Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):105-118
Ferreira BO, Resende GC, Oliveira SSB, Leitão CL, Torres MS. O desenvolvimento de uma tecnologia leve em saúde mental no contexto da pandemia: acolhimento psicológico online no Norte do Brasil. Rev. bras. psicoter. 2021;23(2):105-118
Artigo Original
O desenvolvimento de uma tecnologia leve em saúde mental no contexto da pandemia: acolhimento psicológico online no Norte do Brasil
Development of a light technology in mental health in the context of pandemic: psychological welcome in Northern Brazil
Desarrollo de una tecnología de salud mental ligera en el contexto de la pandemia: atención psicológica en línea en Brasil
Breno de Oliveira Ferreira; Gisele Cristina Resende; Sérgio Sócrates Baçal de Oliveira; Consuelena Lopes Leitão; Marck de Souza Torres
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A Covid-19, doença causada pelo coronavírus denominado SARS-CoV-2, foi identificada pela primeira vez na China, em dezembro de 20191. Contudo, apenas em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a epidemia constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, e, em 11 de março de 2020, uma pandemia2.
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a apresentar casos da Covid-19, que somada à insuficiência de conhecimentos científicos e tecnológicos sobre o vírus, sua elevada velocidade de disseminação e à capacidade de provocar mortes, principalmente em populações mais vulneráveis, tem gerado incertezas sobre quais seriam as melhores estratégias a serem utilizadas para tal enfrentamento. O Amazonas recebeu o título de primeiro estado brasileiro a ter os serviços de saúde colapsados, computando, até a data de 08 de julho de 2020, o registro de 75.502 casos confirmados e 2.918 mortes, de modo que a taxa de letalidade do vírus chegou a ser uma das maiores do país3.
Na tentativa de mitigar o avanço do vírus no mundo e possibilitar tempo para a organização dos sistemas de saúde pública, as medidas incluíram, especialmente, o distanciamento social, por meio do fechamento de instituições escolares, a proibição de eventos de massa e de aglomerações, a restrição de viagens e transportes públicos, e a constante conscientização da população para que permaneça em casa4.
Embora a recomendação de distanciamento social seja uma das principais alternativas para diminuir o achatamento da curva de contágio, por outro lado, também acarreta consequências para a saúde mental e o bem-estar das pessoas, seja a curto ou a longo prazo. Há evidências de que as consequências psicológicas da pandemia de Covid-19 serão particularmente graves para, pelo menos, quatro grupos de pessoas: (a) aqueles que entraram direta ou indiretamente em contato com o vírus; (b) aqueles que já são vulneráveis a problemas biológicos ou estressores psicossociais (incluindo pessoas afetadas por problemas de saúde mental); (c) profissionais da saúde (devido ao maior nível de exposição); e (d) pessoas que ficaram expostas rotineiramente às notícias em canais de mídia5.
Nesse cenário, por se tratar de uma crise sanitária global ainda em curso, destaca-se a necessidade de planejamento e desenvolvimento de estratégias de cuidado em saúde, com foco tanto na prevenção, como na intervenção imediata em saúde mental6. Contudo, na literatura especializada, ainda não há um consenso sobre os modelos de protocolos capazes de avaliar as demandas desse tipo serviço, bem como planejar as suas etapas de elaboração.
No campo da psicologia, destaca-se que o acolhimento é uma ação imediata e que pode promover saúde mental. Caracteriza-se como uma atitude do psicólogo em acolher o usuário com empatia, visando compreendê-lo, respeitando seus limites e procurando ampliar suas possibilidades diante da própria demanda apresentada7.
Nas práticas em serviços de saúde, o acolhimento também pode ser entendido como uma tecnologia leve (i.e., não se exige maquinários e outras tecnologias duras, mas valoriza-se a escuta e os saberes profissionais para acolher e compreender a situação trazida pelo sujeito), tornando-se um instrumento essencial para que a humanização no cuidado seja alcançada e que haja reconhecimento do sofrimento, mas também das potencialidades e possibilidades de atuação deste sujeito que é acolhido8,9,10.
Diante de todo esse panorama apresentado, o objetivo deste estudo é descrever a construção de uma tecnologia leve em saúde para intervenção de primeiros cuidados psicológicos durante o surto de Covid-19 no Brasil, particularmente no estado do Amazonas.
