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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2018; 20(2):129-142



Relato de Caso

Sonho como quebra-cabeça pictográfico

Dream like a pictographic puzzle

Rita Francis Gonzalez y Rodrigues Branco

Resumo

Trata-se de criança, que frente à violência doméstica, desenvolve sintomas físicos. Durante a consulta, o menino relata um sonho analisado pela autora com base no texto A Interpretaçao dos Sonhos.

Descritores: Psicanálise; Sexualidade; Sonhos.

Abstract

The paper is about a little boy with heart symptom after family violence. He reported his dream and the author interprets it based in Freud's book The Interpretation of Dreams

Keywords: Psychoanalysis; Sexuality; Dreams.

 

 

INTRODUÇAO

Em seu livro A Interpretaçao dos Sonhos1 Freud faz um longo percurso a partir das diversas visoes históricas, filosóficas e literárias a respeito do ato de sonhar e do seu possível significado. O autor parte deste ponto inicial nao só para descrever as diversas posiçoes sobre a interpretaçao dos sonhos ao longo da história da humanidade, mas sobretudo, para negar a superficialidade destas interpretaçoes diversas e, começar a tecitura de sua teoría psicanalítica.

Segundo Cromberg2 é em um "esplêndido isolamento" que Freud desenvolve sua escritura alicerçada em sua auto-análise e publica seu trabalho abrindo as portas para a compreensao do ato de sonhar como possibilidade de realizaçao de desejos inconscientes, apresentando o ser humano como o ser desejante que de fato o é.

Como em um palco que aos poucos vai se iluminando para, posteriormente, acolher os atores no desenvolvimento da cena teatral, a teoría psicanalítica vai sendo construida passo a passo por Freud ao se debruçar sobre a funçao mental humana do sonhar. De início, abre-se a cortina do entendimento da vida mental quando Freud reconhece a relaçao entre o mundo real (vigilia) e o mundo dos sonhos. Assim que, em suas palavras:


Podemos mesmo dizer que o que quer que os sonhos ofereçam, seu material é retirado da realidade e da vida intelectual que gira em torno desta realidade. (...) Quaisquer que sejam os estranhos resultados que obtenham, eles nunca podem de fato libertar-se do mundo real (...). (Freud, 2001 p. 30)


A atividade do pensar no estado de vigília, de acordo com Freud, ocorre através da construçao de conceitos, enquanto que, os sonhos pensam essencialmente por meio de imagens organizando representaçoes involuntárias1. Torna-se importante saber que no inconsciente, e este constructo é gestado ao longo de toda a referida obra, "nao existe signo de realidade, de modo que é impossível distinguir a verdade frente a uma ficçao afetivamente carregada". (Cromberg, 1997 p. 14)

A gestaçao e o nascimento da instância mental inconsciente é fundante no desenvolvimento da interpretaçao do fenômeno psíquico chamado sonho, que nada mais é do que uma grande obra do homem para realizar seus desejos e poder viver suas vicissitudes. O sonho torna-se, entao, um "paradigma da situaçao analítica"2 permitindo o trânsito entre a teoria e a prática clínica. Ainda que, como muito bem discute Radmila Zygouris3, os pacientes nos dias atuais sejam diferentes e tragam demandas diversas das que presenciou Freud, levando desta forma, à necessidade de uma mudança no fazer psicanalítico contemporâneo; ainda assim, todos sao seres desejantes e dotados de uma instância mental inconsciente de forma que interpretar os sonhos destas pessoas se faz possível, atual e esclarecedor na prática psicanalítica.

Retomando a relaçao proposta por Freud entre o material sonhado e a realidade vivida do sonhador surgem pistas importantes para uma analogia e compreensao do conteúdo inconsciente, embora seja preciso procurar diligentemente a ligaçao que, em inúmeros casos, possa permanecer oculta por um longo tempo1.


