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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2025; 26(3):157-162



Resenha

Reflexões psicanalíticas sobre o uso excessivo de selfies a partir da obra literária Um senhor notável

Psychoanalytic reflections on the excessive use of selfies based on the literary work A remarkable lord

Reflexiones psicoanalíticas sobre el uso excesivo de selfies a partir de la obra literaria Un señor notable

Rafael Gomes Karama; Mariana Paim Santosa

Resumo

A ficção tem relação com a psicanálise, para isso é relevante o entendimento do processo criativo e ter uma compreensão psicanalítica da arte. Este trabalho tem como foco estudar conceitos psicanalíticos e o uso excessivo de selfies a partir da obra literária Um Senhor Notável. O uso excessivo de selfies pode se tornar um comportamento problemático e estar relacionado a temas da psicanálise como narcisismo, conflito estético, introjeção extrativa e falso self, sendo estes conceitos revisados a partir da análise de trechos desta obra. O estudo da psicanálise a partir da ficção pode contribuir para o aprendizado de temas complexos da área.

Descritores: Psicanálise; literatura; Redes sociais online

Abstract

Fiction is related to psychoanalysis, and for this reason it is important to understand the creative process and have a psychoanalytic understanding of art. This work focuses on studying psychoanalytic concepts and the excessive use of selfies based on the literary work A Remarkable Lord. The excessive use of selfies can become a problematic behavior and be related to psychoanalytic themes such as narcissism, aesthetic conflict, extractive introjection and false self, and these concepts are reviewed based on the analysis of excerpts from this work. The study of psychoanalysis based on fiction can contribute to the learning of complex themes in the area.

Keywords: Psychoanalysis; Literature; Social media

Resumen

La ficción está relacionada con el psicoanálisis y por eso es importante comprender el proceso creativo y tener una comprensión psicoanalítica del arte. Este trabajo se centra en el estudio de conceptos psicoanalíticos y el uso excesivo de selfies a partir de la obra literaria A Remarkable Lord. El uso excesivo de selfies puede convertirse en una conducta problemática y estar relacionada con temas psicoanalíticos como el narcisismo, el conflicto estético, la introyección extractiva y el falso self, conceptos que se revisan a partir del análisis de extractos de este trabajo. El estudio del psicoanálisis basado en la ficción puede contribuir al aprendizaje de temas complejos en el área.

Descriptores: Psicoanálisis; Literatura; Redes sociales en línea

 

 

Introdução

A psicanálise tem um papel relevante no entendimento do processo criativo literário, principalmente através da relação da dupla autor-leitor. Outro aspecto que a psicanálise contribui para a compressão literária é a construção psicológica de um personagem através de sua fala e também daquilo que não é dito e que fica nas entrelinhas, comparativo ao que está inconsciente na prática clínica1.

Meltzer destaca as emoções que surgem no encontro com o outro, isto é, na presença com o objeto. Ademais, descreve uma região misteriosa no objeto, que pode apenas ser imaginada. Esta área desconhecida seria o conflito estético, sendo o verdadeiro pensamento criativo2. Dessa forma, pode-se pensar no valor artístico da psicanálise através da formação de significados criados pela imaginação3. No caso da literatura, o encontro da dupla autor-leitor ocorreria através dos personagens criados pelo autor e das emoções e imagens geradas na mente do leitor.

Um Senhor Notável é uma obra literária classificada como infantojuvenil que aborda questões da contemporaneidade e das redes sociais, principalmente o uso de selfies e o valor dado pelo outro à imagem. A obra é complexa em metáforas e simbolismos dos dilemas atuais e traz uma riqueza de aspectos do humano na relação com e através da tecnologia. Esta resenha objetiva examinar a riqueza psíquica do personagem Senhor Aparecido a partir de conceitos psicanalíticos como narcisismo, conflito estético, introjeção extrativa, e falso self.

Referencial teórico

O livro "Um Senhor Notável" conta a história de um homem que chamava a atenção pela sua beleza e que adorava sua autoimagem. Na história, é chamado de Senhor Aparecido.

