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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):223-235



Revisão Narrativa

O fanatismo como sobrevivência psíquica durante a pandemia da COVID-19

Fanaticism as psychic survival during the COVID-19 pandemic

Fanatismo como supervivencia psíquica durante la pandemia del covid-19

Marcos da Silveira Cimaa; Vivian Peres Dayb

Resumo

Contextos de crise, como o atual momento de pandemia da COVID-19, parecem estar associados com o aumento do fanatismo. O artigo aborda as origens do pensamento fanático, em nível social e individual, a partir de períodos históricos de recrudescimento do fanatismo, analisando-se os significados psicodinâmicos que podem estar vinculados a posições rígidas e extremadas, além de conceitos psicanalíticos acerca de estados mentais primitivos latentes. Da mesma forma, discute-se sobre o fenômeno das fake news e da perversão como traço marcante no "pensar fanático". Por fim, conclui-se que o fanatismo pode atuar como uma defesa possível à sobrevivência psíquica em determinados contextos de crise, e, ainda, que as capacidades de pensar, empatizar e amar são alternativas a esse desfecho.

Descritores: COVID-19; Psicanálise; Psicoterapia; Teoria Psicanalítica; Pandemias; Comportamento Social

Abstract

Crisis contexts, such as the coronavirus pandemic, seem to be associated with the augmentation of fanaticism. The article discusses the origins of fanatic thinking, on a social and individual level, from periods in the history of fanaticisms upsurge, analyzing the psychodynamic meanings that could be linked to rigid and extreme positions, beyond psychoanalytic concepts about primitive mental states. In the same way, it discusses the phenomenon of fake news and perversion as an important feature in "fanatical thinking". Finally, it concludes that fanaticism could act as a possible defense to psychic survival in particular contexts of crisis, and that the ability to think, empathize and love are alternatives to this outcome.

Keywords: COVID-19; Psychoanalysis; Psychotherapy; Psychoanalytic Theory; Pandemics; Social Behavior

Resumen

Contextos de crisis, como el actual momento pandémico de COVID-19, parecen estar asociados con el aumento del fanatismo. El artículo analiza los orígenes del pensamiento fanático, a nivel social e individual, considerando períodos históricos de creciente fanatismo y analizando los significados psicodinámicos que pueden vincularse a posiciones rígidas y extremas, además de conceptos psicoanalíticos sobre estados mentales primitivos. De la misma forma, se discute sobre el fenómeno de las fake news y la perversión como característica del pensamiento fanático. Se concluye que el fanatismo puede actuar como una posible defensa para la supervivencia psíquica en determinados contextos de crisis, y también que la capacidad de pensar, empatizar y amar son alternativas a este desenlace.

Descriptores: COVID-19; Psicoanálisis; Psicoterapia; Teoría Psicoanalítica; Pandemias; Conducta Social

 

 

1. INTRODUÇÃO

Em tempos de pandemia, o "ser fanático" ganha protagonismo. Reflexões a respeito desse fenômeno podem estimular o aparelho de pensar, individual e social, a afastar-se de simplificações, instigando o retorno da curiosidade. Amós Oz1, escritor israelense que reflete acerca da natureza do extremismo com base no conflito Israel-Palestina, em palestra proferida na manhã seguinte aos ataques terroristas de novembro de 2015 em Paris, disse:


"A curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas."


Esse artigo pretende instigar a curiosidade, relacionando o contexto em que uma sociedade torna-se suscetível ao recrudescimento do fanatismo com o contexto correlato em nível de indivíduo e seu mundo interno. Nesse intuito, conceitos psicanalíticos serão trazidos à tona a fim de um maior entendimento sobre

o pensamento fanático. Ainda, algumas outras variáveis de tal ambiente extremista serão aventadas, como a indústria da mentira que traz consigo uma avalanche de fake news ao nosso cotidiano, além da perversidade de parte da classe política que se utiliza desse ambiente pandêmico para fins ideológicos. Sabe-se que essa sociedade polarizada e avessa a alteridade faz-se repleta de muitas certezas e quase nenhuma vacilação, onde não há espaço para a dúvida e, portanto, para o conflito neurótico.

