Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):223-235
Cima MS, Day VP. O fanatismo como sobrevivência psíquica durante a pandemia da COVID-19. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):223-235
Revisão Narrativa
O fanatismo como sobrevivência psíquica durante a pandemia da COVID-19
Fanaticism as psychic survival during the COVID-19 pandemic
Fanatismo como supervivencia psíquica durante la pandemia del covid-19
Marcos da Silveira Cimaa; Vivian Peres Dayb
Resumo
Abstract
Resumen
1. INTRODUÇÃO
Em tempos de pandemia, o "ser fanático" ganha protagonismo. Reflexões a respeito desse fenômeno podem estimular o aparelho de pensar, individual e social, a afastar-se de simplificações, instigando o retorno da curiosidade. Amós Oz1, escritor israelense que reflete acerca da natureza do extremismo com base no conflito Israel-Palestina, em palestra proferida na manhã seguinte aos ataques terroristas de novembro de 2015 em Paris, disse:
"A curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas."
"O termo 'fanático' vem do latim fanus, templo ou santuário. O fanático era o vigilante ou porteiro, que velava cuidadosamente pelo templo e, por extensão, pela crença. Ao contrário da maioria dos romanos que veneravam vários deuses, o fanático se dedicava, com fervor e exaltação, a apenas uma crença. Sua crença é a única verdadeira. Os não crentes serão combatidos e, se não vencidos, serão eliminados."
"O crescimento do fanatismo pode ter relação com o fato de que quanto mais complexas as questões se tornam, mais as pessoas anseiam por respostas simples. Fanatismo e fundamentalismo muitas vezes têm uma resposta com uma só sentença para todo o sofrimento humano. O fanático acredita que se alguma coisa for ruim, ela deve ser extinta, às vezes, junto com seus vizinhos... Infelizmente, penso que, assim como a violência, o fanatismo também é um componente permanente da natureza humana, um gene ruim que existe em quase todos nós."
"Nos escritos de Amós Oz, um motorista de táxi judeu considerava que a solução para o problema com os árabes era matar todos eles. Ao final de um diálogo, fingindo concordar, o interlocutor indaga: 'Agora imagine que você entrou em uma casa e matou todos os árabes. Você se afasta e ouve um choro de um bebê, dentro de casa'. O motorista retruca, impactado: 'O sr. É muito cruel!'. Este motorista não era, na realidade um fanático. Ao entrar em contato com a realidade, com a alteridade, pôde rever-se."
"Em tempos de crise, quando a proteção da repressão parece insuficiente, há como que um retorno a um tempo histórico excessivamente matizado pelo narcisismo, onde a onipotência de pensamento, característico dos povos primitivos, reproduz o borramento das diferenças, fato que por sua vez ataca o reconhecimento da alteridade. Se uma cultura viva e fortemente enraizada no sujeito social protege contra a dor do desamparo, é também verdade que, em épocas de crise, a humanidade volta a utilizar defesas mais rígidas e inflexíveis, fato que parece manifestar-se culturalmente, por exemplo, no reaparecimento de opções mais totalitárias, marcadas pelo pensamento fanático."
"Uma das manobras defensivas utilizadas para lidar com a angústia, em nível individual ou grupal, é o retorno ao pensamento mágico, aderindo a crenças irracionais ou, o seu inverso, às ideologias racionais, que obturem a ferida narcísica das incertezas e produzam um estado mental ideal, no qual as faltas possam ser justificadas, compensadas ou nem mesmo sentidas."
"O ódio, companhia inseparável do fanatismo, pode ser expressão do grau de um desamparo tantas vezes experimentado passivamente na infância primitiva. Representaria algo como o retorno do registro das vivências do não acolhimento e do desencontro. Assim sendo, é esse ódio que nos remete a pensar no traumático, nas relações primitivas de objeto como elemento significativo na gênese da mente fanática. Em particular, nas vicissitudes do desinvestimento da pulsão de morte, movimento capaz de apagar a força de investidura da pulsão de vida, que, ao cobrir com desesperança aqueles momentos de vivo desejo direcionados a um não-Eu, faz com que, inapelavelmente, essa imagem do outro dentro do sujeito vá se revestindo como objeto cruel, na medida em que este, repetidamente, desaponta. Acaba por ocorrer, em consequência, uma busca por saídas passivo-agressivas para aquele interjogo sadomasoquista sofrido passivamente."
"Na globalizada diversidade multicultural, uma espécie de marca da vida moderna nas sociedades ocidentais, todos os tipos de crenças, costumes e ideologias parecem naturalmente justificadas ou vistos de forma politicamente correta como um mero exercício de liberdade pessoal, uma escolha tomada como consciente e fruto do livre arbítrio, não necessariamente vinculada a significados psicológicos mais profundos. Tudo se tornou aceitável e pouco ou nada se questiona. Prolifera na sociedade ocidental moderna uma atitude, individual e social, de um certo embotamento mental para os significados não manifestos."
"As ideologias podem funcionar como formas de se defender da falta de sentido na vida, correndo o risco de se transformarem em novas religiões, com o mesmo dogmatismo das antigas crenças. No contexto atual, múltiplas visões de mundo podem se tornar objetos próprios para serem idealizados e consumidos, atacados ou defendidos, mas não para serem pensados e compreendidos."
"Além da vulnerabilidade própria de uma opinião pública conflagrada, existe outra, de natureza subjetiva: entre nós, a honestidade intelectual está em baixa. Gente semianalfabeta e gente instruída, com pós-doutorado, replica fake news de forma acrítica. A elite intelectual parece estar convencida de que, para fazer sangrar o lado oposto, a mentira é uma aliada virtuosa. Há uma espécie de predisposição violenta - pulsional - que atua a favor delas. 'Ou estão idiotizadas pelo fanatismo ou acham que o resto da humanidade é idiota e não vai perceber os embustes que agenciam'."
"Pode-se usar a força para derrotar o Estado Islâmico, mas o vazio que a isso se seguirá deve ser preenchido com ideias melhores. Afinal, não se pode bater numa ferida que sangra para fazê-la parar de sangrar ou para fazê-la deixar de ser uma ferida."
(Oz, Amós. Como curar um fanático)
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