Uma das fontes de onde os sonhos retiram material para reproduçao - material que, em parte, nao é nem recordado nem utilizado nas atividades do pensamento de vigília - é a experiência da infância. (...) A posiçao é ainda mais notável quando observamos como os sonhos por vezes trazem à luz, por assim dizer, das mais profundas pilhas de destroços sob as quais as primeiras experiências da meninice sao soterradas em épocas posteriores, imagens de localidades, coisas ou pessoas específicas, inteiramente intactas e com todo o seu viço original. (Freud, 2001 p. 35)


Em 1897, Freud em meio à sua auto-análise, faz uma primeira aproximaçao da sua posterior teoria do Complexo de Édipo escrevendo em uma carta a seu amigo Fliess a seguinte constataçao: "Verifiquei, também no meu caso, a paixao pela mae e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância" (FREUD apud SOUZA, 2006 pg. 137). Os primeiros passos do autor em relaçao ao conhecimento da sexualidade infantil surgem em sua obra A Interpretaçao dos Sonhos mesclados nos exemplos de sonhos por ele relatados.


É interessante que Freud inicia a carta à Fliess relatando seu sonho com a empregada desaparecida. Esse relato remete-nos à Interpretaçao dos Sonhos, na passagem sobre "Representaçao por Símbolos nos Sonhos - Outros Sonhos Típicos" (Seçao E do Capítulo VI), onde aparece uma extensa nota de rodapé, com vários acréscimos em 1911, 1914 e 1925, a qual contém um comentário sobre a questao dos sonhos edípicos disfarçados. Nao seria o sonho com a babá um modelo de deslocamento, para disfarçar o desejo pela mae? (...) A discussao sobre o Édipo reaparece na Interpretaçao dos Sonhos na seçao intitulada "Sonhos sobre a Morte de Pessoas Queridas" (Seçao D do Capítulo V), em que podemos acompanhar uma linha de equiparaçao entre sonhos, desejos inconscientes, desejos infantis e o Édipo. (Moreira, 2004 p. 220)


Como um andarilho que abre caminho com uma enxada em meio a uma floresta, Freud vai, ao longo de seu livro, desvendando o material erótico entremeado às imagens oníricas. Assim é que, ao relatar o sonho de Irma ou os exemplos de sonhos que trabalham conteúdos da infância, o autor chega às questoes sexuais que estao postas claramente nos relatos apresentados. Vai, desta forma, ficando evidente ao leitor que os sonhos sao realizaçoes de desejos inconscientes da ordem da sexualidade e, que por serem submetidos à censura mental do próprio sonhador organizam-se como metáforas imagéticas no sentido de camuflar seu verdadeiro sentido6.

Freud nao se estabeleceu como um psicanalista infantil mas, foi um grande observador da vida das crianças descrevendo fenômenos mentais referentes ao desenvolvimento sexual humano. Em sua referida obra a respeito do ato de sonhar e seus meandros da vida mental Freud faz comentários sobre os sonhos de crianças como algo claro, simples e direto, nao se debruçando muito sobre o trabalho dos sonhos e seus vários mecanismos de tecitura da cena tendo como exemplos os sonhos infantis1.

Escutar o relato de crianças sobre seus sonhos, especialmente sobre seus pesadelos, pode fornecer indícios que esclareçam questoes importantes da vida mental do pequeno analisando, pois que no sonho infantil existem manifestaçoes significativas de conteúdos de ansiedade, agressao e repetiçao de eventos traumáticos7.


Anna Freud sustenta que a interpretaçao dos sonhos em crianças mantém-se intacta, comparada à dos adultos. Considera que a transparência ou nao do sonho estará de acordo com a resistência. Os sonhos das crianças podem ser interpretados com maior facilidade, devido ao fato de suas resistências serem menores, mas isto nao significa que sempre sejam simples. (Gómez-Roch, 2001 p. 164)


O atendimento psicanalítico de crianças foi, ao longo do tempo, se apropriando de teorias importantes que enfatizam os jogos e o brincar como possibilidades terapêuticas8. Nem sempre o sonho é colocado na cena como uma possibilidade de, par-a-par com o brincar, trazer à tona os desejos infantis7.

O objetivo deste texto é, a partir da teoria fundante dos sonhos em Freud, relatar o caso de um menino de 04 anos que conta um sonho ao seu cardiologista, permitindo o esclarecimento dos sintomas físicos relacionados ao seu viver edípico. Embora o relato tenha ocorrido em consulta médica, é importante destacar que o cardiopediatra que atendeu esta criança tem uma formaçao winnicottiana e estava, naquela época, estudando o texto Interpretaçao dos Sonhos1 de Sigmund Freud.

Embora a situaçao aqui relatada nao tenha ocorrido em uma sessao de análise em seu stricto sensu, lembro que os relatos que Freud fez sobre seus próprios sonhos infantis, sobre os sonhos de seus filhos e de crianças de famílias amigas foram importantes em sua obra9, nao desmerecendo sua interpretaçao, embora tenham ocorrido fora de um enquadre analítico tradicional.

Com este exemplo aqui descrito, desejo fornecer algum subsídio aos psicoterapeutas que, atualmente, vêem atendendo crianças com diversos sintomas somáticos e que tragam ao trabalho analítico o relato de seus sonhos.


RELATO DO ATENDIMENTO DA CRIANÇA

Um cardiopediatra recebeu em seu consultório um garoto de 04 anos acompanhado de sua jovem mae. Uma bonita família, com aspecto de pessoas de alta classe social, muito bem cuidados, mas cuja mae, segundo informaçao do médico, parecia um tanto estranha como se estivesse mascarando uma grande tristeza. A criança fora encaminhada ao cardiologista por um pediatra de sua cidade devido a uma queixa cardiovascular: há uma semana vinha sentindo o coraçao bater rapidamente sem relaçao com esforço.

Durante a consulta, o olhar da mae intrigava o médico, levando-o a investigar se havia algum dado que resultasse no sofrimento mental do jovem paciente. Relato aqui uma vinheta deste atendimento de forma a permitir ao leitor vivenciar o fato em si:

Olhando fixamente para a mae do garoto, o médico perguntou:

- Aconteceu alguma coisa há uma semana atrás? Morreu alguém querido como um avô ou algo assim?

A mae começou a chorar e disse:

- Meu marido sempre foi um bom homem, atencioso, mas há uma semana atrás me agrediu fisicamente. Foi a primeira vez! Me bateu...eu corri para a casa de meus pais com as crianças e dei parte à polícia... tive que fazer exame de corpo delito...

O cardiologista entao perguntou:

- Seu filho presenciou a cena?

- Sim...ele estava presente e viu tudo. Ficou assustado...saímos de casa e nao voltamos mais...estou com meus pais e vou me separar.

Neste momento fez-se um pequeno silêncio. O menino olhou o médico nos olhos e disse:

- Tio, ontem eu tive um sonho...

- Entao me conte!

- Eu sonhei que estava andando em uma floresta... (fez uma pausa, ficou em silêncio)
O cardiologista disse:

- Na floresta? ... e aí?!
Ele lhe respondeu dando certa ênfase em sua fala:

- Encontrei um leao!

- Um leao? ... e, aí?

- E aí, eu MATEI o leao! (Escrevi a palavra matei em caixa alta para mostrar a ênfase que, segundo o relato do médico, a criança deu nesta construçao semântica).


SOBRE O SONHO

Apesar de Freud dizer que os sonhos de criança sao desinteressantes em comparaçao com os sonhos dos adultos e, que nao levantam problemas para serem solucionados, o sonho do garoto de 04 anos que viveu violência familiar me parece interessante e factível de uma reflexao mais detalhada para se compreender sua complexidade.

Antes de pensar na possível leitura deste simples sonho infantil, é importante perceber que esta criança, que nao tinha realmente nenhuma doença do coraçao, apresentava uma arritmia cardíaca a partir de uma experiência traumatizante vivida poucos dias antes de sonhar o sonho relatado. Freud em sua obra A Interpretaçao dos Sonhos diz que:


A frequência dos sonhos de angústia nas doenças do coraçao é geralmente reconhecida. (...) Assim os sonhos dos que sofrem de doenças cardíacas costumam ser curtos e têm um fim assustador que implica em uma morte horrível. (Freud, 2001 p. 53)


Neste caso, a criança nao tinha nenhuma cardiopatia real e a morte sonhada foi do leao enquanto elemento de simbolizaçao e nao do próprio sonhador. Chama também a atençao que o garoto parecia mais feliz frente ao seu ato heróico de matar o leao do que propriamente angustiado com a possibilidade de estar na floresta, ou mesmo, de se ver frente a frente com um animal selvagem assustador.

Michael Balint10 coloca o paciente infantil como "sinal de apresentaçao" do adoecimento da família ao dizer que cerca de um terço dos casos nos quais as crianças sao trazidas ao consultório por seus pais, sao estes que necessitam de tratamento; em outro terço tanto os pais quanto as crianças precisam de tratamento e, em apenas um terço, somente a criança precisa ser tratada. Esta afirmaçao é concernente com o caso apresentado e faz pensar que a afirmaçao de Freud em relaçao às doenças cardiovasculares pode ser uma via de mao dupla no sentido de que os sonhos possam ser a realizaçao de um desejo que, por ser fortemente censurado na vida mental, possa causar sintomas direcionados ao órgao que historicamente está relacionado ao amor e às paixoes11.

Durante a consulta médica a criança permanecia em silêncio, mas no momento em que a mae relatou a agressao sofrida, o garoto lembrou-se do sonho da noite anterior. Este fato aponta provavelmente para a instalaçao de uma associaçao livre de idéias por parte dele e, a partir daquele momento, a escuta do profissional foi feita, provavelmente, através de uma atençao flutuante, tendo deixado de lado o pensamento médico em busca do diagnóstico. Desta forma, o profissional se viu diante de "uma espécie de cinema particular que a fala da criança, na sua capacidade metafórica, foi lhe propiciando ao longo de seu relato". (CROMBERG, 1997 p. 23)

De acordo com Freud1 algumas questoes sao postas para se iniciar a interpretaçao dos sonhos: (a) os sonhos têm a seu dispor material oriundo da infância; (b) na maioria dos sonhos se encontram elementos derivados dos últimos dias antes de sua ocorrência; (c) as emoçoes profundas da vida de vigília nao sao as que costumam se apresentar de imediato à consciência onírica e, (d) os sonhos nao reproduzem as experiências mas sim, produzem "fragmentos de reproduçoes".

Assim sendo, o menino havia vivenciado uma cena familiar de muita violência sendo o próprio pai o violentador e sua mae, a vítima. Estando com 04 anos é possível pensar que o garoto estava vivendo seu Complexo de Édipo e, portanto, sentia-se apaixonado por sua mae, rivalizando-se com seu pai.


Para a teoria psicanalítica, o momento crucial da constituiçao do sujeito situa-se no campo da cena edípica. Dessa forma, o Édipo nao é somente o "complexo nuclear" das neuroses, mas também o ponto decisivo da sexualidade humana, ou melhor, do processo de produçao da sexuaçao. Será a partir do Édipo que o sujeito irá estruturar e organizar o seu vir-a-ser, sobretudo em torno da diferenciaçao entre os sexos e de seu posicionamento frente à angústia de castraçao. (Moreira, 2004 p. 219)


Pode-se conjecturar que este garotinho estava certamente vivenciando um conflito interno devido às turbulências afetivas próprias da fase edipiana. A paixao pela mae que consome o pequeno corpo erógeno da criança e o paradoxo do desejo e da rivalidade do menino para com seu pai traz, segundo Nasio12, desejos incestuosos, fantasias de prazer, angústia de castraçao e temor. Temor porque pressente um perigo:

O perigo de ver seu corpo desgovernar-se sob o ardor de seus impulsos, o perigo de ver sua cabeça explodir em virtude de nao conseguir controlar mentalmente seu desejo; e finalmente, o perigo de ser punido pela Lei do interdito do incesto, por ter tomado os pais como parceiros sexuais. (NASIO, 2007 pg. 10)

É possível entao inferir que este garoto, em vigência do Complexo de Édipo, certamente sentiu ódio do pai (desejado e, agora tomado como um grande rival) ao vê-lo agredindo sua amada mae. Sem poder reagir, percebendo-se pequeno e indefeso, sem condiçoes físicas e mentais para proteger a mulher de seus mais íntimos desejos incestuosos e, tendo claramente a dimensao da força e da agressao partida de seu pai, só lhe restou o medo, o grande medo e a angústia clara da possível castraçao caso permanecesse desejante de sua mae.

O medo e a angústia sentida por esta criança de apenas 04 anos nao poderia ser compreendida no momento da vivência real do mundo de vigília. Nao havia interlocutor que pudesse, naquele momento, em uma relaçao transferencial, escutar-lhe a fala inconsciente a respeito dos afetos que lhe tumultuavam e lhe aniquilavam. Assim, provavelmente, quando ele pôde sonhar, alucinar uma cena agora permitida, pôde realizar seu mais recôndito desejo parricida.

Freud1 esclarece que os sonhos alucinam, isto é, substituem os pensamentos por alucinaçoes onde se encontram representaçoes visuais e acústicas, construindo a partir destas imagens sensoriais uma situaçao, uma cena, uma dramatizaçao de uma ideia representando um fato que realmente acontece. De acordo com Freud, o sono significa um fim da autoridade do Eu, sendo assim possível através dos sonhos viver os desejos mais terríveis e mais conflitantes como, por exemplo, o incesto edípico e/ou o parricídio.

A construçao da cena sonhada se faz a partir do chamado trabalho do sonho, onde os conteúdos latentes (pensamentos dos sonhos) se organizam em conteúdos manifestos a partir de condensaçoes, deslocamentos e representaçoes.


O conteúdo do sonho, por outro lado, é expresso, por assim dizer, numa escrita pictográfica cujos caracteres têm de ser individualmente transpostos para a linguagem dos pensamentos dos sonhos. Se tentássemos ler estes caracteres segundo seu valor pictórico, e nao de acordo com sua relaçao simbólica, seríamos claramente induzidos ao erro. (...) O sonho é um quebra-cabeça pictográfico. (Freud, 2001 p. 276-277)


Ao se refletir sobre o sonho deste pequeno paciente percebe-se um possível trabalho de condensaçao visto ser um sonho curto e simples mas que pode abrir portas para um maior entendimento da criança em seu momento edípico frente a uma situaçao traumatizante, tentando realizar um desejo da ordem da sexualidade.

Nao se pode ter certeza se a criança ao relatar o sonho conseguiu abranger toda a cena sonhada ou se apresentou somente um remanescente fragmentário de todo o trabalho do sonho. Certamente que ao relatar, a criança pôde se lembrar da cena em que mata o leao devido ao trabalho do sonho que, através da simbolizaçao, pôde apaziguar suas defesas e permitir nao só a realizaçao do desejo inconsciente, mas sobretudo a lembrança onírica.

Pensando no aspecto da condensaçao, esta nao se dá como uma transcriçao fiel dos pensamentos do sonho, mas sim, se dá por omissao1. Na situaçao aqui relatada a criança nao sonhou com o pai, nem com a mae e nem mesmo com a cena da agressao, mas sonhou com uma cena outra em que se viu frente a frente com um animal grande e poderoso que nas fábulas e nos contos de fadas costuma ser entendido como o rei da floresta, aquele que cuida dos outros animais, mas que também, pode agredir e matar.

É sabido que crianças vao ao cinema, assistem a desenhos animados através de suas televisoes ou mesmo de vídeos. Histórias que se passam em florestas com personagens leoninos sao comuns às crianças, em especial as que, por fazerem parte de uma elite social como o paciente em questao, tem maior acesso a livros, vídeos, canais televisivos a cabo ou mesmo ao cinema. Como bem expoe a psicanalista Mércia Maranhao Fagundes em seu texto sobre o filme Rei Leao de Walt Disney:


Vejo o acesso da criança ao cinema, especialmente ao desenho animado, como um meio auxiliar na tentativa de digerir um pouco do que ainda até entao, nao encontrou espaço mental para ser expresso e compreendido. (...) O cinema tem trazido mais e mais, especialmente para a criança muito pequena, a possibilidade de se identificar com um personagem e através dele conscientizar-se de algumas situaçoes. Elas vêem no personagem um recipiente em que colocam suas emoçoes, muitas vezes, violentas e desconhecidas. Esse é um recurso através do qual elas cuidam de sua mente e aprendem a respeitá-la. (Fagundes, 2002 p. 2)


Embora o filme O Rei Leao14 seja baseado na peça teatral Hamlet de Shakespeare, sua montagem cinematográfica tomou por base as fábulas e, estas fazem parte integrante do imaginário infantil. Fábulas sao histórias curtas geralmente apresentando como personagens animais silvestres e tem como cerne ensinamentos morais e éticos. Embora na contemporaneidade os ensinamentos morais e éticos tenham praticamente desaparecido das histórias infantis, ainda assim, a fábula permanece entremeando os caminhos literários trilhados pelas crianças, em especial durante a contaçao de histórias, precioso auxílio à prática pedagógica de professores na Educaçao Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental15.


A fábula é um gênero comum a todas as literaturas e a todos os tempos, porque pertence ao folclore primitivo. É um produto espontâneo da imaginaçao, já que consiste numa narraçao fictícia breve, escrita em estilo simples e fácil, destinada a divertir e a instruir, realçando, sob açao alegórica, uma ideia abstrata, permitindo, desta forma, apresentar de maneira aceitável, muitas vezes mesmo agradável, uma verdade moral, o que de outro modo seria árido e difícil. (Teixeira Mesquita, 2010 p. 1)


Sendo pois, a fábula, uma narrativa primitiva, espontânea da imaginaçao, simples e fácil, percebe-se a semelhança entre o pensamento infantil e o relato nelas contido, bem como suas possibilidades de trânsito pelas instâncias mentais em formaçao. A presença de animais como personagens das referidas fábulas é constante e caracteriza este gênero literário muito a gosto do público infantil.

Pode-se, portanto, conjecturar que o trabalho do sonho do pequeno paciente tomou emprestado algo pertencente ao mundo das fábulas, possivelmente por que, vivenciando a vida escolar, ele estava em contato com narrativas literárias deste gênero. No entanto, a presença de códigos morais e interdiçoes característica das fábulas poderia censurar-lhe a açao de matar o leao durante o sonho. Mas, como bem coloca Freud a respeito do trabalho do sonho, a condensaçao permite que o sonhador possa arranjar conteúdos diversos de forma a tecer a cena onírica em prol da realizaçao de seus desejos inconscientes. Assim sendo, é possível pensar que coube ao trabalho do sonho desta criança de 04 anos, trazer para a cena resquícios dos contos de fadas, já que neste gênero literário é permitido o reconhecimento da maldade como um aspecto real da vida17.


Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas açoes, já que bem e mal sao onipresentes na vida e as propensoes para ambos estao presentes em todo homem. Os conflitos internos profundos originados em nossos impulsos primitivos e emoçoes violentas sao todos negados em grande parte da literatura infantil moderna, e assim a criança nao é ajudada a lidar com eles. Mas a criança está sujeita a sentimentos desesperados de solidao e isolamento, e com frequência experimenta uma ansiedade mortal. Na maioria das vezes, ela é incapaz de expressar estes sentimentos em palavras, ou só pode fazê-lo indiretamente: medo do escuro, de algum animal, ansiedade acerca de seu corpo. O conto de fadas, toma estas ansiedades existenciais e dilemas com muita seriedade e dirige-se diretamente a eles. (Bettelheim, 2002 p. 5-7)


Exatamente por tratar com seriedade as ansiedades existenciais e os dilemas da infância é que os contos de fadas re-editam o mito de Édipo18. Nota-se com frequência princesas órfas de maes, madrastas com quem se rivalizam e, pais que estao sempre ausentes (viajando) quando entao, podem as meninas encontrar o príncipe amado. Mesmo nao sendo tao clara a referência ao mito de Édipo, algumas histórias infantis como, por exemplo, Chapeuzinho Vermelho, trazem em sua narrativa algo do desejo sexual infantil18.

Ao relatar o sonho, o menino iniciou dizendo que estava andando em uma floresta. Após tal afirmaçao fez uma pausa e ficou em silêncio como que pensando na sequência da cena. Andar em florestas escuras, densas e assustadoras é uma imagem recorrente nos contos de fadas e nas histórias infantis europeias como Branca de Neve e os Sete Anoes, Joao e Maria, Chapeuzinho Vermelho, A Bela e a Fera e tantas outras. Bettelheim ao comentar a significaçao de cada parte dos contos de fadas e sua associaçao com o mundo inconsciente da criança e do adolescente, diz que:


Um adolescente deve abandonar a segurança da infância, o que é representado por perder-se na floresta perigosa; aprender a enfrentar suas tendências violentas e angústias, simbolizadas por encontros com animais ferozes ou dragoes; começar a se conhecer, o que está implícito no encontrar personagens e experiências estranhas. (Bettelheim, 1997 p. 87)


Chama a atençao na afirmaçao de Bettelheim19 o fato de que para um adolescente é de se esperar que abandone a segurança da infância e, metaforicamente, siga por dentro da floresta perigosa; no entanto para um garoto de 04 anos, sentir-se ameaçado frente a um pai violento que agride sua amada mae pode fazê-lo desejante de abandonar a condiçao de infância para tornar-se protetor da mae e, assim, vê-se frente à entrada da densa floresta escura desejando ardentemente tornar-se o caçador. Afinal, nos contos de fadas o caçador substitui a figura do pai protetor e, torna-se ele próprio, protetor das personagens femininas. Assim o é em Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho19.


(...) Daí o caçador nos contos nao seja uma personagem que mata criaturas amistosas, mas sim, uma que domina, controla, e subjuga animais selvagens e ferozes. Num nível mais profundo, ele representa a subjugaçao das tendências animais, anti-sociais, violentas do homem. Uma vez que busca, alcança e derrota o que é visto como aspectos inferiores do homem, o caçador é uma personagem eminentemente protetora que nao só pode nos salvar como efetivamente nos salva dos perigos tanto de nossas próprias emoçoes violentas quanto das dos outros. (Bettelheim, 1997 p. 65)


Para além do significado levantado por Bettelheim pode-se inferir que no imaginário europeu do século XIX, a floresta ganha uma significaçao de terror, medo, possibilidades de vivências místicas e também uma grande relaçao com o masculino, o tornar-se homem corajoso e capaz. Em 1889, Sabine Baring-Gould em seu livro Book of Werewolves apresenta o conceito de willderness, ou seja, o mito europeu das florestas assustadoras20.


Willderness nao tem uma traduçao exata em português. Significa sertao, selva, lugar primitivo, mas sem a precisao da palavra inglesa. Na sua forma mais antiga willderness estava relacionada com florestas, lugares habitados por bestas selvagens ou homens selvagens: wildman. Ao mesmo tempo significava que o homem era tomado de estranhamento sentindo-se desorientado nestas florestas. (Prado apud Branco, 2009 p. 71)


De acordo com Branco20, a willderness para os ingleses vitorianos era um local a ser conquistado, civilizado e "masculinizado"; enquanto que para os aldeoes franceses, partícipes do imaginário popular, a floresta ou willderness era vista como lugar de perigo devendo ser evitada principalmente à noite para proteçao de todos. Este mito vem passando por geraçoes e chegou até o Brasil através dos contos de fadas e, provavelmente, da imigraçao europeia do final do século XIX e início do século XX.

A criança aqui relatada parece ter apresentado, no trabalho do sonho, uma condensaçao a partir do imaginário construído historicamente em meio aos contos de fadas, às culturas migratórias e as fábulas. É interessante observar que após ter vivenciado a experiência de violência familiar de alta carga afetiva, a criança produziu um sonho em que se encontra caminhando em uma floresta e se depara com um animal de grande porte como o leao, sem contudo, apresentar medo neste contexto. Pode-se pressupor que este fato é consequência do trabalho do sonho que através do deslocamento coloca em cena o menino na floresta diminuindo a carga afetiva (raiva, medo, culpa) da cena real da agressao do pai contra a mae.


No trabalho do sonho, está em açao uma força psíquica que por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e por outro, por meio da sobredeterminaçao, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Se este for o caso, ocorrem uma transferência e um deslocamento de intensidades psíquicas no processo de formaçao do sonho. (Freud, 2001 p. 305)


Uma vez na floresta a criança relatou encontrar um leao. Este animal é conhecido na literatura e na filmografia direcionada ao público infantil como o rei da floresta. O rei nas histórias infantis significa um poder absoluto do tipo que os pais parecem deter sobre os filhos19. Neste caso específico o leao parece representar o pai ameaçador que o filho, agora como caçador (protetor da mae) precisa enfrentar.

Ora, o caçador é sobretudo aquele que representa a subjugaçao das tendências animais, anti-sociais e violentas do homem19. Sendo o leao um pai que ameaça, violenta, castra, e destrói a família, o menino edípico torna-se caçador (substituto do pai) para poder matar o leao, no sentido nao só de subjugar a açao violenta e anti-social do pai mas, também, e por que nao, poder ficar como companheiro de sua amada mae. Neste sonho, o menino provavelmente realizou o desejo edipiano e também parricida, mas nao sem ter tido uma inscriçao no corpo (coraçao simbólico)11 de angústia, tristeza (luto) e talvez de culpa, afetos advindos da vida inconsciente. Foi assim que após viver a cena de violência doméstica apresentou uma arritmia cardíaca.


CONCLUSAO

A reflexao sobre este simples sonho infantil a partir do relato de um pequeno paciente em uma consulta cardiológica aponta para a complexidade existente no trabalho dos sonhos nas diversas fases de vida. Nem sempre os sonhos das crianças serao diretos, pueris e resultem na realizaçao de um desejo simplista. A vida mental da criança também está sob a ordem do desejo, da sexualidade e dos conflitos internos. É necessário uma escuta atenta para que se possa interpretar os sonhos relatados em busca de algo mais do que o manifesto. Neste caso específico, o trabalho do sonho parece ter vindo ao encontro do grande conflito edípico e da necessidade de enfrentamento da violência doméstica. Freud levanta a questao do protagonismo paterno na vida da criança quando diz o quao importante é, na infância, ser protegido por um pai. No entanto, o inconsciente pode, de alguma forma, dar conta do sofrimento infantil diante da impossibilidade desta proteçao. O sonho pode ser uma porta através da qual a criança alcance possibilidades para manter o equilíbrio em sua vida mental.


O analista que de fato valoriza o sonho na clínica com crianças pode fazer intervençoes para que esse trabalho seja efetivo. (...) Quando a criança percebe que o analista valoriza os sonhos, ela os reporta com mais frequência e pode, entao, através do jogo, do desenho ou de estórias, fazer associaçoes sobre o material onírico. (Provedel & Priszkulnik, 2008 P. 247)



REFERENCIAS

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Doutorado em Educaçao - (Psicanalista em formaçao (Consultório Particular)) - Goiânia - GO - Brasil. Psicanalista em formaçao do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência
Rita Francis Gonzalez y Rodrigues Branco
Instituto de Psicanálise Dimensao
Rua 1121 nº 249 - Setor Marista 74
690-040 Goiânia, Goiás, Brasil

Submetido em: 08/10/2017
Aceito em: 03/09/2018

Instituiçao: Instituto de Psicanálise Dimensao

 

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