O tema em questão vem impulsionado pelo atual cenário de crise mundial em decorrência da covid-19, pelo crescimento do extremismo nessa conjuntura e da sua repercussão no dia a dia do psicoterapeuta, em que muito do discurso manifesto do paciente a respeito de suas ideologias e crenças traz consigo o conteúdo latente do seu mundo interno e seus conflitos inconscientes, além de ativar conteúdos correspondentes do próprio terapeuta.


2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Fanatismo: conceito


Cassorla2 cita, em Notas sobre fanatismo e mentira, que:


"O termo 'fanático' vem do latim fanus, templo ou santuário. O fanático era o vigilante ou porteiro, que velava cuidadosamente pelo templo e, por extensão, pela crença. Ao contrário da maioria dos romanos que veneravam vários deuses, o fanático se dedicava, com fervor e exaltação, a apenas uma crença. Sua crença é a única verdadeira. Os não crentes serão combatidos e, se não vencidos, serão eliminados."


No trabalho Fanatismo: destino da pulsão. Adversário da cultura?, Gerchmann e Ferrari Filho3 trazem que o pensamento fanático, marcado no conteúdo pelo ardor religioso e na forma pelo entusiasmo à ideia única na condição de verdade absoluta, contrapõe-se ao ecletismo. Assim, como diz Amós Oz1, o fanático é um ponto de exclamação ambulante. Sobre isso, o escritor ainda relata:


"O crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples. Fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta, às vezes, junto com seus vizinhos... Infelizmente, penso que, assim como a violência, o fanatismo também é um componente permanente da natureza humana, um gene ruim que existe em quase todos nós."


Mas em que contexto esse gene ruim aviva-se com maior força?

2.2. Fanatismo e o contexto social

O fanatismo pode manifestar-se em contextos e intensidades diversas. Poderia sugerir-se que há um espectro quando falamos em pensamento fanático. Esse espectro pode oscilar desde um torcedor fanático por futebol até um fundamentalista islâmico disposto a morrer por sua "causa". Cassorla2 exemplifica tal variação:


"Nos escritos de Amós Oz, um motorista de táxi judeu considerava que a solução para o problema com os árabes era matar todos eles. Ao final de um diálogo, fingindo concordar, o interlocutor indaga: 'Agora imagine que você entrou em uma casa e matou todos os árabes. Você se afasta e ouve um choro de um bebê, dentro de casa'. O motorista retruca, impactado: 'O sr. É muito cruel!'. Este motorista não era, na realidade um fanático. Ao entrar em contato com a realidade, com a alteridade, pôde rever-se."


Quando pensamos em fanatismo religioso, o imbróglio provém do fato de cada um acreditar ser o detentor da "religião verdadeira", supondo acreditar no Deus incontestável. Podemos lembrar das Cruzadas e a sua "Guerra Santa", da caça às bruxas e a intolerância a diferentes saberes da época, ou, ainda, do fortalecimento do Estado Islâmico, que se autoproclama um califado com autoridade religiosa sobre os muçulmanos nos dias atuais, utilizando-se de atos terroristas e de tortura. No que concerne a racismo e crenças de superioridade racial, percebe-se que períodos de crise, como o que vivemos hoje, são terreno fértil para manifestações preconceituosas represadas. Pinsky4, em seu livro Faces do Fanatismo, traz que a seita Ku Klux Klan (KKK) é um bom exemplo de que racistas fanáticos não são personagens exclusivos de estados totalitários e nem de um passado longínquo. A KKK, organização ultraconservadora, contrarrevolucionária e racista, criada em 1865 nos Estados Unidos, persiste ainda na atualidade de forma clandestina, divulgando mensagens de violência, incitando o ódio e a proliferação de sentimentos xenófobos e racistas. Pinsky4 ainda escreve que o nazismo de Adolf Hitler, baseado no nacionalismo, na violência, na xenofobia e no racismo exacerbados, sustentou uma versão de verdade absoluta representada por seu líder - idolatrado como a encarnação da própria imagem de nação - e propagada para as massas. A Era Nazi (1933-1945) tem lugar garantido na memória da intolerância. Já os neonazistas conquistam, na contemporaneidade, ainda novos adeptos por países diversos da Europa e América. O mesmo autor também traz que o comunismo soviético, por seu turno, tendo o grande líder do proletariado - Stalin - no comando, foi protagonista da caça aos "inimigos do povo" em que o sentimento de um Estado ameaçado internamente e cercado externamente levou a pelo menos seis milhões de prisões, três milhões de execuções e dois milhões de mortes em campos de concentração.

