Rev. bras. psicoter. 2021; 23(2):63-78
Falcão PPHL, Santos MFS. O Home office na pandemia do Covid19 e os impactos na saúde mental. Rev. bras. psicoter. 2021;23(2):63-78
Artigo Original
O Home office na pandemia do Covid19 e os impactos na saúde mental
The home office in the Covid pandemic19 and the impacts on mental health
Teletrabajo en la pandemia de Covid19 y los impactos en la salud mental
Paula Priscilla Houly Lopes Falcão; Maria de Fátima de Souza Santos
Resumo
Abstract
Resumen
1. INTRODUÇÃO
A pandemia do Covid19 ocasionou uma variedade de mudanças em todas as esferas da sociedade. No âmbito do trabalho, não foi diferente. Especificamente no Brasil, ensejadora das quarentenas em praticamente todo o país, a pandemia colocou em estado de pânico empregados e empregadores temerosos em não poder exercer suas atividades laborativas. Como medida preventiva, em muitos casos, a alternativa das empresas foi implementar o home office.
De modo imperativo, esta modalidade de trabalho passou, de um dia para o outro, a ser a rotina de milhões de pessoas. Segundo dados do IBGE - Pesquisa PNAD Covid191, em setembro de 2020 foram registrados cerca de 7,9 milhões de pessoas trabalhando remotamente. A rapidez com que essas mudanças se instalaram parece ter exigido grande adaptação às novas tecnologias incorporadas, novos hábitos, que em consequência, implicaram ajustes laborais, ambientais, familiares, e possivelmente, trouxe impactos sobre a saúde mental dos trabalhadores2. O próprio contexto de pandemia intensifica o medo e os níveis de estresse e ansiedade em pessoas saudáveis, além de aumentar os sintomas daquelas com transtornos mentais preexistentes3. Somado a isso, a condição de isolamento social proposta à população indica que o estresse tende a ser ainda mais prevalente4. Associadas a essa realidade, muitos precisaram lidar com tais sensações aliadas a uma boa dose de disciplina e exigência de produtividade pelo trabalho realizado em casa.
O home office foi rapidamente difundido entre as mídias e trabalhadores de forma geral no contexto da pandemia. A lei o define como sendo toda "prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo"5. Em outras palavras, é o trabalho que é desenvolvido total ou parcialmente à distância, em lugar distinto da sede da empresa, com a utilização de recursos tecnológicos5.
O home office durante a pandemia foi implantado sem possibilidade de planejamento, de forma radical, em que as pessoas transferiram os momentos vividos no trabalho para casa. Além disso, durante a pandemia houve diversas mudanças nas rotinas familiares, por terem sido suspensas as aulas nas escolas e a necessidade de isolamento físico das pessoas em suas residências. A forma abrupta de implantação parece ter ocasionado desdobramentos da falta de planejamento, percebidos desde os problemas relacionados aos recursos de trabalho, como a questão de segurança dos computadores domésticos e das empresas, até a adaptação a produzir em meio à administração de filhos, casa, e exigências no trabalho.
Foram muitas as adaptações necessárias, por exemplo, no que se refere aos recursos do trabalho relacionados à ergonomia, Bridi, Bohler e Zanoni6 em sua pesquisa sobre o trabalho remoto no contexto da pandemia apontaram que 57,06% dos participantes citaram a ergonomia do seu local de trabalho como razoável porque não dispõem de um lugar específico para trabalhar, mas tem mesa e cadeira e 12,14% declararam que suas condições de trabalho em relação à ergonomia são péssimas, por não ter mesa, nem cadeira e lugar apropriado. Além disso, na adaptação quanto às condições dos equipamentos e tecnologias, a pesquisa demonstrou que 51% considerava as condições razoáveis por possuírem parte dos materiais e tecnologias necessárias para realizar o trabalho e 4% que as condições são péssimas, pois não possuíam tecnologia e equipamentos adequados. A transição do trabalho presencial para o remoto também parece ter mexido com o ritmo dos trabalhadores. Segundo a pesquisa, 32,23% passaram a trabalhar num ritmo mais lento e 48,45% num ritmo mais acelerado; apenas 19,32% se manteve no mesmo ritmo do trabalho presencial.
