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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(2):93-103



Relato de Caso

La elección amorosa entre la compulsión a la repetición y la transferencia: un caso clínico

The love choice between compulsion to repetition and transference: a clinical case

A escolha amorosa entre a compulsão à repetição e a transferência: um caso clínico

Homero Artur Belloni Silvaa; Sandra Aparecida Serra Zanettib

Resumo

Problemas relacionados com escolhas amorosas estão entre as situações de maior procura para atendimento clínico e merecem um olhar atento daqueles que se propõem a trabalhar em tal campo. Dentro da teoria psicanalítica, dois conceitos se mostram indispensáveis para tal estudo: a compulsão à repetição e a transferência. O primeiro pelo fato deste movimento inconsciente ser o que impulsiona a escolha amorosa; e o segundo, por se tratar de uma modalidade da compulsão à repetição e, por isso, ser a responsável por trazer essa problemática a relação terapêutica. Diante da importância do tema para a prática psicanalítica, esse artigo busca apresentar um caso clínico onde esses dois conceitos serão trabalhados para a compreensão do caso e o tratamento clínico.

Descritores: compulsão à repetição, transferência amorosa, escolha amorosa, clínica psicanalítica, relacionamento amoroso

Abstract

Problems related to love choices are among the situations of greater demand for clinical care and deserve a close look of those who propose to work in such field. Within psychoanalytic theory, two concepts are indispensable for such study: the compulsion to repetition and transference. The first because this unconscious movement is what drives the choice of love; and the second, because it is a modality of compulsion to repetition and, therefore, be responsible for bringing this problem to the therapeutic relationship. Faced with the importance of the subject for psychoanalytic practice, this article seeks to present a clinical case where these two concepts will be worked out for the understanding of the case and clinical treatment.

Keywords: compulsion to repetition, love transference, love choice, psychoanalytic clinic, love relationship

Resumen

Los problemas relacionados con las elecciones amorosas están entre las situaciones de mayor demanda para atención clínica y merecen una mirada atenta de aquellos que se proponen trabajar en tal campo. Dentro de la teoría psicoanalítica, dos conceptos se muestran indispensables para tal estudio: la compulsión a la repetición y la transferencia. El primero por el hecho de que este movimiento inconsciente es el que impulsa la elección amorosa; y el segundo, por tratarse de una modalidad de la compulsión a la repetición y, por eso, ser la responsable de traer esa problemática la relación terapéutica. Ante la importancia del tema para la práctica psicoanalítica, este artículo busca presentar un caso clínico donde esos dos conceptos serán trabajados para la comprensión del caso y el tratamiento clínico.

Descriptores: compulsión a la repetición, transferencia amorosa, elección amorosa, clínica psicoanalítica, relación amorosa

 

 

INTRODUÇÃO

As escolhas amorosas muitas vezes são problemáticas, a ponto de Nasio1 as colocar entre uma das situações que mais aparecem nos consultórios, juntamente com as escolhas profissionais. No entanto, por mais que as pessoas pensem a respeito do par amoroso, elaborem teorias sobre a vida desse outro, reflitam sobre o seu passado, imaginem o futuro juntos, não é com base nesses aspectos conscientes que tais decisões são tomadas. Para Nasio1, a decisão de começar um relacionamento ou não é tomada sempre com base em aspectos mais inconscientes do indivíduo e, assim como outras escolhas, o autor defende que elas não são explicadas sem o conceito freudiano de compulsão à repetição.

A partir do exposto, cremos ser de extrema importância que aqueles que trabalham com a clínica psicanalítica tenham olhares atentos para esta questão: a relação entre a compulsão à repetição e a escolha amorosa, tendo em vista o caráter central que esta relação pode ocupar em um caso clínico. Assim, esse artigo se propõe a apresentar um relato de um caso no qual perceber o modo como se organizava a escolha amorosa foi essencial para o tratamento e a compreensão do caso. Ainda visa expor a importância de se considerar a repetição no contexto dos relacionamentos amorosos dentro da relação transferencial, explorando a função do terapeuta como aquele capaz de identificar na relação transferencial os resultados dos fenômenos inconscientes do paciente. É o terapeuta quem convoca o indivíduo para repensar sua vida por meio desta repetição, de modo que esse consiga abandonar o caráter repetitivo de suas ações.