MÉTODO
Realizou-se uma pesquisa multissituada11, do tipo documental e descritiva, a partir de múltiplas temporalidades, com análises acerca do desenvolvimento das ações realizadas e, particularmente, de planos de contingência da Faculdade de Psicologia vinculada à Universidade Federal do Amazonas12,13. Também foram analisados decretos, resoluções, notas às páginas oficiais, mídias de redes sociais e aplicativos de mensagens veiculados entre fevereiro e julho de 2020. O principal foco de análise foi sobre o desenvolvimento, e a aplicabilidade do programa de Acolhimento Psicológico Online da Faculdade de Psicologia, que por meio do uso de tecnologias da informação e comunicação (TICs), promoveu cuidados em saúde mental para a população do estado do Amazonas (capital e cidades do interior).
Os documentos foram investigados por meio da análise temática, que se caracteriza como um método flexível e sistematizado para a criação de eixos (temas) de análise coerentes e consistentes com os objetivos de pesquisa14. De acordo com as etapas da análise, foram constituídos cinco eixos principais, que nortearam a compreensão do programa Acolhimento Psicológico Online, são eles: eixo I - Planejamento da ação, constituído pelo marco teórico da tecnologia em saúde e definição operacional do programa; eixo II - Implementação do programa, ilustrado pelas principais características da população assistida, e descrição dos principais objetivos; eixo III - Caracterização da equipe, principais características em termos de abordagem/concepção teórica, tempo de experiência profissional, formação para atendimento online, e formação para atendimento em situação de emergências e desastres; eixo IV - Estratégias de divulgação para acesso ao serviço, tendo em vista as características populacionais, inovação e acessibilidade da população; eixo V - Supervisão de equipe, apresentação dos principais desafios e limites, levando em consideração a inusitada situação de pandemia, e foco no compartilhamento de vivências.
A pesquisa também cuidou do sigilo e da dignidade humana, preservando padrões técnicos e éticos nas etapas de seleção, análise e interpretação do material, respeitando, ainda, as ideias e concepções dos autores utilizados.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Planejamento da ação
Quando o primeiro caso de Covid-19 foi identificado na cidade de Manaus, o Reitor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), por meio da Portaria GR/UFAM nº 626, de 13 de março, suspendeu as atividades presenciais da instituição15. Porém, já havia sido instituído desde o dia 5 de março de 2020, por meio da Portaria nº 453, um Comitê Interno de Enfrentamento do Surto Epidemiológico de Coronavírus com objetivo de regular, normatizar ações e elaborar um plano de contingenciamento durante e após o surto de Covid-1916. Devido às dimensões geográficas, e seus inúmeros cursos, houve a necessidade da criação de subcomitês para análise das colaborações de cada faculdade/departamento12.
A Faculdade de Psicologia instituiu algumas linhas de atuação, e uma delas foi mobilizar o corpo docente associado à psicologia clínica, com prática e pesquisa na área, para planejar ações de atendimento à comunidade interna da universidade, inicialmente, e com possibilidade de extensão para a comunidade externa, a posteriori13.
De início, as reuniões de planejamento definiram a possível perspectiva teórica norteadora da intervenção para o contexto amazonense, o desenho metodológico da intervenção (e.g. modalidade de intervenção, discussão sobre o setting de atendimento online, características do enquadre, e contrato com o usuário), as estratégias de divulgação do serviço para acessibilidade equânime, a captação de recursos humanos voluntários, e discussão de encaminhamentos de situações que surgissem durante a prestação de atendimento.
Observou-se que a construção do projeto partiu do modelo de planejamento estratégico situacional (PES), e apostou na constituição de um projeto dialógico e participativo, com a construção coletiva entre os participantes. Foi considerada a viabilidade biopsicossocial do projeto, predizendo conflitos, e reconhecendo os limites e as contradições do processo17,18.
A criação desse espaço de compartilhamento entre os atores envolvidos no subcomitê e nas linhas gerais do plano de contingenciamento permitiu dar contornos ao surgimento do programa de Acolhimento Psicológico Online, e fazer apontamentos de modo a criar conjuntamente uma nova experiência. Aglutinaram-se, assim, diferentes perspectivas teóricas e práticas em psicologia clínica, com a compreensão de que a intervenção elaborada em situação fosse emergente, e, portanto, necessitaria ser avaliada, reavaliada e redesenhada a cada nova perspectiva de desdobramento em meio à pandemia.
