Rev. bras. psicoter. 2021; 23(1):3-7
Alckmin-Carvalho F. Impacto da pandemia por COVID-19 em pacientes com transtornos alimentares: considerações para profissionais de saúde mental. Rev. bras. psicoter. 2021;23(1):3-7
Carta ao Editor
Impacto da pandemia por COVID-19 em pacientes com transtornos alimentares: considerações para profissionais de saúde mental
Impact of COVID-19 pandemic on patients with eating disorders: considerations for mental health professionals
Impacto de la pandemia de COVID-19 en pacientes con trastornos alimentarios: consideraciones para profesionales de salud mental
Felipe Alckmin-Carvalho
Resumo
Abstract
Resumen
Desde a primeira morte por COVID-19 no Brasil, registrada em fevereiro de 2020, a pandemia já matou, em doze meses, mais de 200.000 pessoas. Infectou pelo menos outras 7 milhões, no país, sendo essa prevalência possivelmente subestimada. A instabilidade política e a ineficiência da resposta ao COVID-19 no Brasil têm agravado essa crise sanitária sem precedentes1. Discursos e comportamentos inconsistentes do presidente da república, que, na contramão das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), desencoraja abertamente as sensatas medidas de distanciamento social, agravam a sensação de insegurança e produzem medo e ansiedade em níveis alarmantes1. As principais preocupações e medos da população têm relação com a infecção pela COVID-19, a transmissão do vírus, o adoecimento e a morte própria ou de entes queridos, o caos econômico e político.
Em situações adversas como a atual, pessoas com Transtornos Alimentares (TA) tendem a ter seus sintomas agravados2. Indivíduos com sintomas subclínicos podem passar a preencher os critérios para o diagnóstico de um TA e pacientes que já estavam em fase de remissão podem voltar a apresentar padrões de alimentação sintomáticos, com sofrimento clinicamente significativo associado.
Algumas tendências podem ser previstas, a partir do perfil cognitivo e comportamental associado a cada TA, verificado em pesquisas empíricas e a partir da experiência clínica. Pesquisadores indicam que pacientes com Anorexia Nervosa costumam apresentar dificuldade de lidar com situações de mudanças, risco, incerteza ou falta de controle3. Frente à sensação de incontrolabilidade é possível que esses pacientes voltem a controlar seu peso e mediadas corporais, e a se engajarem em comportamentos para perder peso, com função de aliviar a sensação de vulnerabilidade.
Pacientes com Transtorno de Compulsão Alimentar e Bulimia Nervosa, por sua vez, que tendem a apresentar "comer emocional"4, podem fazer uso da comida para diminuir sensações de solidão, frustração e tédio, decorrentes das medidas de restrição das atividades envolvendo relações humanas para conter as infecções por COVID19. Além disso, a necessidade de estocar certa quantidade de alimento para evitar a circulação nas cidades pode favorecer episódios de compulsão alimentar e de métodos compensatórios do ganho de peso.
Na Anorexia Nervosa, na Bulimia Nervosa e no Transtorno de Compulsão Alimentar verifica-se que a relação que se estabelece com a comida - restritiva ou excessiva, seguida ou não de métodos compensatórios de ganho de peso - tem função de autorregulação emocional4,5. Adicionalmente, pacientes com esses TA costumam apresentar algum nível de alexitimia (dificuldade de identificar, descrever e comunicar sentimentos e de diferenciá-los de sensações corporais)6. Assim, frente à impossibilidade de falar sobre os sentimentos de modo adequado, aumenta a probabilidade de passagem ao ato (acting-out), por meio do uso da comida e do corpo para a expressão de sentimentos e sensações como angústia, vulnerabilidade, ansiedade e desesperança.
Ademais, entre pacientes com Bulimia Nervosa e Compulsão Alimentar Periódica, sobretudo, as restrições de contato social e outros modos de privação associados às medidas preventivas da infecção por COVID-19 podem produzir sensação de isolamento, solidão e tristeza. Frente a essas sensações aversivas, o uso da comida como reforçador substituto da atenção social e afeto, operação comum nesses quadros7, tende a ocorrer. Portanto, expressivo ganho de peso em pacientes com Transtorno de Compulsão Alimentar e aumento da frequência dos episódios de compulsão e purgação entre indivíduos com Bulimia Nervosa devem ser monitorados e cuidados.
Nesse delicado e complexo cenário, clínicos que atendem a pessoas com TA devem estar atentos ao modo como cada paciente é afetado pela pandemia, considerando as particularidades de cada caso. As estratégias de tratamento devem contemplar o desenvolvimento de comportamentos alternativos com função de regulação emocional compatíveis com o contexto do paciente. Esses profissionais de saúde mental devem, ainda, estimular que seus pacientes coloquem em palavras os impactos objetivos e subjetivos decorrentes da pandemia. Devem também funcionar como ambiente que favoreça o desenvolvimento de estratégias para lidar com restrições e perdas que prescindam do uso da alimentação e do corpo para este fim.