COMPULSÃO À REPETIÇÃO

A noção de compulsão à repetição se mostra muito importante para a teoria e prática psicanalítica, de modo que escutar e perceber a repetição tem se mostrado um desafio a ser percorrido por psicólogos que visam compreender o inconsciente de seus pacientes1. Para o autor, essa compulsão é um movimento inconsciente do indivíduo de repetir um passado traumático esquecido. Segundo ele, sua importância se pauta na questão que ela é a principal atividade do inconsciente, dirigindo nossas escolhas amorosas, profissionais, dentre outras. Portanto, o autor garante que qualquer profissional que se proponha a estudar, observar ou escutar o inconsciente deve analisar não apenas situações prazerosas para o indivíduo, mas situações lhe causam sofrimento e que mesmo assim tende-se a repetir ao longo da vida.

Freud2 em "Além do princípio do prazer" começa a descrever o caráter de compulsão que existe na repetição. Nesse texto, Freud dá alguns exemplos de como fatos traumáticos são repetidos nos sonhos, nas brincadeiras infantis e na vida dos neuróticos e, a partir disso, ele se pergunta o motivo do ego repetir tais fatos. Esse momento da metapsicologia freudiana é decisivo para toda teoria psicanalítica, pois como Caropreso e Simanke3 defendem, grande parte da teoria psicanalítica está sendo questionada por Freud neste momento, já que a ideia do "princípio do prazer" está em cheque.

Para responder à questão da repetição nos sonhos, nos jogos infantis e na vida dos neuróticos, mesmo em situações desprazerosas, Freud2 introduz a noção de compulsão à repetição. Para ele, toda situação traumática tende a se repetir independente do desprazer causado por ela. Kegler e Macedo4 explicam que Freud está dizendo que em momentos de excitação muito grande o aparelho psíquico não consegue "ligar" uma ideia aos sentimentos e sensações produzidas por essa excitação, tornando a situação traumática. Para os autores, toda vez que isso ocorre surge um campo para a compulsão à repetição, pois esse ato de repetição teria como objetivo buscar conectar sentimentos e sensações as ideias, e por isso a repetição existe mesmo que ela proporcione desprazer. No entanto, Kegler e Macedo4 ainda ressaltam, como também apontou Freud2, que a compulsão à repetição e a satisfação pulsional estão intimamente ligadas, ou seja, mesmo ocorrendo certo desprazer no ato repetitivo sempre ocorre uma satisfação pulsional: "(...) resta o suficiente para justificar a hipótese da compulsão à repetição, e esta nos parece mais originária, mais elementar, mais pulsional que o princípio do prazer que é por ela afastado"2.

Nesse mesmo caminho, Garcia-roza5 entende que a pulsão seria o combustível da repetição e, devido a isso, o autor aponta que podemos falar em compulsão à repetição. O autor supõe que existe uma necessidade em repetir o passado esquecido e essa repetição sempre se dá em uma relação com o objeto. Nasio1 defende o mesmo entendimento: para ele, o inconsciente se manifesta na repetição e sua força propulsora é a própria pulsão:


"(...) o inconsciente é igualmente a força que nos leva a reproduzir compulsivamente os mesmos fracassos, os mesmos traumas e os mesmos comportamentos doentios - e então a repetição é uma repetição patológica e o inconsciente uma pulsão de morte." 1


Assim, a escuta analítica deve dirigir sua atenção à repetição, pois escuta-la e percebe-la é se dispor à escutar o material inconsciente do indivíduo. Para Nasio1, a repetição é uma hemorragia que sempre tem origem em uma ferida inconsciente. A pessoa repete apesar do desprazer causado por essa atitude, indicando também uma ligação deste traço do comportamento com a pulsão de morte. Depois que Freud introduziu a noção de pulsão de morte na teoria psicanalítica, e de que todo ser vivo tende ao fim, uma das principais atividades do terapeuta é estabelecer um olhar sobre a compulsão à repetição4. Assim como Nasio1, esses autores defendem que há muito do inconsciente nessas ações repetidas que causam sofrimento e são justamente através delas que uma análise deve ser pautada.