Mas o que há em comum entre os diferentes exemplos de fanatismo citados até então? Há alguma relação com a crise atual desencadeada pelo coronavírus? Aqui, da mesma forma que na prática analítica, dá-se licença ao surgimento de "imagens" que possam ajudar na compreensão do que transcorre em dado momento. A imagem que aflora é a de uma cidade, tempo, nação ou época em ruína. Sem alicerces. Sem estrutura ou muito danificada. Com um senso de identidade empobrecido ou fragilizado.

Assim, podemos fazer algumas considerações. O Estado Islâmico surge em 2003, como um braço da Al-Qaeda no Iraque, logo após a invasão americana e a situação de destruição inerente ao momento. Com o advento da Guerra Civil Síria e toda sua carnificina em meados de 2011, o grupo vai ganhando força até a proclamação de um Califado Islâmico na Síria e no Iraque. A Ku Klux Klan surgiu no sul dos Estados Unidos durante o período da reconstrução, após o final da Guerra Civil Americana (1861-1865), por um grupo de confederados sulistas. Já a doutrina do arianismo veio ao encontro dos anseios do povo alemão que, psicologicamente, se sentia humilhado com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e com a situação de miséria econômica que persistia sobre o país. O desemprego agravava-se e fora utilizado como estratégia para a propaganda eleitoral dos nazistas que prometiam oferecer emprego aos desocupados, propor a revisão do Tratado de Versalhes e destruir a democracia de Weimar. Além da "criação" do inimigo, transformando os comunistas e os judeus em elementos ameaçadores à integridade do corpo social. Por sua vez, o ápice das práticas despóticas na história do socialismo soviético por volta de 1930 vem no contexto de uma sucessão de crises políticas e econômicas. De um lado, a sombra ainda visível do abandono das expectativas em relação à explosão iminente da "revolução internacional", em função da derrota dos movimentos revolucionários na Hungria e Alemanha, em 1919. De outro, a percepção da crise econômica mundial que explodia com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929. Do cruzamento desses acontecimentos, resultará a construção da ideia - um mito talvez - de que a União Soviética seria a "pátria cercada do socialismo", um país sitiado por inimigos, onde o clima de conspiração asfixiante se infiltrava, trazendo terror e medo.4

Gerchmann e Ferrari Filho3, a esse respeito, dizem:


"Em tempos de crise, quando a proteção da repressão parece insuficiente, há como que um retorno a um tempo histórico excessivamente matizado pelo narcisismo, onde a onipotência de pensamento, característico dos povos primitivos, reproduz o borramento das diferenças, fato que por sua vez ataca o reconhecimento da alteridade. Se uma cultura viva e fortemente enraizada no sujeito social protege contra a dor do desamparo, é também verdade que, em épocas de crise, a humanidade volta a utilizar defesas mais rígidas e inflexíveis, fato que parece manifestar-se culturalmente, por exemplo, no reaparecimento de opções mais totalitárias, marcadas pelo pensamento fanático."


Nesse tocante, o cenário político brasileiro atual vive uma crise de ecletismo, observando-se uma polarização fanática do pensamento que toma conta da sociedade, sufocando o pensar genuíno. Nessa conjuntura, o "moderado" não tem lugar, aos moldes da sátira do comediante John Cleese5, do grupo britânico Monty Python, no vídeo a vantagem de ser um extremista. "Com mais frequência do que o contrário, o fanático é um grande altruísta: está mais interessado em você do que nele mesmo. Muitos fanáticos nem sequer tem um self, ou qualquer vida privada"1. Por conseguinte, os brasileiros talvez estejam "embretados" entre os altruístas da revolução, que vem trilhando um caminho do pensar único, muitas vezes travestido de alteridade, e os altruístas da salvação, que tem o imediatismo e a "solução final" de um pseudomessias.