Especialistas na área de TA têm recomendado uma série de medidas que podem reduzir os níveis de ansiedade e angústia desses pacientes durante a pandemia por COVID-192,7. Manter os atendimentos nutricionais, psicológicos e psiquiátricos por videoconferência tem se mostrado uma estratégia segura, viável e eficaz. Atualmente sabe-se que quanto maior o nível de exposição à cobertura da mídia da crise sanitária, mais elevados parecem permanecer os níveis de ansiedade e insegurança. Assim, tem-se recomendado a exposição a informações sobre a pandemia de modo controlado e monitorado.
Para manejar a solidão decorrente do isolamento social, encontros online são estimulados. Além disso, encontros presenciais, esporádicos, entre poucas pessoas, também em quarentena, em espaços abertos e ventilados, mantendo-se o distanciamento de aproximadamente dois metros e o uso de máscaras, podem ser importantes para manter a quarentena viável, em termos emocionais. Grupos de apoio online para pacientes com TA ou para a comunidade, de modo geral, também têm se mostrado uma alternativa interessante.
Durante a pandemia por COVID-19 tem-se verificado o aumento do tempo de uso de redes sociais. Monitorar o tempo de exposição a essas redes e seus efeitos também é indicado, uma vez que exposição a essas redes costumam produzir efeitos negativos em termos de imagem corporal e autoestima entre pacientes com TA. Investir em atividades de lazer que não envolvam risco de contágio por COVID-19 também é uma medida estimulada. Para pacientes com TA que permanecem em casa, manter os horários das refeições e fazer as refeições em ambiente diferente de onde se trabalha ou dorme, quando possível, é recomendado.
Por fim, destaca-se que os comportamentos verificados entre pacientes com TA, como restrição alimentar severa, exercícios físicos em excesso, compulsão alimentar e purgação, quando perduram por longos períodos, podem produzir importante impacto fisiológico com potencial de imunossupressão8, condição associada a piores prognósticos em casos de infecção por Coronavírus9. Desse modo, possíveis infecções por COVID-19 entre pacientes com baixo peso, desnutrição severa e crônica, ou entre pacientes obesos, devem ser especialmente evitadas. Durante a pandemia de COVID-19 a continuidade dos atendimentos psicológicos, psiquiátricos e nutricionais são essenciais para preservar a saúde física e mental do paciente com transtorno alimentar e mitigar o impacto emocional da grave condição sanitária da atualidade.
REFERÊNCIAS
1. Prado B. COVID-19 in Brazil: "So what?". Lancet. 2020; 395:1461.
2. Fernández-Aranda F, Casas M, Claes L, Bryan DC, Favaro A, Granero R. Menchón JM. COVID-19 and implications for eating disorders. European Eating Disorders Review: The Journal of the Eating Disorders Association. 2018; 28(3), 239.
3. Merwin RM, Timko CA, Moskovich AA, Ingle KK, Bulik CM, Zucker NL. Psychological inflexibility and symptom expression in anorexia nervosa. Eating Disorders. 2010; 19(1), 62-82.
4. Rotella F, Mannucci E, Gemignani S, Lazzeretti L, Fioravanti G, Ricca V. Emotional eating and temperamental traits in Eating Disorders: A dimensional approach. Psychiatry Research. 2018; 264, 1-8.
5. Brockmeyer T, Skunde M, Wu M, Bresslein E, Rudofsky G, Herzog W, Friederich HC. Difficulties in emotion regulation across the spectrum of eating disorders. Comprehensive Psychiatry. 2014; 55(3), 565-571.
6. Nowakowski ME, McFarlane T, Cassin S. Alexithymia and eating disorders: a critical review of the literature. Journal of Eating Disorders. 2013; 1(1), 21-36.
7. Vale AMOD & Elias LR. Transtornos alimentares: uma perspectiva analítico-comportamental. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. 2011; 13(1), 52-70.
8. Cuesto G, Everaerts C, León LG, Acebes A. Molecular bases of anorexia nervosa, bulimia nervosa and binge eating disorder: Shedding light on the darkness. Journal of neurogenetics. 2017; 31 (4), 266-287.
9. Fernández‐Aranda F, Casas M, Claes L, Bryan DC, Favaro A, Granero R & Treasure J. COVID‐19 and implications for eating disorders. European Eating Disorders Review. 2020; 28(3), 239-245.
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica - São Paulo/SP - Brasil
Correspondência
Felipe Alckmin-Carvalho
felipealckminc@gmail.com / E-mail alternativo: felipcarvalho@usp.br
Submetido em: 18/05/2020
Aceito em: 19/04/2021
Contribuições: Felipe Alckmin-Carvalho - Redação - Preparação do original
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