A TRANSFERÊNCIA

Outro conceito de extrema importância da teoria e da prática psicanalítica, que foi tomado como organizador para a compreensão do caso clínico neste texto, é a noção da transferência. Segundo Risk e Santos6, o termo transferência não pode ser considerado como um fenômeno unitário já que diversos autores se debruçaram e contribuíram para a formação do conceito. No entanto, não é o objetivo do presente artigo fazer um apanhado do conceito transferência, sendo assim vamos assumi-lo como Freud o propôs. Para Freud7, transferência são reedições de fantasias que, durante o processo de análise, são dirigidas a figura do terapeuta. O autor defende que manejar tal relação se configura como um dos principais trabalhos do terapeuta e isso determinará todo o resto do tratamento7. A noção de transferência é tão importante que Høglend8 defende que a relação paciente-terapeuta é a própria relação de transferência. Logo, segundo o autor, qualquer processo de tratamento dentro da clínica psicológica surge a partir da relação transferencial.

Vale lembrar que os dois conceitos centrais deste artigo - compulsão à repetição e transferência - já se mostraram interligados na própria obra freudiana. Freud9 em "Recordar, repetir e elaborar", argumenta que a repetição sempre se apresenta dentro de uma relação, e que a maior parte das relações do sujeito teria a repetição como caráter central. Nesse texto, Freud9 defende a ideia da transferência ser um fragmento da repetição, e dá o exemplo de um paciente que não recordava ser desafiado frente as figuras de seus pais, mas que agia dessa mesma forma em relação ao terapeuta na relação transferencial. Garcia-roza5 caminha na mesma direção e define a relação de transferência como um caso particular de repetição.

No caso que será exposto neste artigo, os dois conceitos supracitados serviram de norte para o tratamento e a construção do caso, além de contribuírem para a postura do terapeuta frente a algumas situações inesperadas durante o tratamento. Freud7 entende que quando um paciente se encontra insatisfeito em uma relação amorosa ele tende a intensificar sua relação com o terapeuta. Tal noção freudiana é de suma importância para se compreender que a maioria dos relacionamentos amorosos se dão por meio da compulsão à repetição e de que isso em algum momento chegará até a relação transferencial. Cabe ao terapeuta manejar a delicada situação e conduzir o indivíduo para um estado mais consciente de suas ações, principalmente quando se trata de um terapeuta iniciante, como é o caso que será abordado neste texto.


MÉTODO

Para o relato de caso presente neste artigo foi utilizada a metodologia proposta por Jerusalinsky10. Esta metodologia pressupõe que a estrutura da construção do texto teórico esteja em articulação com os fatos, conteúdos, história e compreensão do caso clínico. Contudo, o autor propõe que a construção do caso clínico seja feita com base em uma narrativa guiada pelos questionamentos do autor do caso, e são esses questionamentos- enigmas no qual o terapeuta se encontra envolvido - que constituem um caso. Para Jerusalinsky10, não é qualquer narrativa que faz um caso "Alguém que vem nos contar sua vida não é um caso".

Ainda segundo o autor, nossos questionamentos em cima da narrativa geram um tema central que ele denomina de ponto nodal. Esse ponto é o que indica por onde se deve começar o relato do caso, contudo não nos diz por onde irá terminar. Dessa forma, a ordem cronológica dos fatos não é relevante. O relato de caso deste artigo se baseou nesta metodologia de construção para apresentar o caso clínico: não a partir de uma ordem cronológica pré-estabelecida, mas sim a partir daquilo que se julgou ser o ponto nodal do caso. Aquilo que, segundo Jerusalinsky10, realmente transforma uma narrativa em um caso clínico.