Dessa forma, será que podemos fazer um paralelo entre a "imagem" de uma sociedade em crise ou ruína e a "imagem" do mundo interno de indivíduos talvez suscetíveis a tais fanatismos e propensos a incorporar o pensamento fanático?

2.3. Fanatismo e o contexto individual

Albuquerque6, acerca do estado mental presente no fanatismo, coloca:


"Uma das manobras defensivas utilizadas para lidar com a angústia, em nível individual ou grupal, é o retorno ao pensamento mágico, aderindo a crenças irracionais ou, o seu inverso, às ideologias racionais, que obturem a ferida narcísica das incertezas e produzam um estado mental ideal, no qual as faltas possam ser justificadas, compensadas ou nem mesmo sentidas."


Dessa forma, pode-se sugerir que o fanatismo encontra lugar em estados mentais mais primitivos. Esses estados mentais estão latentes e são comuns a todos os indivíduos. Todavia, em determinados contextos, podem tomar as rédeas da nossa vida mental, sendo tal situação associada à defesa de um self muito fragilizado, ou seja, à sobrevivência mental em si. Podemos supor que o fanático suicida encontra a vida, um sentido de existência, na sua própria morte.

Para tanto, utilizaremos de conceitos psicanalíticos que possam auxiliar na compreensão de tal funcionamento patológico da mente do "ser fanático".

O conceito de dualidade pulsional em Freud7, entre forças de vida e de morte, em que apresenta uma descrição mais abrangente de destrutividade, compulsão à repetição e autoagressão, aliado ao conceito de narcisismo de morte em Green8, podem ajudar no entendimento do fanatismo. Ferrari9, utilizando-se de tais conceitos, sugere que:


"O ódio, companhia inseparável do fanatismo, pode ser expressão do grau de um desamparo tantas vezes experimentado passivamente na infância primitiva. Representaria algo como o retorno do registro das vivências do não acolhimento e do desencontro. Assim sendo, é esse ódio que nos remete a pensar no traumático, nas relações primitivas de objeto como elemento significativo na gênese da mente fanática. Em particular, nas vicissitudes do desinvestimento da pulsão de morte, movimento capaz de apagar a força de investidura da pulsão de vida, que, ao cobrir com desesperança aqueles momentos de vivo desejo direcionados a um não-Eu, faz com que, inapelavelmente, essa imagem do outro dentro do sujeito vá se revestindo como objeto cruel, na medida em que este, repetidamente, desaponta. Acaba por ocorrer, em consequência, uma busca por saídas passivo-agressivas para aquele interjogo sadomasoquista sofrido passivamente."


Será que o ativismo político, por exemplo, quando extremado a ponto de tornar-se algo central e nuclear na existência de um determinado indivíduo, quando demasiadamente odioso, não pode representar uma dessas saídas?

A esse respeito Albuquerque6 diz:


"Na globalizada diversidade multicultural, uma espécie de marca da vida moderna nas sociedades ocidentais, todos os tipos de crenças, costumes e ideologias parecem naturalmente justificadas ou vistos de forma politicamente correta como um mero exercício de liberdade pessoal, uma escolha tomada como consciente e fruto do livre arbítrio, não necessariamente vinculada a significados psicológicos mais profundos. Tudo se tornou aceitável e pouco ou nada se questiona. Prolifera na sociedade ocidental moderna uma atitude, individual e social, de um certo embotamento mental para os significados não manifestos."


