Rev. bras. psicoter. 2023; 25(2):51-66
Ribeiro DCPG, Araújo LF. Psicoterapia na velhice: representações sociais da qualidade de vida de pessoas idosas. Rev. bras. psicoter. 2023;25(2):51-66
Artigo Original
Psicoterapia na velhice: representações sociais da qualidade de vida de pessoas idosas
Psychotherapy in old age: Social representations of the quality of life of elderly people
Psicoterapia en la vejez: representaciones sociales de la calidad de vida de las personas mayores
Débora Cristiane Porto de Góis Ribeiro; Ludgleydson Fernandes de Araújo
Resumo
Abstract
Resumen
Introdução
Transições demográficas marcadas pelo envelhecimento populacional e aumento da expectativa de vida, possíveis dentre outros fatores por transformações epidemiológicas e alterações nos padrões de morbimortalidade que resultaram no aumento da longevidade, são realidade no mundo; uma transformação que ocorre mais rapidamente em países como Brasil 1.
É sabido que envelhecimento gera mudanças, influencia no desenvolvimento de uma nação e demanda Políticas Públicas adequadas, já que tais mudanças interferem diretamente na Qualidade de Vida (QV) das pessoas. Essa é uma questão que gera preocupação com as condições em que as populações envelhecem, sobretudo em países que detém um processo de envelhecimento acelerado nas últimas décadas. Neste sentido, países com grande população idosa, são convocados a adaptarem seus programas públicos, de modo a ofertarem condições mínimas para que as pessoas possam desenvolver suas potencialidades e ter uma QV melhor2,3.
QV, segundo conceito propagado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), se pauta na percepção do indivíduo de sua inserção na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações4. Tal conceito é amplo e contempla vários aspectos da vida que se relacionam a fatores objetivos em interação no campo social, político e econômico, e que favorecem o acesso a saúde, educação, habitação, saneamento básico e outras circunstâncias da vida; bem como, elementos de natureza subjetiva, de valor pessoal, que envolvem bem-estar espiritual, físico, mental, psicológico e emocional no campo pessoal e social5.
Diante do conceito citado pode se considerar que ter somente fatores objetivos favoráveis não assegura que a população idosa tenha garantida sua QV, pois os fatores subjetivos tem se apresentado como relevantes, destacando-se o conceito de bem estar subjetivo, considerado como a avaliação do próprio indivíduo sobre sua QV com base nos valores pessoais e expectativas sociais. Assim, tem sido crescente o interesse pelos fatores intrínsecos que correlacionam bem-estar e QV reforçando a importância de a pessoa idosa estar satisfeita com sua vida e suas relações, tanto no campo afetivo quanto social, em que oportunidades e condições de vida estão em interação. Essa compreensão torna QV em um conceito adaptativo, que varia em função dos padrões sócio-históricos e do próprio indivíduo, de forma que o processo através do qual se constrói a percepção sobre ele é subjetivo6,7.
Ademais, existe uma variedade de situações que incidem sobre a QV de pessoas idosas, variando de acordo com as especificidades de cada grupo dentro de uma população. Assim destaca-se a influência de fatores como a institucionalização, grau de autonomia e independência e até o ambiente em que se habita8.
Na velhice, a participação em grupos, atividades sociais, o contato pessoal com familiares e amigos podem aumentar as chances de sobrevivência, por trazerem maior satisfação com a vida, influenciando na saúde, na redução de dores, na adoção de um estilo de vida mais saudável e, um consequente aumento da QV9. Eles ajudam ainda com a prevenção de sintomas depressivos, suicídio, declínio cognitivo, solidão e contato social pouco adequado, que influenciam na redução da satisfação nas relações sociais, impactando na QV na velhice10.