Gabbard1 defende algumas medidas éticas para a publicação de trabalhos pautados em relatos de caso, tais como: a alteração dos nomes, o consentimento dos pacientes e a troca de casos entre colegas para a publicação de artigo. No entanto, quando não for possível usar todos esses métodos, ressalta ser importante seguir pelo menos um deles. Enfatizamos que o trabalho atual fez uso de dois dos métodos propostos pelo autor: o nome da paciente foi alterado e, pelo fato da paciente ter sido atendida em uma clínica escola, no início do tratamento assinou um termo de consentimento aceitando a possibilidade do caso ser publicado para fins de pesquisa.


O CASO


"Desde nova tenho um sonho que me atormenta muito, e sempre que eu tenho, acordo e não consigo mais dormir..." (Ana, 39 anos).


Ana, uma paciente de 39 anos, com alguns poucos meses de terapia, decidiu relatar um sonho. Um sonho que, segundo ela, repetia-se ao longo de sua vida e sempre a aterrorizava. A paciente contou que os primeiros sonhos foram na adolescência e o sonho sempre se dava com um homem observando-a em situações íntimas ligadas à sua sexualidade. Ela atentava para o fato de o ambiente do sonho ser extremamente variado, a única constância era o homem que a observava em situações "constrangedoras". Chamou também a atenção para o fato do homem ser "sem rosto" - em nenhum desses sonhos ela conseguia ver o rosto do observador.

Apesar da paciente classificar o sonho como "muito parado", ele sempre evocava sentimentos fortes e aterrorizantes a ponto dela não conseguir retornar a dormir quando ele se manifestava. Travava-se de um sonho que interrompia seu sono, um pesadelo, na verdade. Devido as características do sonho, ele pode ser pensado como fruto de conteúdos traumáticos, logo, de extremo valor para a análise.

Quando Ana chegou à terapia era recém-separada de um casamento extremamente conflituoso, no qual ela chorava todos os dias em decorrência de muito sofrimento. Ela se dizia muito feliz pelos seus dois filhos, mas seu ex-marido a fez sofrer muito: contou de suas inúmeras traições, dos maus-tratos, das agressões físicas e psíquicas. Contou, contudo, que aquilo que mais lhe havia trazido sofrimento era algo de outra ordem: seu ex-marido praticamente a obrigava a ir com ele em uma casa de swing toda semana, casa onde os casais trocam de parceiros para práticas sexuais, e que isso durou por cerca de 10 anos.

Ela relatou em muitas sessões como era difícil frequentar aquele local, dizia que o ex-marido adorava ir, mas que ela ia sofrendo para aquele ambiente. Ela dizia não ser tão ruim quando seu ex-marido tinha relações sexuais com outras mulheres, pois aquilo era "consentido". Além disso, enquanto ele estava tendo relações com outras mulheres, ele a poupava do que Ana dizia ser "a pior coisa": ter relações com outros homens enquanto seu ex-marido a observava. Ela achava isso extremamente ruim e se sentia "suja" quando ocorriam situações como essa, se via obrigada a tomar vários banhos após o ato, chegando ao ponto de se esfregar até se machucar, ou passar uma noite inteira se lavando depois do ocorrido.

Ana teve uma infância bastante desfavorecida, ela era filha de um casal muito religioso que tivera quatro filhos: dois meninos e duas meninas. No entanto, o que marcou sua infância foi a violência: ela relatava que seu pai era muito austero e por isso praticava uma série de "torturas" com os filhos, em especial com ela e com o caçula, segundo ela. Ana descreveu ter que ficar de joelhos em grãos de milho, ser presa ao pé da cama, ser humilhada publicamente frente a outras pessoas, e ser obrigada a ficar de joelhos pedindo perdão enquanto seu pai a observava - a "pior coisa", segundo seu relato. A paciente relatou que ficava de joelhos por horas com seu pai a olhando e que ela se sentia "errada", "impura", e pedindo perdão.