Outro vértice possível de ser levantado é o kleiniano. Em determinadas situações, poderíamos considerar o todo de uma sociedade em um polo esquizoparanoide. Utilizando-se dos conceitos de posição em Klein10,11, considera-se que todo indivíduo oscila, ao longo da vida, entre uma posição mais regressiva (posição esquizoparanoide) e uma posição mais integrada (posição depressiva). Na primeira, acontece um predomínio de mecanismos defensivos primitivos. Dentre eles, a cisão, como uma "clivagem da mente", preserva a experiência prazerosa e rechaça a dolorosa, conforme a ideia de um "seio todo bom" e um "seio todo mau". Além disso, enfatiza-se a presença da negação, projeção e idealização como mecanismos defensivos preponderantes. O fanatismo possivelmente encontra abrigo nessa posição. Seria plausível levantar a hipótese de que no auge do comunismo soviético, em nível individual e social, a posição esquizoparanoide tomou conta. Segundo Pinsky4, havia a ideia de um país socialista ameaçado interna e externamente por inimigos do regime, que precisava ser defendido a todo custo em nome de uma causa maior, onde um clima de conspiração asfixiante se infiltrou entre laços de amizade e até mesmo no interior de núcleos familiares, o medo de ser delatado, como um círculo vicioso, fazia com que as pessoas se antecipassem à delação do outro. Terror e medo se alimentaram reciprocamente, originando uma sociedade assentada na estranha dialética entre desconfiados e suspeitos. Inclusive, tomou-se conhecimento, posteriormente, que o próprio Stalin seria um homem muito desconfiado, doentiamente suspeitoso, capaz de ver em qualquer lugar e em todas as coisas, inimigos, pessoas com duas caras, espiões.

Já para Bion12 devemos a compreensão de que todo indivíduo é portador, em diferentes graus, do que ele chama de "parte psicótica da personalidade" (PPP). Conforme Zimerman13, essa denominação não compreende uma psicose clínica, mas, sim, um encapsulado estado da mente que se caracteriza por alguns aspectos regressivos que em uma mesma pessoa coexistem com os sadios. Podemos aventar que em contextos de ameaça ao self, em "tempos de crise" pessoal ou social, essa PPP apropria-se da gerência mental. Logo, sobrevém uma baixíssima tolerância a frustrações, um predomínio da inveja e pulsões destrutivas, o uso maciço de negações e outros mecanismos defensivos primitivos, o ataque aos vínculos, e uma inibição da formação de símbolos, abstração e criatividade. Tratando-se de ameaça ao self e reação fanática a tal possibilidade, sobrevém ao palco das possíveis exemplificações, a polêmica criada quando do lançamento do programa "Mais Médicos" pelo governo Dilma em 2013. Tal programa veio com objetivo, ao menos divulgado, de suprir a carência de médicos nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades. A forma como se deu a "importação" de profissionais de outros países foi alvo de muitas críticas por parte da categoria médica brasileira. Até aí, parece inteiramente compreensível que o programa fosse questionado, tanto por presumíveis vieses ideológicos do governo, quanto por prováveis interesses de mercado envolvendo a classe médica. Entretanto, o que se viu, em determinado ponto, foi uma radicalização ferrenha por parte de alguns, vide a recepção hostil de cubanos em aeroportos, em que parecia haver uma defesa da existência e não de um ponto de vista ou de uma categoria. E aqui, justamente, estamos tratando dessas situações extremas, onde a inflexibilidade e a rigidez se apoderam do aparelho de pensar, e não de opiniões ou defesas sadias e necessárias. Será que essa defesa obstinada e fanática, no exemplo acima, não representou, para alguns, o sentido da existência, demasiadamente vinculado ao "ser médico", ameaçado? E nesse momento a PPP levantando-se como refúgio possível?

Para Bollas14, ao descrever o estado mental fascista, as diferentes partes do self e de objetos representados no mundo interno funcionam como um sistema parlamentar que, mediante a cobiça, a inveja ou a angústia, pode evoluir para um sistema interno menos representativo e, portanto, menos democrático. Todos nós estamos sujeitos a tais variações e tentações autoritárias, naturalmente. Nesse estado mental, as incertezas e os autoquestionamentos equivalem à debilidade e devem ser suprimidas a fim de manter a certeza e a pureza ideológica. Notoriamente, o nazismo remete a esse funcionamento, onde a diversidade é aniquilada. Elementos de oposição foram vistos como desintegradores da ordem instituída e, assim sendo, deveriam ser eliminados. Não havia lugar para dissenso, pois a identidade nacional estava acima de qualquer diferença. Pode-se considerar que na Era Nazi, os nazistas e seus apoiadores projetaram o que havia de "mau" em si nos "inimigos" da época, transformando comunistas e judeus em personagens-símbolo do terror político e do desvio racial, definindo-os como elementos ameaçadores à integridade do corpo social, e, assim, sentindo-se aliviados por vivenciarem apenas o seu "lado bom". Aqui, o uso da cisão e da projeção fica evidente como forma de defesa da identidade ariana. Já o "Renascer da Besta", denominação para o ressurgimento de grupos neonazistas em sociedades atuais, traz a latência do autoritarismo em cada um de nós e o flerte com os estados mentais fascistas no dia a dia.