Nesse sentido saúde mental é um aspecto importante da QV de pessoas idosas, na qual a psicoterapia pode contribuir, sendo uma forma de cuidado e uma via de superação das condições que afetam essas pessoas no seu dia a dia, conforme destaca um estudo realizado com idosos em um ambulatório do SUS. No citado estudo, os pesquisadores puderam observar que pessoas idosas que frequentam a psicoterapia expressaram gratidão com relação ao atendimento e com a efetividade do processo psicoterapêutico, demonstrando-se satisfeitos com a qualidade da escuta que recebiam dos profissionais psicólogos e perceberam o processo como uma forma de cuidado. Tal percepção, apesar de positiva e de trazer considerações valorosas sobre a psicoterapia com pessoas de mais idade, dada a outras situações particulares vivenciadas pelos idosos, como o isolamento social, não foi diretamente relacionada pelos pesquisadores à eficácia da terapia11.
Do ponto de vista do presente estudo, desenvolvido durante o período da pandemia da Covid-19, tempo em que o isolamento social refletiu na QV de pessoas idosas, trazer exemplos do reconhecimento positivo por parte dos idosos em relação ao processo psicoterapêutico por eles vivenciado, torna-se relevante. Essa importância se deve ao fato de que vontade de compartilhar vivências se constitui como base da psicoterapia, independentemente de modalidades específicas, além de mediar outro componente essencial desse processo que é a vontade de compartilhar com outras pessoas fora da sala de terapia, contribuindo assim para o bem estar e adaptação do indivíduo aos desafios da vida, reforçando mudanças intra e interpessoais13.
Pressupõe-se que a Psicoterapia reúne aspectos potencialmente importantes para a QV, pois consiste em "uma prática de intervenção sustentada por um campo de conhecimentos teóricos e técnicos fundamentados cientificamente, embasada por princípios éticos da profissão, que se desenvolve em contexto clínico e em um relacionamento interpessoal, junto a indivíduos, casais, famílias e demais grupos, decorrente de uma demanda psicológica com o objetivo de promover a saúde mental e propiciar condições para o enfrentamento de conflitos ou transtornos psíquicos"12. Destaca-se esse conceito em função deste estudo considerar as psicoterapias, sob a influência das diversas ênfases e mediadas unicamente por psicólogos.
A pessoa idosa em psicoterapia é um sujeito implicado subjetivamente no seu processo de envelhecimento e esse status demanda do psicólogo clínico a compreensão dos processos psíquicos presentes nele, de forma a acolher as demandas que essas pessoas trazem para o seting terapêutico. Essa necessidade tem contribuído para um exercício de amadurecimento do saber psicológico dentro da clínica, no sentido de repensar e construir práticas psicológicas contextualizadas e específicas para pessoas de mais idade. Contudo, é essencial que os profissionais reconheçam de que forma suas atitudes e crenças acerca da velhice influenciam no atendimento a esse público14 .
O campo psicoterapêutico mais aberto para a pessoa idosa é uma construção que tem resultado de desdobramentos no conhecimento acerca do envelhecimento humano ao longo de décadas. Nele, destacam-se intervenções sob a ótica de diversas abordagens, sendo elas influenciadas pelo processo de envelhecimento dos próprios psicólogos, que ao correlacionarem suas experiências pessoais com suas teorias e técnicas, construíram um novo olhar sobre a velhice e envelhecimento no contexto psicoterapêutico. Um dos maiores exemplos está na psicanálise, por muito tempo fechada ao reconhecimento dos benefícios da psicoterapia para pessoas idosas, ao considerar a atemporalidade dos processos inconscientes, favoreceu uma abertura ao estudo da vida emocional de pessoas muito idosas15,16,17.
Assim, reafirma-se que, do ponto de vista profissional e técnico, a psicoterapia tem muito a contribuir com a QV na velhice, mas essa contribuição se reflete nas ideias de pessoas idosas acerca da QV? Considera-se essa relação importante, pois essas ideias podem influenciar em uma maior valorização do espaço psicoterapêutico pelas pessoas idosas, maior adesão a prática da psicoterapia, e consequentes aprimoramentos nessa área, a fim de responder as demandas dos mais velhos.
Diante do exposto, delineou-se esse estudo sob a ênfase da Teoria das Representações Sociais, que pode ser compreendida a partir da organização do icônico e do simbólico, de imagens e significações interdependentes, que se reúnem, forjando representações sociais (RS) que expressam uma maneira específica das pessoas compreenderem e comunicarem o que sabem18. Essa pesquisa teve como objetivo compreender as representações sociais da QV na velhice a partir de um comparativo entre pessoas idosas que fazem psicoterapia e aquelas não fazem.