Na relação com o terapeuta, Ana em diversos momentos se colocava em situações que a deixavam constrangida. Após pouco tempo de terapia, ela começou a dirigir questões sexuais para a relação de transferência. Por exemplo, certo dia ela relatou que usava "calcinha fio dental", mas que não achava isso um problema, pois dizia que todas mulheres usavam. No entanto, em outra sessão ela trouxe uma dessas calcinhas em sua bolsa para mostrar para o terapeuta e perguntou o que ele achava da "peça". Devolvendo a pergunta para ela, Ana se sentiu muito constrangida, guardou a roupa íntima e mudou totalmente o assunto. Situações como essas foram recorrentes durante o tratamento e sempre com o mesmo desfecho: ela ficava constrangida e mudava de assunto.


DISCUSSÃO

A partir do exposto, pode-se pensar que o "ponto nodal" deste caso, o ponto responsável por transformar uma história em caso, está atrelado à compulsão à repetição em relação às escolhas amorosas de Ana. Conforme já apontado, a repetição é uma hemorragia que sempre tem origem em uma ferida inconsciente1 e o seu caráter destrutivo se vincula à pulsão de morte.

Ao analisar o relato do caso de Ana, pode-se perceber algo que perdura ao longo de sua vida, algo repetido que, apesar das transformações, mantém uma identidade. Nasio1 defende o fato das ações repetidas se transformarem no decorrer de uma vida, mas guardar sua essência, conferindo um caráter unitário. Tal essência, para o autor, tem sempre origem em uma fantasia inconsciente e se faz constantemente presente na vida do indivíduo. No caso de Ana, podemos conferir à atitude de sempre se colocar em uma posição de ser observada por um homem numa situação constrangedora, humilhante, como uma repetição, bem como buscar se relacionar com homens que corroborem com tal situação. Ela apresentou uma série de exemplos desse comportamento no decorrer do tratamento: primeiramente, os relatos de quando seu pai a observava durante as punições; depois, as idas à casa de swing com o marido, as escolhas amorosas após o casamento, as atitudes dentro da relação transferencial e o sonho, esse último com um caráter emblemático.

Outro fato fundamental que corrobora com o fato de tal aspecto ser repetitivo é o de Ana elencar como o "pior" tipo de punição aquela em que o pai estava a observando, além dela atribuir como a "pior" situação dentro da casa de swing aquela em que ela estava sendo observada ao ter relações sexuais com outro homem. Ao elencar tais situações como as "piores", a paciente nos faz pensar em um fio condutor que as une, atitudes repetidas que desembocam nos mesmos sentimentos traumáticos, como expõe Nasio1. No caso de Ana, os sentimentos diante de tais atitudes envolviam a vergonha, o sofrimento físico e psíquico.

Além disso, outro fato que nos possibilita sustentar nossa hipótese é que, tal como Freud2 e Nasio1 defendem, as atitudes repetidas tem início em um trauma na vida infantil. Segundo Nasio1, um trauma ocorre por uma falta de simbolização de uma ou várias situações. Ele produz uma série de sentimentos contraditórios entre si e tende a voltar em ato no decorrer da vida do indivíduo. Na vida de Ana, as punições do pai a observando podem ser consideradas a partir dessa ótica, como uma série de situações traumáticas e repetidas na infância que não puderam ser simbolizadas. Isso se torna mais importante quando se analisa o modo como a paciente relatava sua história: Ana diz que foi a filha mais punida por esse pai e não conseguiu entender o motivo disso, inclusive porque o modo como ela relatava fazia pensar numa atitude perversa do pai, e que aventamos ter um caráter sexual. Caráter este que parece ter sido transmitido* à Ana, conferindo à esta repetição um aspecto consciente, ligado ao sofrimento e a vergonha; e um aspecto inconsciente, ligado ao sentimento de prazer e de culpa.