O Senhor Aparecido gostava muito da sua aparência e, após comprar um celular com câmera moderna, passou a tirar muitos selfies. Porém, um dia se olhou no espelho e seu rosto estava menos nítido e isso foi se agravando conforme tirava mais fotos de si mesmo até que seu rosto se tornou apenas um borrão.

Como a perda do rosto era irreversível, concluiu que só lhe restava uma chance: conseguir outro rosto ilegalmente. Por um preço exorbitante, o Senhor Aparecido comprou seu novo rosto que, segundo o vendedor, era à prova de cliques. Aparecido adorou seu novo rosto e ficou a noite inteira na frente do espelho contemplando com alegria seu próprio reflexo. Ao chegar em sua cafeteria favorita, viu com surpresa que todos os clientes sentados nas cadeiras do estabelecimento tinham o rosto igual ao seu. Assustado e perplexo, ele esbarra em uma garota que lhe disse que todos se acostumam a ser idênticos aos demais4.

Será examinado a seguir alguns trechos do livro à luz de conceitos psicanalíticos.


Narcisismo e selfies

"Digamos sinceramente: o Senhor Aparecido gostava muito de si mesmo, talvez fosse até um pouco narciso. Ele adorava sua aparência, seus traços tão expressivos, e se olhava no espelho com muita satisfação. Não é de estranhar, portanto, que depois de ter comprado um supercelular com uma câmera do modelo mais recente, ele tenha passado a tirar selfies com imenso prazer. Agora sua cara expressiva aparecia na frente de diversos lugares que visitava"4.

Nas patologias narcísicas, é comum existir uma falta de senso de identidade e continuidade do ser. Dentro disso, há uma dificuldade em reconhecer e lidar com a alteridade, isto é, uma diferenciação de si mesmo e do outro5.

O ato de tirar e publicar selfies em número excessivo pode representar uma fragilidade do ego, pois o sujeito pode ficar em busca incessante de agradar e ter um retorno do outro que vê a foto6. Ainda, os selfies utilizados de forma excessiva podem apontar para uma busca de construção de uma identidade a partir do olhar dos outros pelas curtidas nas redes sociais, fragilizando ainda mais o indivíduo7. Não por acaso, o vendedor de rostos lhe promete uma face à prova de cliques. Uma hipótese é que o Sr. Notável postasse fotos para se sentir desejado e amado, pois não foi narcizisado, investido suficientemente na infância pela mãe através de atenção e afeto para o desenvolvimento de um verdadeiro self8. Na obra, o Sr. Notável foi construindo imagens em busca do que receberia o maior número de curtidas nas redes sócias, mesmo que isto não estivesse de acordo com o seu verdadeiro self, borrando-o cada vez mais.


Conflito estético e selfies

"Infelizmente, as mudanças na sua aparência iam se agravando. Quanto mais 'clique, clique, clique', menos notável o Senhor Aparecido se tornava. A cada imagem de si mesmo que produzia, mais desfocada sua imagem real parecia ficar. 'Clique, clique, clique', e o contorno do queixo - antes tão masculino, tão incisivo - se desvanecia, reduzindo-se a um borrão"4.

Conflito estético é um termo caracterizado por Meltzer relacionado à uma experiência emocional que contribui para a formação de símbolos ou a função alfa já descrita por Bion. Ainda, está relacionado a um objeto que tem aspectos enigmáticos em seu interior, o qual só pode ser compreendido através de uma mente criativa capaz de imaginar o interior deste objeto. Este conflito estético remete à primeira relação objetal, o seio materno12.

As selfies são fotos instantâneas que podem ter a função de informar e comunicar algo, buscando uma exposição que podem ter o objetivo de serem visualizadas pelo outro9. O autor Tisseron cunhou o termo extimidade para descrever o ato de apresentar parte da sua vida íntima, psíquica e/ou física, buscando mostrar seu mundo interno ao outro, este termo viria antes do desenvolvimento da intimidade no mundo interno da criança. É mais tarde no desenvolvimento que a criança entende que cada indivíduo vivencia a experiência emocional de uma forma única e individual10,11. Assim, pode-se dizer que provavelmente o Sr. Notável não desenvolveu sua intimidade e que a necessidade de uma exposição compulsiva do seu mundo psíquico e físico possa ser uma tentativa frustrada de consegui-la.