Segundo o IBGE - Pesquisa PNAD Covid191, no Brasil 4% dos trabalhadores tiveram suas horas de trabalho aumentadas e 79,2% não tiveram alteração no número de horas trabalhadas, ou seja, mantiveram a obrigatoriedade das horas de trabalho e suas exigências, porém com o acréscimo de ajustar essas rotinas às tarefas domésticas. Essas demandas de ajustes urgentes aumentaram consideravelmente a quantidade de afazeres e modificaram a rotina do trabalhador, que se viu diante de dois cenários antes administrados de forma separada, precisando agora de uma gestão conjunta7. Um novo ritmo das atividades humanas se impõe e as relações de trabalho ganham uma nova dimensão, com a necessidade de se redefinir tempo e espaço.
Para o trabalhador, realizar suas atividades laborais em sua residência, pode despender menos tempo para produzir em casa, o que faria na organização. Rodrigues8 salienta que nessa modalidade de trabalho, há economia de tempo com deslocamentos, redução das tensões nos congestionamentos e menos poluição nos tráfegos de trânsito. Essas mudanças impactam não somente na produtividade, mas também parece haver uma diminuição do estresse, além da redução dos gastos com transportes, alimentação e vestuário.
Moya9 já afirmava que o teletrabalho apresenta uma liberação dos inconvenientes do antigo trabalho industrial, o qual remete a rígidos horários, pouco tempo para o ócio, descanso, lazer, falta de autonomia para realização das atividades etc. Mencionou também a flexibilidade de horários como uma boa vantagem, além de citar a possibilidade de conciliação das atividades maternas e paternas com a atividade profissional. Ou seja, fala-se em possibilidade de melhoramento da qualidade de vida.
Bridi, Bohler e Zanoni6 corroboram com o que afirmaram esses autores quando demonstram em pesquisa os sete aspectos mais citados pelos participantes como facilitadores do trabalho remoto: a flexibilidade de horários, por 69,09% dos participantes, o fator deslocamento por 66,23%, a menor preocupação com a aparência destacada por 58,61%, a possibilidade de ter maior tempo com a família citada por 50,44%. Além disso, foram citadas pelos participantes também as alternativas como ter maior conforto em trabalhar em casa (28,04%), interagir com menos pessoas (21,85%) e ter um menor controle dos superiores (9,05%).
No entanto, desvantagens ao trabalhador também são suscitadas, Rodrigues8 cita o risco de isolamento social, (que no momento da pandemia, é o motivo maior da adesão à modalidade remota). Decorrente da perda de contato direto com os colegas de trabalho e superiores, esse isolamento pode ser negativo para a manutenção de relações interpessoais. Os dados apontados por Bridi, Bohler e Zanoni6 vão nessa direção, quando afirmam, dentre as dificuldades experimentadas pelo home office, que 60,55% dos participantes citaram como a maior dificuldade a falta de contato com os colegas de trabalho. A flexibilidade de horários também é retratada por Rodrigues8 como uma possível desvantagem, quando os trabalhadores não se disciplinam, e podem acabar se tornando workaholics. Nesse sentido, os dados de Bridi, Bohler e Zanoni6 também são aproximados ao revelar que 54,59% disseram ter mais interrupções trabalhando remotamente, 52,91% apresentou dificuldade em separar a vida familiar da atividade profissional e 42,05% apontaram o fato de receberem demandas a qualquer tempo como fator negativo. Além disso, 37,77% indicaram haver maior demora para a realização das suas tarefas e 31,04% relataram ter menos disciplina no trabalho remoto.
Outra preocupação que Rodrigues8 salienta refere-se aos possíveis problemas ergonômicos, devido à exposição do trabalhador a condições inadequadas, por longos períodos na frente do computador, que pode acelerar o surgimento de doenças por esforço repetitivo, além da possibilidade de um maior estímulo ao trabalhador em domicílio do consumo de alimentos, álcool e drogas. Seguindo a perspectiva de Zanini10 é importante o estabelecimento de condições favoráveis à instauração e/ou manutenção de relações de confiança, e esse esgarçamento das relações sociais parece favorecer a diminuição da pertença social. Situação também corroborada com os dados de Bridi, Bohler e Zanoni6 quando evidenciaram que 19,42% dos participantes relataram o fato de ter que tomar decisões sozinho(a) como um aspecto que dificultou a execução da atividade laboral de forma remota. O que pode suscitar a sensação de estar distanciado das relações laborais.