Assim sendo, cabe-nos ainda uma reflexão sobre o lugar que Ana ocupava na organização do seu sintoma. Apesar de relatar todo o sofrimento que viveu, ela passou mais de 10 anos casada com um marido que a fazia sofrer. Portanto, o conceito de masoquismo, ligado aos conceitos de compulsão à repetição e de pulsão de morte deve ser considerado. Ana, de certa forma, aceitava estar num lugar em que vivia o sofrimento nas relações amorosas de maneira repetitiva e continuou buscando, ainda que de maneira inconsciente, por isso após seu casamento. O masoquismo pode ser compreendido não somente como uma perversão em que a satisfação sexual está ligada ao sofrimento, mas também como um "masoquismo moral" no qual o sujeito, "em razão de um sentimento de culpa inconsciente, procura a posição de vítima sem que um prazer sexual esteja diretamente ligado no fato"12, o que parece se ligar mais ao seu caso.

Portanto, é possível pensar que a paciente viveu traumaticamente os momentos de repreensão paterna principalmente porque a cena evocava algo da sexualidade entre pai e filha. Ainda que a paciente não tenha relatado nada em torno de uma violência incestuosa, a fantasia que ela repete faz pensar numa busca por elaborar um trauma desta ordem. O prazer inconsciente que este ato provoca se explica pelo complexo de Édipo13, que considera que toda criança tem desejos amorosos por seus pais, o que ao mesmo tempo evoca um sentimento de culpa e o sofrimento, sobretudo pela natureza incestuosa que o pai provavelmente atribuía a situação. Ou seja, Ana trazia um conflito inconsciente em que o modelo transmitido de como ser olhada/ amada envolvia prazer e humilhação, cuja resolução deveria passar pela consciência de sua responsabilidade nesta busca, do seu posicionamento diante de seu sintoma. Quando apontamos o fenômeno da transmissão, estamos nos baseando no conceito de transmissão psíquica geracional14. Sem nos prolongarmos neste assunto, já que não é um objetivo deste artigo, queríamos apenas salientar um viés da compreensão deste caso, baseado na concepção de que o conteúdo de um material inconsciente pode ser transmitido de uma geração à outra e, por não ser consciente, pode se manifestar por meio de uma atuação na geração precedente. Para Robion15, a transmissão psíquica inconsciente, aborda o mecanismo da "deposição". Tudo se passa como se o conteúdo depositado aguardasse tranquilamente o momento de sua transformação, pois trata-se de material impensado pela geração precedente.

Portanto, cabia ao processo terapêutico a possibilidade de pensar o material transmitido, impensado e traumático. Ainda, tornar-se consciente envolvia a possibilidade de romper com o lugar de submeter-se à sofrimentos recorrentes, com o fato de não se sentir merecedora de uma vida saudável e satisfatória. Após a separação, ela vinha repetindo escolhas amorosas que não lhe faziam bem, escolhas sem muito valor, em que se colocava em uma situação de depreciação. Não parecia haver nela o desejo de buscar uma relação mais satisfatória.

Desta forma, a maneira como a paciente passou a se posicionar na terapia ao trazer suas questões ligadas à sexualidade permitiu um trabalho de sua tendência à repetição a partir da relação transferencial. Na transferência, Ana se comportava de maneira que por vezes acabava ficando constrangida, e muitas vezes deixando o terapeuta também constrangido. Certa vez resolveu descrever de maneira extremamente embaraçosa como ela fazia sexo oral nos homens com quem ela passou a se relacionar após o casamento. É interessante notar que em todas essas situações eram de carácter provocativo, sexual, e ela esperava algum tipo de repreensão do terapeuta, e se mostrava muito incomodada quando isso não ocorria. Aqui nossa hipótese de que ela buscava uma punição inconsciente pode ser corroborada se pensarmos neste comportamento via transferência como um acting out, isto é, uma manifestação de caráter impulsivo do material inconsciente na relação transferencial12.

O cuidado do terapeuta para não responder à estas demandas inconscientes da paciente foi extremamente importante para se seguir com o tratamento. Tarefa essa que, cabe dizer, não foi nada fácil para um terapeuta homem iniciante. Em se tratando de um tipo de sedução, o fato do terapeuta permanecer em silêncio diante dos questionamentos de Ana, ou dedevolver a ela a questão, foi algo bastante relevante. Neste momento, ela repetia sua tendência inconsciente de buscar o prazer por meio de uma relação constrangedora, que trazia o sofrimento, mas pelo fato do terapeuta não repetir a atitude traumática de forma abusiva, inseria em sua vida a chance dela pensar sobre o lugar que vinha se colocando. Era a oportunidade de inaugurar um outro tipo de relação com um homem, dessa vez uma relação que a convidava a pensar sobre sua vida, seu posicionamento, seu desejo e seu futuro.