Introjeção extrativa

"A perda do rosto era irreversível, portanto só lhe restava uma chance: conseguir outro ilegalmente. Ninguém sabe onde eles os arrumavam. Ele achou o endereço na internet, ajeitou o capuz sobre a cabeça e saiu em direção ao local"4.

Introjeção extrativa é um conceito cunhado pelo psicanalista Christopher Bollas para descrever o ato de roubar de forma metafórica um aspecto da vida psíquica de um indivíduo, podendo este comportamento ser classificado como um mecanismo de defesa que se caracteriza por gerar uma violência intersubjetiva no outro. Quando isto ocorre, o violado sente falta de partes do próprio self. Assim, essa pessoa com partes do self violadas se sente vazia, com um espaço de vácuo na mente. O conteúdo roubado pode representar um falso self, pois quem rouba os aspectos psíquicos de outro não apropria-se verdadeiramente, apesar de agir como se esses elementos fizessem parte de si.


Falso self e selfies

"Ele abriu a porta de sua cafeteria favorita, sacudiu a água do guarda-chuva e correu os olhos pelas mesas. Ficou perplexo. Todas as cadeiras estavam ocupadas por pessoas com um rosto igual ao dele. Os garçons tinham uma versão particular, própria para garçons, enquanto os baristas tinham uma própria para baristas. O Senhor Aparecido reparou também que existia uma versão especial feminina. Ele recuou, apavorado, e tentou fugir. Esbarrou por acidente em uma garota, que o fitou e disse: - Você se acostuma"4.

O crescimento do self ocorre através da presença de um ambiente suficientemente bom. Entretanto, se o ambiente não se adapta às necessidades do ser humano em desenvolvimento, o processo de adaptação e crescimento do self é interrompido. Assim, na presença desta falha ambiente e, para proteger o verdadeiro self, um falso self é formado, havendo perda da identidade. Esse falso self é um mecanismo de defesa com o objetivo de proteger o núcleo do verdadeiro self e que provoca um senso de inutilidade e irrealidade13.

Segundo Byung-Chul Han, conforme o autor, "...Em frente à câmera, nós nos esforçamos bastante para fazer a imagem condizer conosco, aproximar-se da nossa imagem interior, de nós mesmos, torná-la tangível. Fazemos uma pausa. Nós nos voltamos para dentro". Já selfie da forma que é utilizada pelo Sr. Notável, retira a história e marca de cada um, isto é, a própria alteridade14. No final do livro, todos estão com o mesmo rosto, se adaptando às exigências do ambiente por cliques, como um bebê que se adapta e se submete à mãe/ ambiente para ser amado.


Discussão

É importante diferenciar uma reação narcísica de uma personalidade narcisista: uma pessoa sem características narcisista pode parecer arrogante em situações estressoras. Para poder diferenciar a reação da personalidade narcisista, é essencial avaliar a história do paciente e o sentimento de contratransferência despertado para, assim, poder supor a estrutura de personalidade além das defesas apresentadas15.

Em relação ao personagem Senhor Aparecido4, pode-se caracterizá-lo como um indivíduo com aspectos narcisistas, que foi se tornando cada vez mais indiferenciado, sem uma identidade e, assim, indo em busca de um novo self no mercado clandestino. Este novo self pode ser simbolizado como um falso self necessário para se sentir aceito em um ambiente onde não há singularidade entre as pessoas e todas são iguais e submissas às curtidas dos outros para a formação da própria identidade. Uma possibilidade de compreensão, dentro da psicanálise, é que o Sr. Notável teve falha em seu ambiente durante a infância, não tendo uma mãe devota às suas necessidades. Dentro disso, o Sr. Notável teria precisado se adaptar ao ambiente e se submeter às exigências da mãe, deixando de ser espontâneo e formando um falso self, ficando também mais vulnerável às demandas do ambiente na vida adulta.