Método
Tipo de investigação
Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e descritivo, realizado com dados transversais, no qual contou-se com a participação de uma amostra não probabilística e por conveniência, conforme adotado em estudo prévio sobre RS com idosos19.
Participantes
A pesquisa teve a participação de 102 idosos brasileiros, desses 18 eram homens e 84 mulheres, todos tinham entre 60 e 84 anos. Dentre as pessoas idosas pesquisadas, 52 compunham o grupo de pessoas sem experiência em psicoterapia, enquanto 50 faziam psicoterapia. Os critérios de inclusão para participação na pesquisa foram: 1) Ter mais de 60 anos; 2) Estabelecer clareza na comunicação de perguntas e respostas e compreensão entre entrevistadora e entrevistado; 3) Consentir a participação na pesquisa de forma voluntária e anônima. Os participantes foram recrutados por meio da técnica bola de neve, em que um participante indica outro, sendo usada entre aqueles que não faziam psicoterapia, ao tempo que foram realizadas visitas a clínicas escola de Psicologia, estabelecendo contato com psicólogos e consultórios psicológicos para ajudar na divulgação da pesquisa entre aqueles que realizavam psicoterapia.
Caracterização da amostra
Ao se tratar do grupo de participantes que não fazem psicoterapia, considerou-se pessoas idosas que nunca tiveram contato com a psicoterapia, durante ou anterior a pandemia da Covid-19, sendo essa amostra composta por 52 idosos com média de idade, 68,40; desvio padrão 11,66. A maioria mulheres, 76,9%. Conforme a variável estado civil 53,8% são casados, e viúvos contam 34,6%. No que se diz respeito à escolaridade, 40% não chegaram a concluir o ensino médio. Aposentados representam 86,5% e 30,8% deles ainda exercem alguma atividade remunerada; 36,5% recebem até um salário mínimo, enquanto 23,1% recebem mais de três salários mínimos. Aqueles que possuem casa própria representam 94,2%. Os que moram sozinhos representam 15,4%. Destes idosos, 76,9% possuem alguma doença crônica, 80,8% tomam medicação controlada.
No grupo de pessoas idosas que fazem psicoterapia, considerou-se o tempo mínimo de três meses de psicoterapia, tendo iniciado o processo psicoterapêutico durante a pandemia da Covid-19 ou anterior a ela, não sendo necessário estar em terapia no momento da coleta de dados. Nessa amostra, a média de idade corresponde a 69,58 (DP =6,77). As mulheres representam a 84%. Quanto ao estado civil: 48% são casados, 28% são viúvos e 12% são solteiros. A maioria dos integrantes deste grupo (40%) não completaram o ensino médio. Os aposentados representam 78%. Aqueles que vivem com até um salário mínimo representam 38%, enquanto 30% recebem mais de três salários mínimos mensais. A maioria, 92% possui casa própria, 12% moram sozinhos. Os idosos que possuem alguma doença crônica representam 74% e 88% tomam medicação controlada.
Instrumentos
Foram utilizados dois instrumentos para a realização da pesquisa. O primeiro trata-se de questões sociodemográficas, elaborado pelos próprios pesquisadores, com foco na caracterização da amostra selecionada, onde foram colhidas informações acerca: da idade, estado civil, residência, renda, escolaridade, e etc. Em seguida, foi utilizada uma entrevista semiestruturada com as seguintes questões: O que é QV na velhice? Como você avalia a sua QV? Como você avalia a sua saúde ao se comparar com pessoas que tem a mesma idade que a sua?
Procedimentos e coleta de dados
Inicialmente a pesquisa foi submetida ao Conselho de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade xxxxxxx (Brasil), onde foi aprovada com o parecer nº xxxxxxxxx. Após isso, fora construído o protocolo instrumental da coleta, onde elencou-se as principais ferramentas para o alcance dos objetivos propostos: entrevista sociodemográfica e questionário de captação das RS. Por conseguinte, um formulário de entrevista foi construído na plataforma on-line Google Formulários, dado o contexto pandêmico de Covid-19 vivenciado à época da pesquisa, optou-se por coletar nesta modalidade. Após a citada construção, os pesquisadores deram início à captação de participantes por meio das redes sociais (Direct do Instagram, WhatsApp) e posteriormente, de forma presencial, sob o uso do mesmo instrumento utilizado on-line.
