Rev. bras. psicoter. 2019; 21(3):55-68
Caumo KP, Monteiro DR. Função-Alfa e obesidade. Rev. bras. psicoter. 2019;21(3):55-68
Artigos de Revisao
Função-Alfa e obesidade
Alpha-Function and obesity
Función-Alfa y obesidad
Katiê Paula Caumoa; Diou Rodrigues Monteirob
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)1, cerca de 830 milhões de pessoas no mundo são obesas, superando o número de pessoas que estão em situação de fome. No Brasil, conforme a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO)2 , 23% da população brasileira estava obesa em 2016, entretanto, quando considerada a população que possuiu um índice de massa corporal (IMC) maior que 25, o que caracteriza sobrepeso, esse número chega a 57%, ou seja, mais da metade da população brasileira possuitendência a desenvolver a obesidade.
A obesidade é definida como uma patologia crônica, caracterizada pelo acúmulo progressivo de gordura corporal. A respeito dos fatores psicológicos envolvidos na sua etiologia, alguns estudos sugerem que indivíduos podem comer em excesso devido a um descontrole emocional, ou uma incapacidade de regular e controlar as emoções.Portanto entende-se que a obesidade é um sintoma que constitui um fenômeno estruturado, como uma linguagem. O corpo à luz da psicanálise é muito distinto do corpo concebido pela medicina tradicional. Esse corpo fala, goza, silencia e fica surdo, esperando para ser decifrado3.
Portanto a escuta retoma a noção de cuidado como algo que promove e permite ao sujeito encontrar o caminho para ser mais saudável em meio a uma sobreposição de objetos simbólicos, psíquicos e físicos. Nesse sentido, a teoria do pensamento postulada porWilfredBionpossibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo a partir de escuta para a aquisição da capacidade simbólica4.
A teoria Bioniana considera o desenvolvimento do processo de pensar uma imposição à psique para lidar com a pressão exercida pelos pensamentos. Para tanto, o processo de desenvolvimento de pensamentos e o processo de pensar podem estar associados aos processos psicopatológicos, como é o caso da obesidade. Assim, pressupõe-se que, para o paciente obeso o alimento pode ter cedido lugar à simbolização das vivências de prazer e desprazer, ficando com a função de apaziguar elementos impensáveis e incontroláveis5.
Levando em consideração a importância do problema e para que sirva de interesse científico a fim de ampliar conhecimentos e contribuir com novas possibilidades de intervenção diante do enfrentamento da obesidade, esse estudo tem como objetivo compreender se há relação entre a função-alfa, descrita por Bion e o desenvolvimento da obesidade.
METODOLOGIA
Este estudo é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó, (SC), como requisito para obtenção do título de Pós-Graduação em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica. Trata-se de um estudo qualitativo de revisão narrativa, buscando apontar lacunas no estado da arteque necessitam ser preenchidas, contribuindo para a compreensão do tema estudado. Esse método de pesquisa é constituído por umaanálise ampla da literatura, sendofundamental para a aquisição e atualização do conhecimento sobre determinada temática que se evidencie novas ideias, métodos e subtemas que têm recebidomenor ênfase na literatura6.
Para o desdobramento do estudo, foi utilizado o seguinte protocolo: definição do tema, do problema e objetivos de pesquisa; estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão, estratégias de busca, avaliação dos textos na íntegra e interpretação dos resultados. O protocolo desenvolvido foi validado por um pesquisador mestre na área da psicologia clínica.
Foram elencados os seguintes critérios de inclusão para orientar a buscas pelos artigos: trabalhos publicados sobre obesidade à luz da teoria psicanalítica no formato de artigos científicos; idiomas: português, inglês e espanhol; disponíveis na formatoonline em texto completo. Os critérios de exclusão foram: trabalhos duplicados e estudos que não continham informações suficientes para a análise ou a variável de desfecho não era obesidade relacionada com a temática.
A coleta de dados foi realizada no mês de janeiro de 2017na ScientificElectronic Library Online - SciELO foram utilizados dois descritores: obesidade AND psicanálise. Aplicando os critérios de inclusão, a busca inicial gerou 8 artigos. Após leitura e exclusão dos estudos que não abordavam a temática, totalizou-se apenas 3 artigos: 1 - Você tem fome de quê?; 2 - Obesity: listeningbeyondthefatcells; 3 - O exercício da função materna em mães de filhos obesos na perspectiva da psicanálise.
As produções selecionadas foram publicadas nos anos de 2006, 2012 e 2015. Os estudos foram realizados no Brasil e publicados nas revistas: 1 - Psicologia Ciência e Profissão, 2 e 3 - na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. Quanto às características metodológicas dos estudos, o primeiro e segundo apresentam um estudo reflexivo bibliográfico e o terceiro caracteriza-se por um estudo exploratório descritivo. Os artigos selecionados foram analisados, com o intuito de responder ao objetivo deste estudo.
RESULTADOS
Função-alfa
Quando Bion postula função-alfa, busca o entendimento de função em base do sistema matemático e postula que, a atividade mental é composta de um número de fatores que operam em consonância. Fator é o nome para uma atividade mental que opera em consonância com outras atividades mentais constituindo uma função. Deste modo, não se pode estudar a importante função da personalidade - o pensar, sem conhecer seus fatores e processos7.
A função-alfa opera sobre as impressões sensoriais e emocionais que o indivíduo experimenta, formando elementos-alfa, esses, são utilizáveis ao pensamento consciente, inconsciente e pelo pensamento onírico. Caso a experiência emocional não for transformada em elementos-alfa, o indivíduo não pode sonhar, simbolizar ou aprender com a experiência8.
A natureza da função-alfa, embora se alimentando de material biológico, mostra-se caracteristicamente psicológica. Ela tem a seu posto uma função da personalidade, transformando as sensações em elementos psíquico7. É a função-alfa que fornece os elementos para a construção dos pensamentos, para a representação mental e a abstração, e dessa forma as experiências emocionais podem ser modificadas. Quando a função-alfa é deficiente, as emoções são evacuadas e experimentadas como coisas em si e continuam como elementosbeta, assim as palavras ou ideias são substituídas pela manipulação, produzindo atuações9.
Bion denomina reversão da função-alfa, como uma terceira forma possível de subjetivação, além das duas formações - alfa e beta. A reversão da função-alfa refere-se a situações em que ela já atua no psiquismo, mas, por alguma dor vivida em demasia, ela retrocede e produz elementos-beta diferentes dos originais. Nesses casos ocorre uma regressão rumo a um pensamento concreto, o que, segundo Bion, pode regredir ao ponto de chegar ao nível da linguagem das sensações psíquicas corporais, como ocorre nos distúrbios psicossomáticos4.
Caso a função-alfa falhe completamente, não haverá objeto de consciência. No caso de pacientes esquizofrênicos gravemente perturbados, Bion entendeu que a abundância de pensamentos dissociados representava uma função-alfa defeituosa, e isto impedia o paciente de usar sua consciência, a qual também não podia ser usada pelo analista quando ela era projetada nele7.
Neste sentido, o papel materno possui consequências determinantes para a saúde mental do filho. Bion desenvolve o conceito de capacidade materna de rêveriea qual permite à mãe acolher as identificações projetivas do bebê, desde o início da vida, atuando como um continente adequado para suas vivências psíquicas9. Rêverie diz respeito a existência concreta de um objeto onde o bebê projeta as partes clivadas da personalidade para que sejam manipuladas, possibilitando assim, o desenvolvimento5.
Diante das projeções da criança, a mãe é capaz de desintoxicá-las e devolvê-las modificadas, tornandoas toleráveis para a mente do bebê. Para Bion, esta capacidade materna é um fator da função-alfa da mãe. Gradativamente esta função será empregada pelo próprio indivíduo, à medida que sua capacidade para pensar suas experiências se desenvolve8.
Em situações nas quais, as falhas do rêverie materno não só privam a criança de alívio e da gratificação, como ainda fazem com que a mãe devolva para o filho a angústia que este projetara, agora acrescida das angústias dela própria, cria um perigoso círculo vicioso e maligno. Uma boa capacidade de rêverie da mãe exige a função-alfa, ou seja, a mãe vai ajudar a criança a transformar os elementos-beta em elementos-alfa, que se constituem como matéria-prima para uma crescente evolução da capacidade para pensar9.
O impedimento da capacidade de pensar pode vir por meio do uso excessivo de identificações projetivas. A partir daí, ainda a criança nega as importantes perdas (seio, leite, pênis) promovidas pelos seus ataques "desvitalizadores", ao mesmo tempo em que pode passar o resto da vida em uma desesperada busca por esses objetos perdidos, sendo que esse estado mental oriundo de uma incapacidade para pensar as experiências emocionais vai se manifestar por um aumento, cada vez maior, de uma voracidade insaciável e mal direcionada, que pode assumir até a forma de perversões10 .
De acordo com Wisdom7, quando existe fome e frustração, por exemplo, o seio que está de fato ausente passa a ser sentido como um seio mau, isso gera elementos persecutórios que são descartados através do mecanismo de identificação projetiva. De algum modo, surge o senso de uma não-coisa, que vem a ser um pensamento rudimentar, abrindo o espaço para o nascimento de um pensamento por isso, a função-alfa antecede à fantasia. Em síntese, uma mãe adequadamente boa consegue interpretar ao seu bebê, ela escuta, compreende, significa e nomeia a comunicação primitiva do seu filho, e só conseguirá interpretar seu filho se ela for capaz de ser continente, executando rêverie via função-alfa.
O psicanalista deve ter essa função desenvolvida a fim de ser continente do contido/paciente. A interpretação nomeadora, tal como o termo designa, alude à importantíssima função de que o psicanalista, mercê do exercício de sua função-alfa, acolha as cargas projetivas do seu paciente, pense nelas, descodifique, transforme, signifique e finalmente dê-lhes um nome. Conquanto este aspecto da interpretação seja essencial em qualquer análise, não resta dúvida que ela é prioritária e vital para pacientes que sejam altamente regressivos, e cuja angústia manifesta-se pela forma que Bion descreve como terror sem nome, justamente pelo fato, de que os primeiros registros de aniquilamento foram impressos no ego como representação-coisa e não atingiram o nível de representação-palavra, conforme a terminologia de Freud10.
Elementos-beta
Elemento-beta é um conceito usado por Bion que engloba uma série de fenômenos referentes a diferentes estados de desenvolvimento mental11. Estes fenômenos não se prestam para serem pensados, mas tão somente, para serem evacuados, sendo assim, denominados como terríveis sensações as quais são atuadas ou somatizadas4.
Essas sensações intoleráveis, elementos-beta, resultam de um grande período na ausência ou privação do seio materno que, despertam no bebê sensações desagradáveis, devido ao acréscimo de ódio que, precisa ser evacuado para o exterior em uma busca de um continente adequadopara a continência. Desse modo, o bebê é tomado de pressões produzidas por experiências brutas que inicialmente não se distinguem de vivências corporais, transparecendo sob a forma de agitação corporal, choro, vômito etc8.
Os elementos-beta seguem através do funcionamento motor, o que se revela bastante complexo, chegando a ser impreciso, uma vez que pode se referir a uma variedade de ações extremamente diferentes, como uma mera expulsão de elementos-beta se reportar a um sorriso psicótico, que na verdade é um morder4.
Quando houver falhas na função-alfa, forma-se uma barreira de elementos-beta - a tela-beta. Neste caso, onde deveria se constituir a barreira de contato, o que se observa é a sua destruição, devido à inversão da função-alfa. Os elementos que constituem a barreira de contato se dispersam e se convertem em elementosbeta, acrescidos de vestígios de ego e de superego - os objetos bizarros que precisam ser evacuados ou projetados10 .
Green12, menciona que tanto Bion como Freud suspeitaram haver na mente, algo primitivo, não explicado pelos primeiros estágios de relação objetal do desenvolvimento do bebê. Segundo Green, Bion considerou os elementos-beta, como o que há de mais primitivo na mente, elementos que não sofreram transformação no nível psíquico. Neste sentido, os elementos-beta, apresentam-se como uma natureza híbrida, ou seja, são pensamentos-coisa. Eles pertencem ao domínio mental, embora apresentando muitas características semelhantes às das coisas, porque não podem ser nomeadas devido a sua gênese.
A qualidade concreta dos elementos-beta não permite transformações. Assim, como posteriormente a função-alfa se desenvolveu para elaborar e articular os maleáveis elementos-alfa, da mesma forma é necessário um mecanismo que permitisse lidar com elementos-beta e sua essência. A solução encontrada foi a utilização da identificação projetiva, a fim de lidar com os elementos não transformados que estavam a povoar a mente5.
Ainda conforme Silva5, os elementos-beta não são propensos a serem usados como pensamentos oníricos, mas são apropriados para serem usados na identificação projetiva e influenciam na produção de atuação. A manipulação do ambiente por identificação projetiva parece confirmar a articulação delirante que assim adquire extraordinário poder e independênciapor meio do uso de elementos-beta.
Em contraste com os elementos-beta, temos os elementos-alfa, que são adequados para o armazenamento e satisfazem os requisitos do pensamento onírico. Se os elementos-beta forem transformados em elementosalfa, assim, começará a construção de um "aparelho para pensar os pensamentos", como Bion denomina10 .
Para que se dê a transformação de elementos-beta em elementos-alfa, é indispensável que a criança encontre uma mãe eficaz na "função-alfa", que, além de dar um sentido, significado e nome para as suas experiências emocionais, também lhe proporcione a formação de uma barreira de contato, composta por esses elementos-alfa, que sirva como uma barreira delimitadora e permeável entre o consciente, inconsciente e o sistema pré-consciente12.
A barreira de contato deve ser distinguida da tela-beta, que diz respeito ao aglomeramento de elementosbeta, e que não possui capacidade de discriminação, de modo que a separação consciente-inconsciente não pode se processar por si. A tela-beta leva uma presença concreta e maciça, manifestando a intensificação da identificação projetiva, cujo efeito é vivido como angústia uma vez que não encontra limites, e, portanto, não consegue um continente para depositar as vivências insuportáveis para que possam ser trabalhadas e desenvolvidas5.
Sendo assim, a experiência emocional está vinculada a certos padrões estruturantes e inconscientes que vão sendo constituídos pelas experiências, integrando o núcleo básico das fantasias, que trabalham para organizar a experiência emocional, ou seja, a associação de um significado inconsciente é fundamental no que tange a essa constituição pela experiência12.
Elementos-alfa
Elemento-alfa, não é algo concreto ou definido, não existe nenhuma realização que lhe corresponda, por isso é impossível citar exemplos dele. Talvez, o que mais se aproxime de exemplificá-lo seria considerá-lo como uma matéria prima, infinitamente maleável. A experiência sensória ou emocional depurada de seus elementos concretos que compreendem imagens visuais, modelos auditivos, olfativos e são adequados ao pensamento onírico, ao pensar inconsciente, sonhos e memória5.
No caso de a mãe da criança possuir uma boa condição de rêverie, com uma adequada função-alfa, a qual consiste em acolher aqueles "elementos-beta", decodificar, dar um sentido, significado e nome a eles, então, o que Bion chamou de protopensamentos podem transformar-se em elementos-alfa, podendo evoluir em complexidade crescente, até atingir o nível de uma alta abstração9.
Enquanto os elementos-alfa foram digeridos pela função-alfa, ficando disponíveis para o pensamento, os elementos-beta também são armazenados, mas não são lembranças e sim fatos não digeridos, ficando indisponíveis para o pensamento12. Tudo que foi digerido e tornado apto a ser utilizado pelo psiquismo recebe o nome de elemento-alfa. E o resíduo, isto é, tudo o que a mente não pode trabalhar, fica denominado de elementos-beta13.
Os elementos-alfa são adequados para o armazenamento já que satisfazem os requisitos para serem pensamentos oníricos12. Eles são os responsáveis pelo pensamento onírico e pelas capacidades de despertar ou dormir, assim como pela diferença entre consciente e inconsciente e a memória, graças à formação da barreira de contato na construção do espaço mental. Esta se destina à separação do consciente e do inconsciente, não os filtra, mas, ao contrário, os reprime14.
Para batizar a articulação de elementos-alfa, Bion utiliza-se do termo barreira de contato, já mencionada por Freud, porém com referência à neurofisiologia. Os elementos-alfa rearticulam-se sem cessar, e assim o processo revela-se contínuo e variável, com uma seletividade de que resulta a separação entre consciente e inconsciente, bem como a própria distinção entre eles que não cessam de se construir6. Clinicamente, a barreira de contato manifesta-se como algo que se parece aos sonhos sendo responsável pela distinção entre consciente e inconsciente e também pela origem destas duas áreas11.
Nas personalidades psicóticas, não há formaçãoda barreira de contato, como acontece nas personalidades neuróticas, nas quais os elementos-alfa compõem uma barreira que funciona como delimitadora entre o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. Pelo contrário, nos psicóticos, essa barreira é substituída pela "tela-beta", a qual não consegue delimitar as instâncias psíquicas, nem os pensamentos, fantasias e afetos que transitam entre ela e, por essa razão, forma-se uma confusão entre o real e o imaginário9.
Assim como há um aparelho para pensar os pensamentos também há um aparelho para sonhar os sonhos. Ele opera em um segundo nível, para dar sentido às experiências. A simbolização e o trabalho do sonho permitem articulações a memória, é devido ao sonho, que se torna possível criar as representações de objetos e conceitos traduzidos em uma forma simplificada, mas sem perder o significado essencial do que se está representando nas experiências emocionais14.
Se o sujeito não pode transformar sua experiência emocional em elementos-alfa, não pode sonhar. Os elementos-alfa são idênticos às imagens visuais com que estamos familiarizados nos sonhos. Freud menciona que uma das funções do sonho é preservar o sono, então se o sujeito não puder sonhar, não pode dormir, e neste caso a função-alfa fracassou11.
Convém considerar que os elementos-alfa e os elementos-beta podem ser considerados incógnitas, dada a dificuldade em encontrar realizações correspondentes que possam satisfazê-las, uma vez que se referem a um tempo-nível muito difícil de atingir. Neste sentido falar em elementos-alfa e beta é falar do que pode ser contido ou deve ser expelido, no que se tornou mental ou não. Observa-se a complexidade da relação desses elementos entre si e a relação continente/contido8.
É da vivência entre a mãe e seu bebê, e de uma junção de vínculos de amor, ódio e desejo que surge um campo propício para o desenvolvimento de um aparato denominado de continente-contido (♀♂). E sse aparato é capaz de transformar as impressões sensoriais e as experiências emocionais em símbolos, que podem ser utilizados para sonhar. É através deste processo de sonhar que se passa para níveis cada vez mais abstratos de ideias que transformam a linguagem dos sonhos em outras formas simbólicas14.
O continente e o contido mostram-se, pela emoção, quando desligados de emoção, perdem a vitalidade, ou seja, aproximam-se dos objetos inanimados. Neste sentido pode-se dizer que a criança introjeta essa atividade de maneira a instalar, dentro de si, a função-alfa como parte do aparelho continente-contido15.
A comunicação ente a mãe e o bebê através do vínculo de amor, pode transmitir a capacidade para o pensamento por meio de um paralelo entre o leite e o amor, por exemplo. E assim se estabelece um sistema alimentar mental, de que fazem parte o seio psicossomático, ou seja, o conduto alimentar psicossomático infantil. Este se encarrega de aspecto psicológico envolvido no processo digestivo do alimento orgânico5.
A interação com um bebê acontece em níveis tão primitivos que requer uma condição especial do órgão digestivo mental, pois, assim como perturbações emocionais da mãe podem fazer o leite falhar, também perturbações emocionais no lactante podem lhe trazer um transtorno digestivo. Caso a necessidade não pode ser satisfeita pelos recursos internos da criança, deve então ser assumido um órgão externo. Este órgão se localiza na capacidade materna para a fantasia, denominada como rêverie16.