Rosenfeld15 afirma que o narcisismo onipotente e destrutivo pode organizar-se no próprio self, como uma "gangue narcísica", atacando por meio de ameaças e promessas de proteção e de satisfação das ilusões, boicotando o restante do self do sujeito, que poderia estar desejoso de um crescimento e de um contato maior com a realidade e diferentes pontos de vista em um contexto de fanatismo. Conceituação semelhante foi dada por Steiner16, quando afirma que pode ocorrer uma "organização patológica da personalidade", na qual enfatiza a relação perversa que se estabelece, sob a forma de uma estrutura relativamente estável, entre partes diferentes, libidinais e destrutivas, de um mesmo self.

Albuquerque6 propõe o uso do termo "estado mental ideológico" quando uma ideologia é muito dissociada da realidade, ou torna-se muito rígida e restritiva. Ele reforça que "estado" traz uma conotação dinâmica em vez de estática, seja ela mais temporária ou mais permanente, de uma forma da mente se estruturar e funcionar, de gerar afetos, pensamentos, significados e ações, e de expressar relações internas e externas de objeto dando assim um destino aos afetos e às pulsões de vida ou de morte. Diz ainda que ele se originaria de dificuldades maiores ou rupturas nas relações de objeto mais precoces, expressando assim fantasias mais arcaicas e lidando principalmente com ansiedades persecutórias, mais intensas e primitivas. Em seu artigo, Albuquerque evoca o exemplo de um homem que trazia consigo uma ideologia alternativa naturalista, que incluía ser um vegetariano radical. Ao fazer a compreensão dinâmica do paciente, o autor relata que havia uma busca desesperada de alguma identidade, que ele parecia não possuir, parecendo a sua personalidade a expressão de um tipo de colagem malfeita e mal costurada. Demonstrava um forte ódio invejoso do pai e dos irmãos, que mantinham estilos de vida muito diferentes, estendendo-se até o terapeuta, na transferência, por não reconhecer no terapeuta um "iniciado" na sua ideologia, portanto um adversário. O autor ainda propõe que essa ideologia funcionava como via de descarga para a raiva e ao mesmo tempo lhe dava a sensação de ser alguém "diferente da massa" e esse sentimento de ser especial colaborava para lhe dar alguma coesão num self precariamente organizado e de funcionamento predominantemente em conflito com a realidade.

Albuquerque6 aponta que:


"As ideologias podem funcionar como formas de se defender da falta de sentido na vida, correndo o risco de se transformarem em novas religiões, com o mesmo dogmatismo das antigas crenças. No contexto atual, múltiplas visões de mundo podem se tornar objetos próprios para serem idealizados e consumidos, atacados ou defendidos, mas não para serem pensados e compreendidos."


Assim, aventa-se que na teoria psicanalítica e suas variadas correntes, muito do funcionamento por trás de manifestações do espectro fanático, pode ser clarificado quando em contato com o significado de angústias primitivas e conflitos inconscientes de cada indivíduo.

2.4. Fake news

O tema acerca de notícias falsas, conhecidas mundialmente pelo termo em inglês fake news, vem sendo discutido exaustivamente, principalmente se considerarmos o cenário da política brasileira e do enfrentamento da crise atual. Seminários e debates a respeito de fake news, pós-verdade e mídia alastram-se por toda parte. Segundo Frias Filho17, o termo fake news deveria ser compreendido como toda informação que, sendo de modo comprovável falsa, seja capaz de prejudicar terceiros e tenha sido forjada e/ou posta em circulação por negligência ou má-fé, neste caso, com vistas ao lucro fácil ou manipulação política. Cabe, também, discernir entre a divulgação ocasional de notícias falsas e sua emissão reiterada, sistemática, a fim de configurar a má-fé.