Conclusão

Este trabalho traz a literatura de ficção e o encontro da dupla autor-leitor como uma forma de experiência emocional e de contato com aspectos do humano, podendo também ser utilizadas para o estudo da teoria psicanalítica. Neste exemplo, a literatura traz a tecnologia, no caso o uso exagerado de selfies, como um possível fator associado ao aumento de aspectos narcisistas e à redução da singularidade na população em geral.

A obra "Um Senhor Notável"' nos presenteia com uma metáfora sensível e complexa da relação do humano com e através da tecnologia, abordando os caminhos psíquicos e sociais que podem emergir deste vinculo, especialmente quando ela se torna problemático. Também permite que através da psicanálise possamos pensar e estudar aspectos psíquicos associados ao tipo de uso da tecnologia, bem como maneiras de auxiliar na prevenção e tratamento de condições que tragam prejuízo.


Referências

01. Masina L. De tudo fica um pouco. Cap. Literatura e Psicanálise: conversas cordiais. Porto Alegre: Zouk, 2023.

02. Levy R. A Simbolização na psicanálise: Os processos de subjetivação e a dimensão estética da psicanálise. Cap. A construção da experiência de intimidade no processo analítico por meio da experiência estética: transformações em intimidade. São Paulo: Blucher, 2022.

03. Mélega MP. Apreensão da beleza e conflito estético. São Paulo, 2020.

04. Tokarczuk O. Um Senhor Notável. Tradução: Gabriel Borowaki. 1 ed. São Paulo: Baião, 2023.

05. Roussillon R. O Narcisismo e a análise do Eu. Cap. Desconstrução dos paradoxos do narcisismo e a primeira introdução do objeto em sua organização. Tradução: Vanise Pereira Dresch. São Paulo: Blucher, 2023.

06. Roussillon R. O Narcisismo e a análise do Eu. Cap. Problemática e paradoxos do narcisismo. Tradução: Vanise Pereira Dresch. São Paulo: Blucher, 2023.

07. Cubria AC. Ver e ser visto: considerações psicanalíticas sobre as redes sociais. Cap. Entre Selfies e curtidas: redes sociais e visibilidade. 1ªed. Curitiba: Appris, 2020.

08. Gabbard GO. Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica. Cap. Grupo B dos transtornos de personalidade, narcisista. Tradução: Maria Rita Secco Hofmeister. 4ªed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

09. Han BC. A crise da narração. Cap. A vida narrada. Tradução: Daniel Guilhermino. Rio de Janeiro: Vozes, 2023.

10. Cubria AC. Ver e ser visto: considerações psicanalíticas sobre as redes socias. Cap. Da Interioridade Moderna À Exterioiridade Contemporânea: considerações acerca da subjetividade. 1ªed. Curitiba: Appris, 2020.

11. Tisseron, S. Intimité et extimité. Communucations. Paris, n. 88, p. 83-91, 2011

12. Meltzer D, Williams MH. A Apreensão do Belo, Donald Meltzer e Meg Harris Williams - Rio de Janeiro: Imago, 1994. Cap.: Conflito Estético: Seu Lugar no Processo de Desenvolvimento.

13. Levy R. A Simbolização na psicanálise: Os processos de subjetivação e a dimensão estética da psicanálise. Cap. Os contemporâneos: Bion, Meltzer, Winnicott e contribuições posteriores. São Paulo: Blucher, 2022.

14. Han BC. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Cap. Selfies. Tradução de Rafael Rodrigues Garcia. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.

15. McWlliams N. Diagnóstico Psicanalítico: entendendo a estrutura da personalidade no processo clínico. Cap. Personalidades narcisistas. Tradução: Gabriela Wondracek Linck. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.










a Centro de Estudos Luís Guedes, UFRGS - Porto Alegre/RS - Brasil

Autor correspondente

Mariana Paim Santos
marianapaimsantos@gmail.com

Submetido em: 24/12/2024
Aceito em: 16/06/2025

Contribuições: Rafael Gomes Karam - Supervisão; Mariana Paim Santos - Redação - Revisão e Edição.

 

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