Rev. bras. psicoter. 2017; 19(2):45-58
Santos DR, Soares MRZ. Avaliaçao inicial e funcional de um caso clínico de Transtorno Alimentar sob a perspectiva da Análise do Comportamento. Rev. bras. psicoter. 2017;19(2):45-58
Relato de Caso
Avaliaçao inicial e funcional de um caso clínico de Transtorno Alimentar sob a perspectiva da Análise do Comportamento
Initial and functional evaluation of a clinical case of Eating Disorder from the perspective of Behavior Analysis
Deivid Regis dos Santos1; Maria Rita Zoéga Soares2
Resumo
Abstract
A Análise do Comportamento (AC) tem contribuído com diversas áreas por meio da aplicaçao de princípios teóricos, desenvolvimento de estratégias e modelos de atuaçao. Profissionais orientados(as) por tal teoria consideram que os comportamentos e sintomas apresentados pelo cliente sao produtos de fatores ambientais e biológicos. Ademais, analisam as relaçoes do indivíduo com o meio, identificando as condiçoes que produziram tais sintomas (classes comportamentais) e aquelas que se mantêm presentes1. Neste sentido, têm a possibilidade de intervir nessas relaçoes, auxiliando clientes no desenvolvimento de repertórios comportamentais que permitam agir de modo mais eficaz no ambiente.
Neste artigo será dada ênfase a análise funcional molar e molecular do caso de uma cliente com diagnóstico de Transtorno Alimentar (TA) e as estratégias utilizadas para se levantar informaçoes relevantes. A análise molecular diz respeito às variáveis diretamente relacionadas à queixa. A análise molar permite a avaliaçao de eventos como história de vida e relaçoes atuais de clientes, que nao dizem respeito diretamente ao problema apresentado, mas que podem contribuir na conduçao do caso por fornecerem indícios de como a pessoa interage em diferentes contextos2, 3. Espera-se que este artigo auxilie terapeutas iniciantes no processo de avaliaçao inicial e de análise funcional.
DESCRIÇAO DO CASO CLINICO
Trata-se do caso de uma jovem com queixa de Bulimia Nervosa (BN). Quando procurou atendimento tinha 22 anos, era aluna de curso universitário na área da saúde, residia com os pais e uma irma. O caso foi atendido por um estagiário do último período do curso de Psicologia em uma instituiçao pública. No início do atendimento, a cliente assinou um documento demonstrando estar ciente que os dados dos atendimentos poderiam ser utilizados para fins acadêmicos e didáticos. Alguns dados foram omitidos com intuito de preservar a identidade da cliente.
A cliente buscou atendimento pelo fato de que há cinco anos sofria de BN e que, nos últimos meses, os sintomas haviam se acentuado. Vale ressaltar que no início da intervençao nao havia clareza quanto ao diagnóstico. Por este motivo, foi necessário levantar informaçoes sobre os Transtornos Alimentares, focando principalmente no conhecimento sobre a BN e a Anorexia Nervosa (AN).
Os TAs estao descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-54 e sao definidos como persistentes perturbaçoes relacionadas à alimentaçao que prejudicam a saúde do indivíduo, seus relacionamentos e dependendo da gravidade, podem resultar em risco para a vida de quem possui o diagnóstico.
Em funçao dos comportamentos descritos pela cliente, buscou-se informaçoes sobre a BN. Condiçao que caracteriza-se pelo engajamento em compulsoes periódicas (ingestao de grande quantidade de alimentos, em um período limitado de tempo de 2 horas, acompanhada por sensaçao de falta de controle sobre o comportamento alimentar durante o episódio) e métodos compensatórios para evitar ganho de peso (induçao de vômito, uso de laxantes e práticas excessivas de exercícios). Para que seja considerado um quadro de BN, os comportamentos compensatórios devem ocorrer pelo menos uma vez por semana por três meses e nao ocorrer durante episódios de AN. Algumas complicaçoes da BN podem incluir desgaste do esmalte dentário, rupturas no estômago, complicaçoes gástricas e calos na superfície da mao caso se utilize os dedos para induzir o vômito.
As informaçoes decorrentes da literatura sobre os TAs levou à necessidade de se levantar informaçoes com a cliente sobre seu quadro clínico, de modo a operacionalizar os comportamentos e verificar as variáveis relacionadas aos mesmos. Para tal, foi necessária a utilizaçao de roteiro de entrevista inicial que auxiliou na identificaçao de que a cliente apresentava todas as características descritas no DSM-5 sobre o quadro de BN5. Este roteiro foi desenvolvido para atingir o público em geral. Optou-se por utilizá-lo porque permite levantar aspectos contextuais relevantes para a análise funcional. A cliente relatou que em determinados períodos chegou a induzir o vômito até quatro vezes ao dia. Quando procurou atendimento psicoterápico tal comportamento ocorria cerca de uma vez ao dia, todos os dias da semana.
