoanal 2000;81:245-55.

27. Steiner J. Interpretative enactments and the analytic setting. Int J Psychoanal 2006;87:315-20.

28. Steiner J. Reply to Dr Levenson. Int J Psychoanal 2006;87:325-27.

29. Ivey G. Enactment controversies: a critical review of current debates. Int J Psichoanal 2008;89:19-38.

30. Carpy DV. Tolerating the countertransference: A mutative process. Int J Psychoanal 1989;76:91-101.

31. Friedman RJ, Natterson JM. Enactments: An intersubjective perspective. Psychoanal Q 1999;68:220-247.










* Psiquiatra e psicoterapeuta.

Instituiçao: Centro de Estudos Luis Guedes.

Correspondência
Rua Mostardeiro, 291, sala 301
Porto Alegre - RS - Brasil

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo