Rev. bras. psicoter. 2018; 20(3):31-46
Assumpçao AFA, Alcântara C, Almeida NO, Neufeld CB, Teodoro MLM. Análise de viabilidade do Programa de Treinamento em Mindfulness para adultos. Rev. bras. psicoter. 2018;20(3):31-46
Artigo Original
Análise de viabilidade do Programa de Treinamento em Mindfulness para adultos
Feasibility Analysis of the Mindfulness Training Program for Adults
Alessandra de Fátima Almeida Assumpçaoa; Cássia de Alcântarab; Nazaré de Oliveira Almeidac; Carmem Beatriz Neufeldd; Maycoln Leôni Martins Teodoroe
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
As intervençoes baseadas em mindfulness (IBMs) tiveram crescimento exponencial nas últimas três décadas. Grande parte do interesse pela área advém dos resultados promissores de estudos científicos bem como da ampla cobertura midiática sobre esses achados por meio de publicaçoes sobre os benefícios potenciais das intervençoes com mindfulness 1 . Há muitos estudos robustos com evidências de eficácia e de efetividade das IBMs para diferentes transtornos psiquiátricos, tais como: transtorno de substâncias psicoativas2, transtorno depressivo 3,4 e transtornos alimentares5. Somam-se a essas evidências, intervençoes para grupos nao clínicos no treinamento de aspectos cognitivos como atençao, concentraçao e memória6 . As IBMs podem ser aplicadas em todas as fases do desenvolvimento humano desde a infância7 até a velhice. Além disso, se trata de uma abordagem nao farmacológica e que pode ser praticada virtualmente em qualquer lugar e a qualquer hora9 .
O termo mindfulness é de difícil compreensao, visto que apresenta quatro aplicaçoes diferentes. Tal construto pode se referir (1) ao estado ou processo da consciência, (2) a um traço de personalidade, (3) às práticas do tipo mindfulness e (4) às IBMs. No que diz respeito ao mindfulness como estado ou processo da consciência, ele pode ser compreendido como uma capacidade intrínseca e modificável da mente humana e, é definido como prestar atençao de uma maneira particular no presente momento: intencional, sem julgamento, de maneira amorosa, compassiva e com abertura e interesse à experiência10,11.
Enquanto traço de personalidade, mindfulness pode ser compreendido como uma qualidade da mente humana que está presente em maior ou menor grau em todas as pessoas. Mindfulness é um construto multifacetado entendido como um conjunto de habilidades -que podem ser ensinadas e apreendidas- que inclui: agir com consciência (awareness), aceitaçao, nao julgamento, nao reatividade e nao evitaçao das experiências13.
Assim, por meio do treinamento de práticas de meditaçao do tipo mindfulness, é possível aprender e desenvolver graus mais elevados de mindfulness e, com isso, auxiliar no desenvolvimento de melhores estratégias de enfrentamento e na criaçao de um estilo de vida mais saudável. No que tange às IBMs, elas podem ser compreendidas como diferentes intervençoes que apresentam como objetivo central o treinamento mental para o cultivo de estados de mindfulness no cotidiano que servem como estratégia de enfrentamento como: estresse, depressao recorrente, dor crônica, dentre outros14. A prática de mindfulness enfatiza a observaçao dos eventos presentes em vez de compará-los, avaliá-los ou ruminá-los com experiências do passado ou do futuro12.
Conforme Creswell (2017)1, a proposta de mindfulness contrasta com grande parte da experiência diária de nossas vidas, na qual estamos constantemente divagando em nossos próprios pensamentos, ruminando sobre o passado, preocupados com o futuro, agindo no piloto automático ou suprimindo experiências indesejáveis. A partir dessa compreensao de como nao estamos atentos à experiência do momento presente e a importância desse estado (estar no presente) e do desenvolvimento do traço mindfulness, surgiram as IBMs no contexto científico. Essas abordagens tiveram início nos Estados Unidos, no final da década de 1970, com a criaçao do Programa de Reduçao de Estresse Baseado em Mindfulness (MBSR), desenvolvido pelo médico Jon Kabat-Zinn do Instituto de Medicina de Massachusetts. O pesquisador que tinha prática pessoal da meditaçao do tipo mindfulness desenvolveu um programa que fosse acessível para leigos, isto é, nao atrelado à religiao budista, visando à reduçao do estresse em pacientes com dor crônica. Desde aquela época as pesquisas com MBSR têm mostrado boa eficácia no tratamento para diferentes condiçoes clínicas e transtornos psiquiátricos14 .
No início da década de 1990, os psicólogos John Teasdale, Mark Williams e Zindel Segal hipotetizaram que o treinamento de mindfulness poderia causar efeitos positivos na prevençao da recaída da depressao recorrente. Influenciados pelo programa MBSR de Kabat-Zinn eles criaram também uma intervençao de oito semanas que continha, além das práticas de mindfulness, a teoria subjacente da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e deram origem a Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness (MBCT). Em decorrência da eficácia obtida no programa para prevençao de recaída da depressao recorrente, o MBCT passou a fazer parte dos tratamentos psicológicos convencionais baseados em evidências. O estudo de Einsendrath e colaboradores (2016)15 aponta que a intervençao reduz as chances de recaída em 40 a 50% nas pessoas que já sofreram três ou mais episódios de depressao. O MBCT é inclusive recomendado desde 2009 pelo National Institute for Health and Clinical Excellence16 do Reino Unido como intervençao padrao para evitar a reincidência de depressao, para aqueles com histórico de três ou mais crises em suas Diretrizes para a Gestao da Depressao. Ainda nao há estudos publicados no Brasil com resultados de IBMs.
A partir de resultados promissores do MBCT foi desenvolvido pelos autores do estudo, o "Programa de Treinamento em Mindfulness para adultos". Optou-se pela utilizaçao do MBCT devido aos dados de eficácia e efetividade no tratamento de sintomas depressivos, ansiosos e de estresse que sao os sintomas-alvo da intervençao. Além disso, os autores apresentam formaçao acadêmica e experiência clínica na abordagem cognitivo-comportamental.
O objetivo do presente estudo foi analisar a viabilidade do programa para que, futuramente, seja realizado um estudo clínico controlado e randomizado que verificará a eficácia do programa planejado para a populaçao brasileira. Para tanto, foram avaliadas 13 categorias, a saber: (1) recrutamento, (2) critérios de elegibilidade, (3) triagem, (4) adesao ao tratamento, (5) adesao às tarefas de casa, (6) tempo das sessoes e das tarefas, (7) trabalhar sintomas depressivos, ansiosos e de estresse, (8) adequaçao do conteúdo do manual, (9) assimilaçao do conteúdo, (10) assimilaçao das práticas, (11) adequaçao da terapeuta, (12) local de realizaçao do grupo e (13) tempo de intervençao.
MATERIAL E MÉTODO
Optou-se por realizar uma análise de viabilidade visto que é uma metodologia conduzida em diferentes áreas clínicas e apresentam como objetivo central examinar se determinado estudo pode ser realizado em maior escala, em especial, se for um ensaio clínico randomizado. Por meio desse tipo de estudo é possível avaliar (1) o processo da pesquisa, (2) os recursos (tempo, custos, equipe), (3) os problemas que podem ocorrer no estudo principal, (4) o gerenciamento do projeto (recursos humanos, comunicaçao, escopo, custo, risco, qualidade e integraçao de informaçoes relativos à coleta, arquivamento e análise dos dados) e (5) a avaliaçao do efeito do tratamento e dos procedimentos éticos de pesquisas17.