De um modo geral, o home office se apresenta com várias possibilidades, benefícios e inconvenientes. No cenário de pandemia vivenciado, essa modalidade ganha um novo espaço que surge de modo inesperado e requer bastante cuidado, tanto pelas organizações, gestores como pelos trabalhadores. Devotto, Oliveira, Ziebell, Freitas, Vazquez7 afirmam que num contexto de instabilidade ou de mudanças drásticas na rotina, típicas do momento vivido com a Covid19, manter uma relação saudável com o trabalho pode ser bem desafiador. Nesse sentido, as demandas de trabalho, que envolvem burocracia, esforço cognitivo intenso, relacionamento difícil com clientes e pressão por prazos, podem se desequilibrar, com baixo suporte dos colegas e poucos recursos pessoais, tais como otimismo e autoeficácia. Essa situação pode levar ao desgaste, esgotamento e até adoecimento no trabalho, o que é prejudicial ao trabalhador.
Conforme o Guia com cuidados para a saúde mental durante a pandemia divulgado pela Organização Mundial da Saúde - OMS11, sentimentos como medo do avanço do vírus, de adoecer ou de que alguém da família adoeça, de perder pessoas queridas, de não saber quando se terá uma vacina ou cura, dentre outros foram evidenciados. Além disso, é comum a irritabilidade devido à ausência de respostas para suas questões e medos, angústia frente ao que estar por vir e as incertezas do momento; tristeza ocasionada pelo isolamento, pelo enfrentamento do adoecimento e/ou perda de pessoas queridas. Ademais, também são apontadas reações comportamentais como perda de apetite e sono, conflitos interpessoais ocasionados pela alteração de humor, agitação ou letargia, aumento da ansiedade que pode levar a crise de pânico, dentre outros. Alguns transtornos psíquicos também podem ser observados, como depressão, crises de ansiedade e crises de pânico. Em pesquisa realizada na China12 para avaliar o estado de saúde mental de sua população, os resultados mostraram maior taxa de ansiedade, depressão, uso perigoso e prejudicial de álcool, e menor bem-estar mental do que a proporção normal. Entre os jovens de 21 a 40 anos pareceu se encontrar uma maior vulnerabilidade em relação às condições de saúde mental e uso de álcool.
Duarte et al.2 na pesquisa sobre a Covid19 e os impactos na saúde mental evidenciaram que apesar do isolamento social ser apontado como fonte de ansiedade e estresse na população, o distanciamento social e a diminuição de contato físico com as pessoas durante a pandemia não é, por si só, um fator de risco para o adoecimento mental, mas há influência de outros fatores que também permeiam esse contexto. Nesse sentido, eles apontaram as perdas econômicas, por exemplo, como fator de aumento do estresse, pelas condições de recessão econômica, pobreza e desemprego presente no episódio pandêmico. Além disso, observaram que a infinidade de informações erradas circulando nas mídias sociais sobre a doença também incidiam como um fator de aumento da ansiedade.
Quanto ao risco de apresentar transtornos mentais menores, foi percebido que ser mais jovem, mulher, já ter diagnóstico de transtorno mental, não ser trabalhador da saúde, ter renda diminuída no período da pandemia, fazer parte do grupo de risco e estar mais exposto a informações sobre mortos e doentes, são fatores que podem apontar para um maior prejuízo na saúde mental2. Todos esses fatores representam um grande desafio às pessoas em regime home office, por estarem inseridas nesse contexto diretamente, e terem de lidar com elas e com as responsabilidades e mudanças exigidas do trabalho.
Diante das circunstâncias contextualizadas, este artigo teve como objetivo compreender se a vivência da modalidade home office adotada de forma emergencial na pandemia do Covid19 trouxe impactos para a saúde mental do trabalhador. Para alcançar tal proposta, parte-se de um embasamento teórico da Teoria das Representações Sociais, a qual compreende que as explicações, as afirmações e os conceitos emitidos pelas pessoas sobre certos temas correspondem a "teorias" do senso comum13. Os indivíduos, reelaboram as informações, fruto das interações sociais, e, ao estabelecerem um diálogo com o social, tratam de construir as suas próprias representações e de comunicá-las para os demais indivíduos, alimentando um ciclo que se retroalimenta constantemente. A teoria das representações sociais se propõe a realizar um estudo científico do senso comum14.
Designada como conhecimento de senso comum, esta forma de conhecimento é diferenciada, entre outras, do conhecimento científico. Porém, é considerado um objeto tão legítimo quanto este, devido à sua importância na vida social. Jodelet15 afirma que as representações sociais orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais. Assim também, elas intervêm em processos variados, como na definição das identidades pessoais e sociais, a expressão dos grupos e as transformações na sociedade.