Implementação do acolhimento
Após quinze dias da declaração de pandemia pelo governo do estado do Amazonas, a Faculdade de Psicologia iniciou o atendimento psicológico com o programa Acolhimento Psicológico Online, uma tecnologia leve em saúde, constituída como espaço de escuta, cuidado/apoio emocional, e estratégia para identificar demandas e necessidades, no campo da saúde mental, no Amazonas.
O programa foi norteado conforme orientações dadas pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), com ênfase para os primeiros cuidados psicológicos, que são ações de resposta para situações de urgência e emergência em contextos de crise aguda, ou situação traumática, e podem ajudar pessoas através do apoio emocional, escuta qualificada, empática, e encaminhamento para outros serviços que prestem suporte psicossocial19.
Considerou-se como população alvo, a comunidade interna da universidade (e.g. alunos, docentes, técnicos-administrativos), prioritariamente, em sofrimento psíquico decorrente do distanciamento social, ou por contágio direto com o vírus. No entanto, com o rápido colapso dos serviços de saúde mental locais, e aumento pela procura, estendeu-se o atendimento para o público externo à universidade (e.g. crianças, adolescentes, adultos e idosos), tanto da capital quanto cidades do interior do estado, ocorrendo, ocasionalmente, procura por usuários de outras regiões do país.
O programa se utilizou de tecnologias de informação e de comunicação (TICs) no atendimento aos usuários, permitindo o acesso a qualquer indivíduo, antes geograficamente limitado. Portanto, deu-se a oportunidade de oferta de serviços em saúde mental independente de localização e acesso físico, e, por sua vez, com grande potencial para aumentar significativamente o acesso e disponibilização dos cuidados em saúde mental para a população em geral.
As atividades do programa favoreceram o encontro entre os profissionais (psicólogos) e os usuários que procuravam essa modalidade de atendimento. Mesmo mediada por tecnologia, a intervenção em saúde mental é um trabalho vivo, no qual os sujeitos criam as relações por meio do encontro, construindo um processo singular que também é capaz de promover autonomia e afeto8,10. Trataram-se de encontros em que os diferentes sofrimentos puderam ser acolhidos, e as vivências durante o isolamento social, imposto pela pandemia, puderam ser repensadas e ressignificadas, de acordo com cada história e seu momento, respeitando-se, assim, as singularidades dos sujeitos.
Características dos profissionais voluntários
A instalação surpresa da situação de pandemia no estado do Amazonas confrontou a população, profissionais e instituições com a fragilidade do sistema de saúde pública, já precarizado devido ao teto de gastos impostos pelo governo federal. No caso da saúde mental, as dificuldades tornaram-se ainda mais atinentes, pois o acesso aos serviços gratuitos apresenta falhas estruturais. Destaca-se a pouca oferta de serviços para atendimento na região Norte do país, existem apenas quatro centros de atenção psicossocial em todo o estado, há falta de interesse e financiamento por parte dos gestores para implementar as políticas de saúde mental, e é necessário que a Rede de Atenção Psicossocial seja integrada, efetivamente, à Atenção Básica em cada território/distrito de saúde20. Dessa forma, a solução momentânea para essa situação foi a criação de um coletivo de profissionais da psicologia com vinculação à clínica escola da Faculdade de Psicologia para dar suporte à comunidade.
Inicialmente, o grupo do Programa Acolhimento Psicológico Online foi constituído por 10 profissionais (professores de carreira, mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPSI) da universidade, egressos do curso de graduação em psicologia). Com o aumento da procura por atendimento psicológico, foi realizado chamamento público para recrutar mais recursos humanos. A estratégia utilizada foi solicitar aos integrantes dos grupos que indicassem novos voluntários, que passariam por uma entrevista com o coordenador com objetivo de compreender as ações do projeto, e disponibilizar os horários e número de contato para constar no informativo do projeto. O tempo para a adesão de novos membros ocorreu no primeiro mês da ação, e os profissionais que compreenderam a proposta de trabalho e se dispuseram a atender de acordo com as condições de gratuidade e compromisso ético, foram aceitos.
A constituição de grupos para a ação coletiva teve por característica a deliberação do agir coletivo, particularmente, em prol do interesse de um trabalho realizado com engajamento de todos. A temática e os objetivos que produziram a reunião de diferentes atores em ações coletivas possibilitaram a co-construção de saberes, produzindo novos caminhos, acolhendo as diversidades e possibilitando encontros significativos21. No total, 32 psicólogos compuseram o coletivo do programa Acolhimento Psicológico Online, e para compreender as suas características, elaborou-se a Tabela 1.
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