PARTICIPANTES E DESENHO
O estudo tratou-se de uma análise de viabilidade na qual estudantes universitários (da graduaçao e da pós-graduaçao) foram recrutados no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA). A divulgaçao aconteceu por meio da rede social Facebook (página do programa, nas páginas da UFMG de diferentes cursos e em perfis pessoais), do Whatsapp, de cartazes divulgados no website da instituiçao e por email para grupos de pesquisa e diferentes departamentos da universidade. Os participantes interessados eram orientados a enviar um email para atencaoplenaufmg@gmail.com para receberam maiores informaçoes sobre a intervençao. Os interessados em participar da pesquisa, após os esclarecimentos, foram agendados para realizaçao da entrevista. Os participantes foram avaliados no SPA entre os meses de agosto a setembro de 2017 e as intervençoes aconteceram entre outubro e dezembro de 2017. Todos os participantes foram submetidos a uma entrevista para verificaçao de variáveis sociodemográficas e da condiçao médica e psiquiátrica. Para tanto, realizaram uma bateria de testes para avaliaçao dos critérios de inclusao e exclusao de sintomas de depressao, de ansiedade, de estresse e de psicopatologia severa.
Foram avaliados como critérios de inclusao: estar regularmente matriculado na UFMG; homens e mulheres com idade superior a 17 anos e inferior a 60 anos; apresentar escore entre 14 e 28 no Inventário de Depressao de Beck-II (BDI-II); ter escores maiores que zero no Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) e na Escala de Estresse Percebida (PSS). Os critérios de exclusao avaliados foram: apresentar epilepsia ou outro transtorno neurocognitivo; ter prática regular de meditaçao do tipo mindfulness há mais de 6 meses e relatar histórico recente (últimos 12 meses) de psicopatologia severa (psicose, risco e tentativa de suicídio, transtorno de pânico e transtorno de estresse pós-traumático). Os dados foram coletados por uma equipe da pesquisa devidamente treinada para realizar a avaliaçao.
INSTRUMENTOS
INVENTARIO DE DEPRESSAO DE BECK (BDI-II)
O instrumento original foi desenvolvido por Beck e colaboradores em 1961 e traduzida e adaptada para o Brasil por Cunha (2001)18. Em 1996 foi atualizada por Beck e colaboradores e passou por diversos estudos de validade no Brasil19. No estudo de Gomes-Oliveira e colaboradores (2012)20 a consistência interna encontrada foi de 0,93 para adultos e a confiabilidade foi de 0,65. É um instrumento de autorrelato estruturado em 21 itens, referentes a sintomas e atividades para verificaçao de sintomas de depressao, que devem ser respondidos por meio de uma escala Likert de 0 a 3. A interpretaçao dos dados segue o seguinte padrao: escores entre 0 a 13 (mínimo); escores de 14 a 19 (depressao leve); escores de 20 a 28 (depressao moderada); escores de 29 a 63 (depressao severa).
INVENTARIO BECK DE ANSIEDADE (BAI)
Criado por Beck e colaboradores (1990), originalmente foi desenvolvido para uso com pacientes psiquiátricos adultos, sendo posteriormente validado para uso com outras populaçoes. No Brasil, o BAI foi validado por Cunha (2001)18 e a consistência interna encontrada variou entre 0,92-0,94 para adultos e a confiabilidade foi de 0,75. O BAI é um instrumento de autorrelato estruturado em 21 itens, referentes a sintomas e atividades para verificaçao de sintomas de ansiedade, que devem ser respondidos por meio de uma escala Likert de 0 a 3. A interpretaçao dos dados segue o seguinte padrao: escores entre 0 a 10 (ansiedade mínima); escores de 11 a 19 (ansiedade leve); escores de 20 a 30 (ansiedade moderada); escores de 31 a 63 (ansiedade grave).