Bucci18 diz:


"Além da vulnerabilidade própria de uma opinião pública conflagrada, existe outra, de natureza subjetiva: entre nós, a honestidade intelectual está em baixa. Gente semianalfabeta e gente instruída, com pós-doutorado, replica fake news de forma acrítica. A elite intelectual parece estar convencida de que, para fazer sangrar o lado oposto, a mentira é uma aliada virtuosa. Há uma espécie de predisposição violenta - pulsional - que atua a favor delas. 'Ou estão idiotizadas pelo fanatismo ou acham que o resto da humanidade é idiota e não vai perceber os embustes que agenciam'."


O pesquisador Adam Waytz19, utilizando-se dos vértices da psicologia social e da neurociência cognitiva, traz à tona o conceito de "raciocínio motivado", a ideia de que somos motivados a acreditar no que confirma nossas opiniões. Com o tempo, isso poderia levar a um consenso social falso. E aborda, também, a ideia de "realismo ingênuo", em que há uma tendência em acreditarmos que a nossa percepção da realidade é a única versão precisa, e que as pessoas que discordam de nós são necessariamente desinformadas, irracionais ou tendenciosas. Assim, em vez de não concordarmos com nossos adversários, nós os difamamos. Waytz e seus colegas realizaram um estudo em que apresentaram aos participantes três diferentes "tipos" de declaração: um fato, uma preferência e uma crença moral-política. Após, os participantes tiveram seus cérebros escaneados usando fRMI (Imagem por Ressonância Magnética funcional) ao ler cada declaração. Concluiu-se, através do padrão de atividade cerebral, que as pessoas processam as crenças morais-políticas mais como preferências do que como fatos. O autor finaliza "O maior perigo não é, na verdade, a notícia falsa, mas sim o tribalismo. A despolarização só ocorre quando alguém tem a coragem de contestar sua tribo".

Amós Oz1 diz "Vocês vão descobrir que, com frequência, os fanáticos são irremediavelmente sentimentais: é muito comum que prefiram sentir a pensar". Quando incorporamos fake news, de forma tão ávida às nossas verdades eliminamos o pensar, o outro e o princípio da realidade. Utilizamos da negação, da idealização e da onisciência como forma de talhar um abrigo seguro em meio às possibilidades de sentir dor, naquilo que "foge" ao narciso. Talvez, os recentes movimentos antivacinas e de contestação da ciência, em nosso cenário pandêmico atual, representem defesas em massa contra a dor e a finitude, que, contraditoriamente, poderão gerar um número ainda maior de vítimas da covid-19.

2.5. E onde entra a perversão?

Previamente, Amós Oz fora citado, no exemplo do taxista judeu que considerava a solução para o conflito com os árabes, a matança de todos eles. Na sequência, quando colocado diante do choro de um bebê árabe, o taxista recuou em sua convicção. Esse foi um bom exemplar de quando a individualidade de cada sujeito, em relação ao todo, ainda está preservada. O bebê árabe não era apenas mais um árabe digno de ser morto, pertencente a um grupo odiado - era, sim, um "bebê-indivíduo".

Para o perverso, segundo autores contemporâneos, essa especificidade do sujeito está abolida. Pouco importa para o abusador se o objeto do abuso será uma criança, um adolescente ou um adulto, o que interessa é a sua satisfação. "Muitas discussões sustentam que o objetivo da perversão é despersonalizar o objeto, mas também se fundir com ele. O insuportável é o relacionamento com uma pessoa que tem sua própria alteridade."20

Não por coincidência, nos vem em mente o holocausto dos judeus durante o regime nazista de Adolf Hitler, em que homens, mulheres, crianças e velhos, eram apenas "inimigos" a serem exterminados sem nenhuma individualidade. "Sempre que algo é interposto entre a pessoa e o objeto para impedir um relacionamento baseado no respeito pelo objeto, no prazer pela alteridade e pela qualidade pessoal deste, constitui algo perverso."20

Ainda podemos acrescentar que sempre que essa desobjetalização, reconhecimento de outrem, ocorrer e for transformada, de certa forma, em excitação sexual, o perverso torna-se ainda mais nítido. Em determinados movimentos políticos, tanto de esquerda quanto de direita, percebe-se um tom de "condução de massas", onde as particularidades dos seguidores ficam em segundo plano em nome de uma "ideologia maior" - um fim. Esses "guias", muitas vezes, tomam para si a missão de conduzir e salvar seus seguidores, tendo inúmeras pautas sociais como substrato. Entretanto, com o andar sereno do tempo, imagens do "narciso" começam a brotar em paredes brancas de construções sem nome. Estátuas põem-se em pé, eretas e soberanas, personificando o líder, naturalmente e sem dor. O discurso perverso de políticos populistas, seguidamente travestido de alteridade, traz enraizado a libidinização da falta de reconhecimento das necessidades reais do outro. As necessidades do outro são aquelas escolhidas por ele e ponto final. "A minha verdade é a sua".


