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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2021; 23(3):1-3



Editorial

Películas: da inscrição artística à continência psíquica

Joana Corrêa de Magalhães Narvaeza,b,c; Mário Barcellosc; Felipe Ornellb,c,d

 

 

Um novo vírus é identificado na China e começa a infectar seres humanos. Em poucas semanas, a infecção se espalha e pessoas ao redor do mundo passam a apresentar sintomas. A transmissibilidade é alta e ocorre através do contato, pelas vias respiratórias e por superfícies. A apresentação é semelhante à de uma gripe, porém mais severa. O isolamento se torna a principal ferramenta para conter a disseminação da doença. Fronteiras são fechadas. A população entra em pânico, e uma pandemia de medo se soma à crise sanitária. Sistemas de saúde entram em colapso: hospitais ficam lotados, faltam leitos e insumos e milhares de pessoas morrem diariamente. Não há tratamento eficaz. O estado de pandemia é decretado. Governos e instituições de pesquisa correm contra o tempo para compreender o mecanismo da infecção, desenvolver vacinas e políticas públicas de contenção ao avanço da doença. Teorias conspiratórias são divulgadas. Notícias falsas sobre fármacos sem evidências científicas que poderiam proporcionar uma cura milagrosa são disseminadas. Os poderes executivos de alguns países minimizam a doença. A crise tem repercussões graves nos cenários econômico e social. A vacina é desenvolvida. Pessoas furam a fila da vacina. O vírus sofre mutações. A população vive um estado de incerteza constante.

O resumo acima descrito poderia perfeitamente ser uma síntese do que vem ocorrendo no mundo desde o final de 2019, quando começou a pandemia da Covid-19. Entretanto, se trata da sinopse do filme Contágio (2011), um suspense dirigido por Steven Soderbergh que retrata de forma quase premonitória o que ocorreria nove anos depois.

Assistir ao filme Contágio após o atravessamento da Covid-19 certamente modifica a percepção: o tom ficcional é extinto e a narrativa tem uma linguagem que se aproxima do profético. É assim também na psicoterapia: nada - ou muito pouco - faz sentido até que a experiência borde um significado na tessitura do campo afetivo e relacional. É na vivência partilhada entre paciente e terapeuta que uma história vira profecia, que a repetição tem chance de elaboração e que a interpretação alcança a vida. O setting psicoterapêutico é por definição profético. E nisso não há novidade alguma: vale lembrar que Freud e Skinner muito cedo delimitaram o determinismo como um eixo teórico fundamental do funcionamento psíquico e suas expressões comportamentais. Isso não significa que psicoterapeutas roteirizem a vida de seus pacientes pretensamente acertando seus desfechos; na realidade, é empreendido um exercício conjunto de busca de compreensão de mecanismos psíquicos particulares com o objetivo de ou libertar o homem de suas mazelas ou, pelo menos, elaborá-las. É no superlativo do autoconhecimento que podemos nos defrontar tanto com amarras narcísicas quanto com a solução para desatar um encontro mais livre com o mundo.

A vida pode ser um filme com roteiro demasiado fantasioso, beirando o confabulatório, quase mal escrito e caricato. Ou roteiros mais dúbios e perpassados pela angústia de escolha, representativos da neurose como vista nos filmes de Woody Allen, que já se avizinha com a realidade palpável. Através da psicoterapia, tentamos (re)tomar o protagonismo sob a direção da película, apesar de não controlarmos muitos dos fatores em cena, como os coadjuvantes e figurantes (inclusive os que nos habitam), que atuam rodando seus roteiros como principais em paralelo.

Retomando o tema pandêmico, podemos afirmar que a Covid-19 fez aflorar traumas, medos e incertezas. Novas configurações relacionais virtuais foram consolidadas como estratégia para mitigar a solidão inerente ao isolamento. Isso poderia remeter a outro filme: Her (2014), no qual o diretor Spike Jonze retrata um futuro próximo em que as tecnologias são usadas para aplacar os fantasmas humanos - especialmente a solidão e o vazio, representados pela busca implacável de um objeto que supra na integralidade as demandas emocionais do sujeito. O resultado é uma realidade individualista e melancólica que serve de ponto de partida para refletir sobre o presente. Nas perspectivas futuras que nos reservam, será que novamente o cinema tem potencial de extrapolar de forma extremada vivências passíveis de posterior expressão na realidade? Afinal, quais os limites do uso das tecnologias? O quanto a realidade virtual pode suprir (ou vir a suprir) as necessidades afetivas?

O panorama virtual tecnológico do qual estamos falando teve reflexos evidentes no setting psicoterápico: a pandemia reforçou o papel das tecnologias como parte inalienável do campo relacional terapêutico contemporâneo. A transferência mostrou-se plástica para se deslocar da cena tangível do setting, que, afinal, nunca foi concreta, para a cena virtual do on-line. São diferentes campos que dão terreno a fenômenos muito semelhantes: um campo de potencial projeção do desejo, do necessário apaixonamento, para a almejável ressignificação elaborativa.

O debate infindável sobre se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte parece ser, ao menos nesse momento, irrelevante. Afinal, é na dinâmica retroalimentar dos fenômenos socioculturais que nos estruturamos como sujeitos complexos com seus desdobramentos tecnológicos - às vezes opção, às vezes contingência - de expressão afetiva. Não por acaso, o significado de película remeta a fina camada de pele, invólucro do ser, continente da inscrição psíquica.










aUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Curso de Psicologia, Porto Alegre/RS, Brasil
bCentro de Pesquisa em Álcool e Drogas, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, BrasilcCentro de Estudos Luís Guedes, Hospital de Clínicas de Porto Alegre / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil
dUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento, Porto Alegre/RS, Brasil

Autor correspondente

Joana Narvaez
jcmnarvaez@ufcspa.edu.br / jonarvaez@gmail.com

 

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