ESCALA DE ESTRESSE PERCEBIDA (PSS)
Instrumento de autorrelato desenvolvido por Cohen, Karmarck e Mermelstein (1983)22, traduzida e validada para o Brasil por Luft e colaboradores (2007)23. O instrumento obteve índice de confiabilidade de 0,82 na versao brasileira contendo quatorze questoes em escala do tipo Likert (0 = nunca a 4= sempre), sendo que o escore final varia entre 0 e 56. Quanto maior for o escore final, maiores sao os níveis de estresse percebido. A escala avalia os níveis de estresse nos últimos 30 dias. A média geral apresentada pela populaçao foi de 21,37 pontos no estudo de Luft e colaboradores (2007)23.
A MINI INTERNATIONAL NEUROPSYCHIATRIC INTERVIEW (MINI)
É uma entrevista diagnóstica padronizada breve que segue os critérios chaves do DSM-IV24,25. Optou-se pela utilizaçao dessa medida visto que nao há ainda a adaptaçao da MINI com os critérios do DSM-5. Todavia, as modificaçoes da nova ediçao foram observadas no presente estudo. Foram avaliados apenas os seguintes critérios/transtornos: Episódio depressivo maior (EDM), EDM com características melancólicas, Distimia, Risco de suicídio, Episódio (hipo) maníaco, Transtorno de Pânico, Transtorno de Estresse Pós-Traumático e Síndrome Psicótica.
CONSIDERAÇOES ÉTICAS
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da UFMG em 20 de abril de 2017 com aprovaçao de número 2.025.573. O ensaio clínico randomizado foi inscrito na Plataforma REBEC (http://www.ensaiosclinicos.gov.br) em 21 de julho de 2017 sob o registro RBR-4mmvpc.
O PROGRAMA
O programa desenvolvido foi baseado principalmente na intervençao original da MBCT "Mindfulness Based Cognitive Therapy for Depression" de Segal, Williams e Teasdale (2002)26. Ademais, foram acrescentadas algumas explicaçoes, atividades e práticas propostas nos livros subsequentes que sao "Atençao plena: como encontrar a paz em um mundo frenético" de Williams e Penman (2015)27 e "Manual prático de Mindfulness: meditaçao da atençao plena" de Teasdale, Williams e Segal (2016)28, os quais abordam nao apenas os sintomas depressivos, mas incluem também os sintomas ansiosos e de estresse.
O núcleo central do programa foi mantido, isto é, os temas e os objetivos das semanas foram preservados conforme a proposta original (Tabela 1 e 2). Todavia, alguns pontos foram retirados ou adaptados de acordo com a viabilidade de replicaçao do programa. Dentre as alteraçoes realizadas destacam-se:
1. Foi excluído o retiro de 8 horas. Optou-se por nao fazer essa sessao pela inviabilidade de espaço institucional, de recursos e da dificuldade alegada por parte dos participantes que nao se dispuseram a realizar o retiro;
2. Houve uma diminuiçao de oito para seis sessoes. Optou-se por fazer essas adequaçoes com base na falta de evidência sobre a quantidade ótima de números de sessoes para obter os mesmos resultados positivos do programa de oito semanas1,29;
3. A proposta de 2 a 2h30 de prática preconizada pelo programa foi alterada para 1h30 devido novamente a inviabilidade de espaços institucionais e as dificuldades alegadas pelos participantes de participaçao em uma atividade tao extensa;
4. Tendo em vista ainda a questao temporal, apesar de serem sugeridas na MBCT práticas diárias de 30 a 45 minutos, optou-se por apresentar uma progressao das práticas de atençao plena começando com focos de consciência mais fáceis e de curta duraçao e, gradualmente, expandindo para práticas mais desafiadoras e longas indo de 6 a 25 minutos diários. Para realizar essa mudança, parte-se da ideia central que a consistência e a qualidade da prática talvez sejam mais importantes do que a quantidade29;
5. A prática de casa sugerida no presente programa é de cinco vezes por semana e nao de seis vezes como proposto no protocolo original. Tais alteraçoes se fundamentam na literatura que aponta nao haver dados robustos sobre o tempo ótimo da prática em casa para as intervençoes baseadas em mindfulness1.
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