Falhas na constituição de um continente somatoforme, levam à sensação de falta de fronteiras no corpo, ameaças de despersonalização, angústias impensáveis, ameaças de desintegração e despedaçamento. Pode decorrer a partir disso, o desenvolvimento de organizações psíquicas que apresentam sistemas de defesas mantidos, para as constantes ameaças de desintegração e despedaçamento do self14.
Função-alfa e obesidade
Assim que nasce o bebê, uma das primeiras necessidades a ser suprida é fome, o peito materno então, se torna de imediato o objeto parcial que o sacia17. Nesta perspectiva a ligação da figura provedora (mãe/seio materno) com o bebê configurará as futuras identificações e possibilitará a alimentação, além daautoconservação que pode ser vivenciada como uma situação de prazer e também de estabelecimento de novos vínculos18.
Conforme o estudo de Varela19 "Você Tem Fome de Quê?" os autores mencionam que corpo do sujeito é um corpo pulsional, um corpo que deseja incessantemente. A pulsão se inscreve do aparelho psíquico no primeiro momento de vida do indivíduo, no contato inicial entre a mãe e o bebê. Os representantes da pulsão são o conteúdo do recalque e são constituídos por um imaginário visual e por todas as inscrições psíquicas implicadas nesses processos, que são fortemente marcadas pela subjetividade do outro da maternagem. A organização estrutural dessa fase resulta na primeira clivagem do aparelho psíquico, dando origem ao impensável e ao somático traduzido em excitações.
Nesse sentido, e o corpo pulsional implica em afirmar que não se come apenas para se nutrir, as necessidades fisiológicas estão submetidas ao desejo e à significação inconsciente que o ato de comer tem para o indivíduo 20. Os estados emocionais primitivos são experiências dos bebê pela via do concreto e por isso não podem ser pensados até que a mãe os transforme em experiências abstratas. A capacidade da mãe de olhar e ver seu bebê, de falar e conversar com ele, sentir prazer em falar de seu corpo e de suas sensações, podem se referir a essas transformações dos estados concretos sentidos pelo bebê em estados que poderão ser pensados. Isso quer dizer que, a mãe ajuda o bebê a sair de sua concretude da experiência para simbolizar e significar suas atitudes11 .
Partindo dessa perspectiva, o estudo de Henriques, et, al 21 "O exercício da função materna em mães de filhos obesosna perspectiva da psicanálise", aponta que as experiências primárias da relação mãe-bebê de um público de nove mães residentes do Nordeste do Brasil, revelaram dificuldades e impasses no exercício da função materna (fator da função-alfa da mãe), representadas pela carência dos investimentos libidinais e afetivos, conscientes e inconscientes, desde os primeiros contatos com os filhos, especialmente ao longo do processo alimentar.
Para Bion22, a indisponibilidade da mãe em investir em seu bebê pode promover falhas na função-alfa, e no caso da obesidade esse não investimento pode ter se ancorado no registro das necessidades corporais em detrimento às necessidades psíquicas. Portanto, ingestão exagerada de alimentos relaciona-se com o defcit da função-alfa e, por meio de identificação projetiva patológica a fim de livrar o indivíduo do objeto, o elo de ligação entre a mãe e o bebê é atacado e, consequentemente, criam-se obstáculos ao desenvolvimento do pensamento
A criança desenvolve o processo de pensar e simbolizar usando a função-alfa, neste sentido ela criará o aparelho para pensar pensamento somente no momento em que é capaz de reconhecer a ausência do objeto e tolerar uma frustração provocada por uma realização negativa. No caso do indivíduo obeso, ele não suporta a angústia, sentindo necessidade de encher o estômago, preencher o vazio, como se não suportasse a ausência do objeto23.
Conforme mencionado por Vilhena, Novaes e Rosa24, na publicação, "Obesity: ListeningBeyondthe Fat Cells", esse processo se torna transversal na vida desses sujeitos, podendo ser observado no processo de análise, onde esses pacientes exclusivamente falaram sobre seus corpos, manifestando uma incapacidade observável de reter experiências satisfatórias além de precisam garantir constantemente que não serão abandonados e que não perderão o amor, o cuidado e a atenção do analista. Essa necessidade representa a incapacidade de simbolizar o afeto, ou seja, a incapacidade do paciente de construir uma representação abstrata sobre a presença do outro.