O sonho de Ana se configura como emblemático para a compreensão desse caso justamente porque foi algo que motivou e o que corrobora as análises. Nesses sonhos o observador não tinha rosto, justamente por não ser alguém específico e ao mesmo tempo ter a possibilidade de ser qualquer um. Ter o sonho como exemplo contribuiu para o tratamento pois, como Høglend8 defende, o tratamento deve surgir de dentro da relação de transferência. A partir do relato do sonho e da interpretação feita pelo terapeuta, se tornou mais explícito que era ela quem "criava" o rosto observador, pois estava tentando o tempo todo colocar o terapeuta em situação semelhante a dos outros homens de sua vida: alguém com quem a relação poderia se dar somente a partir de uma perspectiva em que ela seria valorizada e amada se assumisse um posicionamento em que a sexualidade tivesse um aspecto proeminente e humilhante.

Sessões após essa interpretação do terapeuta sobre o sonho, Ana diminuiu muito suas tentativas de sedução e iniciou um relacionamento amoroso, aparentemente muito diferente dos anteriores. Após o início deste relacionamento, Ana ainda frequentou as sessões de terapia por mais dois meses, pois por se tratar de uma Clínica-Escola, o ano letivo se encerrou e o terapeuta não continuou atendendo na instituição. O tratamento no total teve duração de dez meses e o que se pôde acompanhar desse último relacionamento de Ana é o fato dele não ter se caracterizado por conter os mesmos elementos repetitivos de sua vida.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do artigo exposto fica claro a importância de se atentar para as questões ligadas a compulsão à repetição, pois esta se configura como uma das grandes manifestações do inconsciente. Cremos que percebêla e escutá-la contribui muito para o tratamento do paciente, para o desenvolvimento de sua vida. Esse olhar atento para a compulsão à repetição ganha uma importância ainda maior quando analisada dentro da relação transferencial, pois acreditamos que é por meio desta relação que a repetição ganha a possibilidade de ser pensada e interrompida.

Buscando articular teoria e prática, entendemos que foi possível demonstrar como dispor na prática psicanalítica de elementos teóricos que ajudam no desenvolvimento do tratamento e na compreensão do caso. Neste caso, cabe ainda salientar que no primeiro ano de terapia o terapeuta era um estagiário e que o caso que lhe ofereceu um desafio considerável já que a paciente era uma mulher mais velha e sedutora. Mais do que isso, pretendíamos mostrar que toda a questão erótica e traumática que envolvia o caso merecia um manejo adequado por parte do terapeuta, pois se tratava de um ponto nodal na vida da paciente. Supomos que todo o sofrimento relatado poderia não encontrar uma forma de elaboração e cuidado caso ela não percebesse o lugar que tinha sido convidada a ocupar desde sua infância, o que a fazia sofrer, apesar de um certo prazer, pois produzia consequências muito prejudiciais para sua vida.


REFERÊNCIAS

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a Psicólogo clínico, graduado em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2015 e pós-graduado em Clínica Psicanalítica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2017 e mestrando em Avaliação Psicológica e Processos Clínicos.
b Psicóloga clínica, mestre (2008), doutora (2013) e pós-doutora (2014) em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP)

Correspondência
Homero Artur Belloni Silva
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Sandra Aparecida Serra Zanetti
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Telefone: +1 (438) 350-2455
e-mail: sandra.zanetti@gmail.com

Submetido em: 05/06/2018
Aceito em: 28/02/2019

Contribuições: Homero Artur Belloni Silva - Coleta de Dados, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Sandra Aparecida Serra Zanetti - Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Instituição: Universidade Estadual de Londrina

* O conceito de transmissão psíquica será abordado na sequência.

 

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