As representações sociais manifestam-se em palavras, sentimentos e condutas, posteriormente institucionalizadas e, por esse motivo, podem e devem ser analisadas mediante o estudo das estruturas e dos comportamentos sociais, pela compreensão dos discursos socialmente construídos. Nesse sentido, a abordagem estrutural das representações formulada por Abric15 considera as representações sociais como um conjunto organizado de informações, opiniões, atitudes e crenças a respeito de um dado objeto, que se estruturam num sistema sociocognitivo, composto por um elemento ou mais, o qual dá sentido à representação.
Esta abordagem concebe um núcleo central (NC) composto por elementos em torno dos quais as representações sociais se organizam. Elas são manifestações do pensamento social, o qual necessita, para garantir a identidade e a continuidade do grupo a que se refere, de um certo número de crenças, coletivamente concebidas e historicamente determinadas, que sejam "inegociáveis", isto é, que não sejam colocadas em questão, por constituírem o fundamento do modo de vida e do sistema de valores do grupo. Os outros elementos que entram na composição da representação são chamados de sistemas periféricos, os quais dizem respeito a elementos que são menos estáveis e estão sujeitos a mais mudanças, mas são também constitutivos de uma representação17 .
Fazendo um comparativo, se o núcleo central constitui a cabeça ou o cérebro da representação, o sistema periférico constitui o corpo e a carne. Enquanto os elementos centrais são mais abstratos e possuem natureza normativa, os elementos periféricos referem-se a scripts de práticas concretas.
2. MÉTODO
Os dados coletados são parte do material adquirido na pesquisa de doutorado em andamento da autora deste artigo, cujo tema é: Representações Sociais e "Trabalho Home office" no contexto da Pandemia do Covid19. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de ética em pesquisa com seres humanos, CAAE: 37277920.8.0000.5208. Os dados foram coletados entre outubro e dezembro de 2020. Foi feito um recorte a partir da realização de um questionário online, com a Técnica de Associação Livre de palavras, um tipo de investigação aberta que se estrutura a partir da evocação de respostas dadas com base em um estímulo indutor, o que permite colocar em evidência universos semânticos relacionados ao objeto. Os estímulos indutores usado neste artigo foram "trabalho na pandemia" e "trabalho home office". Após as evocações dos termos indutores, foi solicitado aos sujeitos que colocassem em ordem de importância as palavras por eles evocadas e em seguida, que justificassem a escolha da primeira palavra mais importante. Essas justificativas também foram utilizadas como dados de análise sobre o modo de pensar socialmente compartilhados sobre o home office.
Participaram da realização deste item evocado no questionário 97 participantes, seguindo os critérios de não ter trabalhado na modalidade home office antes da pandemia, de possuir algum vínculo formal institucional e ser maior de 18 anos. O tratamento dos dados foi feito através do software IRAMUTEQ. Foi utilizada ainda a técnica de análise de conteúdo (AC) dos dados, numa abordagem qualitativa para interpretação e discussão dos resultados. A AC considera a presença ou a ausência de uma dada característica de conteúdo ou conjunto de características num determinado fragmento do texto18. Nesse tipo de análise o texto é um meio de expressão do sujeito, no qual o pesquisador busca categorizar as unidades de palavras ou frases que se repetem, inferindo uma expressão que as representem.
3. RESULTADOS E DISCUSÃO
O software Iramuteq realiza uma combinação do cálculo de frequência e ordem de importância, o que possibilita a identificação dos elementos mais acentuados, ou que mais se associam aos termos indutores, permitindo inferências sobre o núcleo central e elementos periféricos da representação social investigada. A partir das evocações realizadas, obteve-se a seguinte estrutura, conforme pode ser observada na figura 1: Zona do núcleo central onde pode-se observar os elementos que possivelmente organizam e dão sentido à estrutura da representação social; primeira periferia, onde se encontram os elementos mais frequentemente evocados porém considerados como menos importantes pelos sujeitos. O terceiro quadrante apresenta os elementos de contraste, isto é, aqueles pouco frequentes, porém considerados muito importantes para a definição do objeto, e por fim, o quarto quadrante, ou a segunda periferia, na qual estão os elementos mais relacionados às práticas sociais e ao contexto mais imediato.
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