Assim, para o paciente obeso o alimento pode ter cedido lugar à simbolização das vivências de prazer e desprazer. O alimento ficou com a função de apaziguar elementos impensáveis e incontroláveis, dessa forma, substitui elementos impensáveis e permanece tranquilizando suas angústias, ansiedades, medos, e outros sentimentos difíceis de serem vivenciados22. Destarte,o obeso utiliza a comida de forma concreta, quando ingerida, acaba negando o aniquilamento do objeto, restando apenas à percepção sensorial e afetiva do que se incorporou. Essa etapa traz um conteúdo destrutivo para o objeto e dessa forma, inicia um ciclo angustiante, expressado por meio de um sentimento insaciável de comer compulsivamente18.
O obeso expressa no corpo o que não consegue expressar na linguagem, nos seus sonhos ou nas suas fantasias, é uma forma de expressar seu desejo sem reconhecê-lo como seu. Neste sentido, o obeso sofre por uma falha no processo de simbolização. Essa falha impede uma mudança simbólica, que possibilita o recurso da fantasia19. Em síntese, os pacientes obesos sofrem de uma carência de aprendizagem o que se mostra crucial na percepção e conceituação da fome 21.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fundamental evidenciar que as pesquisas à luz da teoria psicanalítica sobre essa temática ainda são incipientes, ou seja, o momento de produções e interrogações frente às lacunas lançadas pelo paciente obeso precisa ampliar-se, já que, essa demanda de atendimento psicológico cresce consubstancialmente.
Destaca-se que o sujeito obeso experiencia o alimento na ordem do concreto. Neste sentido, utiliza a comida para obter certo alívio em vez de usar as palavras para dizer ou usar suas angústias e medos para sonhar. O alimento cedeu lugar à simbolização de suas vivências, ficando com a função de minimizar elementos impensáveis e incontroláveis. Assim, o alimento continua com a função de substituir o pensamento e permanece tranquilizando suas angústias, ansiedades e medos.
Em síntese a relação entre a função-alfa, postulado por Bion e o desenvolvimento da obesidade possuem uma dinâmica estreita, já que um déficit de função-alfa, não permite a transformação dos elementos-beta, em elementos-alfa, conferindo à experiência emocional concreta ao sujeito. Dessa forma, se mãe falhar em sua capacidade de rêverie, não será possível transformar os elementos impensáveis em pensáveis, o insuportável em suportável.
Concluiu-se que a atenção que o sujeito dará ao seu próprio corpo está vinculada ao investimento de sua mãe, sendo fundamental não apenas para a satisfação das necessidades orgânicas, as quais servem ao propósito das pulsões de autoconservação, como também as pulsões sexuais, possibilitando a constituição de um sujeito desejante. Neste sentido, supondo que a mãe foi indisponível quanto ao investimento de seu filho, esta não permitirá a constituição da organização autoerótica no bebê, assim a percepção do corpo fica ancorada no registro da necessidade, isto é, num tempo anterior ao autoerotismo restringido a experiência do corpo ao registro da necessidade.
Sob essa ótica, o problema da obesidade sob um olhar metapsicológicoganha particular pertinência por trazer ao entendimento conceitos aplicáveis tanto à clínica particular, como à clínica ampliada, presente no âmbito da saúde pública.
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a Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó, Pós-Graduação em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica - Chapecó - Santa Catarina - Brasil
b Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó, Pós-Graduação em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica - Chapecó - Santa Catarina - Brasil
Correspondência
Katiê Paula Caumo
e-mail: katie@unochapeco.edu.br / e-mail alternativo: katie@unochapeco.edu.br
Diou Rodrigues Monteiro
e-mail: dioumonteiro@yahoo.com.br
Submetido em: 07/12/2018
Aceito em: 06/10/2019
Contribuições: Katiê Paula Caumo - Coleta de Dados, Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação,
Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição;
Diou Rodrigues Monteiro - Contribuição do autor: Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Validação.
Instituição: Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó
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