Na coleta de dados a partir da entrevista semiestruturada, realizada presencialmente, contou-se com a colaboração de cinco alunos, graduandos do décimo período do curso de Psicologia. Os estudantes foram selecionados com base na sua experiência na coleta de dados e por estarem familiarizados com o aporte teórico das representações sociais e envelhecimento humano, pois integravam grupos de pesquisa, com estudos desenvolvido estudos nesse campo. Os mesmos passaram por uma capacitação que foi realizada de forma on-line pelos pesquisadores, destacando os principais pontos do instrumento utilizado, o perfil dos idosos almejados, a abordagem dos participantes, bem como os procedimentos éticos envolvendo a coleta de dados, conforme o TCLE.
De início, os pesquisadores apresentavam-se e demonstravam os objetivos e temática a respeito da pesquisa, seguidamente os participantes eram convidados a acessar o link do formulário da entrevista ou convidados a realizá-la presencialmente ou via chamada de vídeo. Logo na primeira parte do formulário os partícipes tinham acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), onde constava formalmente os objetivos do estudo, sua importância, a garantia do anonimato/sigilo, o uso e a coleta dos dados de forma voluntária. Desse modo, ao analisar os pontos supramencionados no TCLE, os participantes poderiam aceitar ou recusar o convite, sem ônus algum.
Ao optarem por participarem das entrevistas de forma on-line, por chamadas de vídeo ou presencialmente, realizava-se o agendamento e na data e horários marcados os participantes eram informados que as mesmas seriam gravadas em áudio. Após a coleta, os dados do instrumento foram transcritos pelos pesquisadores. Além disso, buscou-se conhecer previamente sobre o perfil do idoso e saber se ele se enquadrava nos critérios da pesquisa, sendo os citados critérios apresentados no instrumento on-line. Ressalta-se que toda a construção, uso e manipulação dos dados foram realizadas com base nas resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional da Saúde do Brasil. Por fim, aproximadamente 10 a 20 minutos foram necessários para que cada participante concluísse a realização do formulário da pesquisa.
Análise de dados
Os dados sociodemográficos foram analisados pelo Sofware SPSS versão 24. Para análise dos dados da entrevista, utilizou-se o software IRAMUTEQ - Interface de R Pour Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires, que utiliza funcionalidades do Software estatístico R no tratamento e a análise estatística de dados textuais, reunindo um conjunto variado de procedimentos lexicométricos, como a Classificação Hierárquica Descendente (CHD)20.
Foram submetidos ao Iramuteq um corpus textual, com os seguimentos de textos conforme as perguntas contidas no instrumento utilizado na coleta de dados. Nas análises, realizou-se o procedimento de Classificação Hierárquica Descendente (CHD), que é apresentada pelo dendograma, que indica as classes lexicais em que foi dividido o discurso, a partir da frequência e do qui-quadrado (X2).
Resultados
Obteve-se as representações sociais da QV na velhice por meio da CHD em que o corpus textual, composto por 102 textos (entrevistas), se dividiu em seis classes. Obteve-se 422 seguimentos de texto com aproveitamento de 86% destes. Ademais, emergiram 13.980 ocorrências (palavras), de modo a perceber-se 1.703 palavras distintas e 1.026 citadas uma única vez. O conteúdo analisado foi classificado em seis classes distintas: Classe 1: composta por 45 ST's (12%); Classe 2: composta por 64 ST's (18%); Classe 3: composta por 95 ST's (26%); Classe 4: composta por 52 ST's (14%); Classe 5: composta por 65 STs (18%); Classe 6: composta por 43 STs (12%).
A estrutura do Dendograma originou quatro partições, sendo que a primeira agrupou as classes 5 e 1; a segunda as classes 5 e 2; a terceira as classes 6 e 3; e por fim as classes 6 e 4. Essa divisão do corpus é realizada pelo IRAMUTEQ a partir da semelhança proximal das RS.
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