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


"Pode-se usar a força para derrotar o Estado Islâmico, mas o vazio que a isso se seguirá deve ser preenchido com ideias melhores. Afinal, não se pode bater numa ferida que sangra para fazê-la parar de sangrar ou para fazê-la deixar de ser uma ferida."

(Oz, Amós. Como curar um fanático)


O presente trabalho abordou o fanatismo em uma conjuntural social e individual. Fazendo-se um paralelo com o atual momento de pandemia, tornou-se plausível considerar que as bases para o fortalecimento do pensamento fanático, em uma sociedade, deriva de um momento de crise, remetendo a um funcionamento primitivo relacionado à sobrevivência. Poderíamos supor que uma espécie de justiça "primitiva" e "taliônica" emerge.

A relação entre o "pensar fanático" e a dominação do self por uma "parte" ou "organização" autoritária latente fica visível ao pensarmos os significados psicodinâmicos de uma postura extremada e rígida. A partir de conceitos psicanalíticos, o texto abordou o fanatismo como uma defesa possível à sobrevivência psíquica de indivíduos com um self muito fragilizado e sujeito à desintegração. Aventou-se que ideologias podem funcionar como formas de defender-se da falta de fundamento de existência.

Também, considera-se que as fake news encontram guarida no fanatismo, assim como a perversidade obtém terreno fértil para "esterilizar" as relações humanas, aproveitando-se delas.

Pode-se considerar que quanto mais democrático nosso mundo interno e maior a representatividade de diferentes "núcleos partidários", maior a capacidade de pensar e de empatizar. Um regime autoritário remetenos a Narciso, ao comando único. A renúncia de Édipo conduz à divisão de poderes, à posição depressiva, ao convívio na diversidade - ao pluripartidarismo. A capacidade de amar, decorrente do abandono do narcisismo no interior do Eu, aliada à empatia e à autocrítica podem permitir ao sujeito um pensar criativo e um afastamento do pensamento fanático soberano.


REFERÊNCIAS

1. Oz A. Como curar um fanático. Israel e Palestina: entre o certo e o certo. São Paulo: Companhia das Letras; 2016.

2. Cassorla R. Notas sobre fanatismo e mentira. In: Blog de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Disponível em: <http://psicanaliseblog.com.br/2018/05/23/notas-sobre-fanatismo-e-mentira>. Acesso em: 03 Set. 2018.

3. Gerchmann A, Ferrari Filho CA. Fanatismo: destino da pulsão. Adversário da cultura? Rev. psicanal. 2017;19(1):29-41.

4. Pinsky CB, Pinsky J. Faces do Fanatismo. 2. ed. São Paulo: Contexto; 2013.

5. Cleese J. A vantagem de ser um extremista. [Vídeo] Grupo Britânico Monty Python. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IfxewiOu9_k>. Acesso em: 27 Ago. 2018.

6. Albuquerque MAC. As Ideologias e os estados mentais ideológicos na prática clínica. Rev. psicanal. 2014; 16(2):323-336.

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aCentro de Estudos Luís Guedes, CEPOA - Porto Alegre/RS - Brasil
bCentro de Estudos Luís Guedes, CEPOA Porto Alegre/RS - Brasil; Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, SPPA - Porto Alegre/RS - Brasil

Correspondência

Marcos da Silveira Cima
cima.marcos86@gmail.com

Submetido em: 20/12/2020
Aceito em: 19/04/2021

Contribuições: Marcos da Silveira Cima - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Vivian Peres Day - Conceitualização, Redação - Revisão e Edição, Supervisão

Instituição: Centro de Estudos Luís Guedes, CEPOA - Porto Alegre/RS - Brasil

 

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