De acordo com ela, tais comportamentos se iniciaram quando estava no último ano do ensino médio. Naquela ocasiao, namorava um rapaz que costumava solicitar que o acompanhasse nas refeiçoes e exigia que consumisse uma determinada quantidade de alimentos. Neste período, ele apresentava comportamentos compulsivos e comia excessivamente. A cliente relatou que nao conseguia comer muito nesta condiçao. Para nao desapontá-lo e ingerir maior quantidade de comida, passou a induzir vômito com auxílio de objetos. Após o término deste relacionamento conheceu outro rapaz que namorou por seis meses. Ele falava que a namorada comia em excesso e se queixava constantemente. Verbalizava que se ela continuasse a se alimentar daquela forma acabaria ficando obesa. A cliente disse que nessas situaçoes se sentia triste, magoada e provocava vômito com maior frequência. Durante o processo terapêutico, a cliente estava em um relacionamento com outro rapaz que nao fazia exigências quanto ao modo dela se alimentar.
A cliente atribuía a piora do quadro clínico ao aumento das exigências acadêmicas, às suas próprias expectativas para manter as notas altas, à distância do namorado (ele estava residindo em outra cidade por motivos acadêmicos) e às constantes solicitaçoes dos pais para que auxiliasse a irma em estudos preparatórios ao vestibular. Na data em que iniciou a psicoterapia, apresentava sintomas como gastrite e refluxo, provavelmente devido ao excesso de episódios purgativos. Relatou ter feito reparaçao dentária em funçao da corrosao dos dentes causada por ácidos gastrointestinais.
No início da psicoterapia apresentou complicaçoes clínicas devido à baixa imunidade e ao peso abaixo do recomendado (Indice de Massa Corpórea de 16,9 kg/m2 - nível moderado de acordo com o DSM-5). Durante este período, tinha se engajado fortemente em atividades físicas, o que favoreceu a perda de peso. Nesse período foi hospitalizada para tratamento de pielonefrite, desnutriçao e baixa imunidade. Tal fato levantou suspeita de um possível quadro de AN.
Uma das características da AN diz respeito ao peso corpóreo que se apresenta abaixo do mínimo esperado (Indice de Massa Corpórea de 17 kg/m2). Tal perda de peso pode ser decorrente da restriçao alimentar que o indivíduo se submete; de atividades para reduçao do peso como o excesso de exercícios físicos; da autoinduçao de vômito e do uso de laxantes e/ou diuréticos. A AN pode ser do Tipo Restritivo ou do Tipo Compulsao Periódica/Purgativo. Na primeira condiçao, a perda de peso seria decorrente principalmente de restriçao alimentar (dietas, jejuns e exercícios em excesso) sem episódios de compulsao alimentar e/ou purgaçao. Na outra condiçao, o indivíduo pode se envolver regularmente em episódios de compulsao alimentar com ou sem purgaçao ou apenas purgaçao, sem episódios de compulsao4.
Para diferenciar os subtipos é necessário verificar o tempo dos episódios de compulsao alimentar. Se a pessoa se engajar neste tipo de episódio durante um período de três meses, pode ser considerado o critério Tipo Compulsao Periódica/Purgativo. Ao contrário, se neste período nao houver ocorrido o episódio de compulsao alimentar é mais provável que ocorra o critério Tipo Restritivo. O indivíduo com esse transtorno pode apresentar complicaçoes devido aos danos causados pela induçao de vômito e ao baixo peso como: inaniçao; anemia; lesoes no sistema gástrico; desidrataçao; pielonefrite (decorrente da baixa imunidade); alteraçoes hormonais; bradicardia; e erosao no esmalte dentário4. Destaca-se que a cliente apresentou em algum período as condiçoes clínicas citadas, exceto inaniçao, alteraçao hormonal e bradicardia.
No início do atendimento, a cliente apresentava comportamentos que sustentavam tanto o diagnóstico de BN, como o de AN. Em alguns momentos, apresentava mais características da BN como compulsao alimentar seguida por purgaçao. Em outros momentos, apresentava mais os comportamentos relacionados ao quadro de AN como períodos de restriçao alimentar, excesso de atividades físicas e perda de peso, tendo como consequência a hospitalizaçao.
AVALIAÇAO E ANALISE FUNCIONAL
O caso apresentado corresponde ao recorte das primeiras oito sessoes de psicoterapia, cujo foco se direcionou na avaliaçao e levantamento de hipóteses funcionais. Considerou-se relevante o encaminhamento da cliente para avaliaçao de um psiquiatra e uma nutricionista. Tal contato se fez necessário para adequaçao de estratégias entre os profissionais, otimizar a conduçao do caso, favorecer a adesao ao tratamento e melhorar o prognóstico.
Também considerou-se relevante levantar informaçoes sobre as atividades físicas desenvolvidas pela cliente. Foi necessário considerar a quantidade (frequência, duraçao e intensidade) e a qualidade (troca de atividades de lazer ou familiares por uma agenda rígida, em que o indivíduo nao se permite ficar sem atividades físicas). Identificou-se que a cliente corria três vezes por semana e nos outros dias ia à academia. Demonstrava demasiada preocupaçao quando nao conseguia realizar tais atividades.
Durante o período que esteve em atendimento psicoterápico, a cliente apresentou uma torçao no pé e mesmo assim, insistiu em realizar as referidas atividades. Tal comportamento contribuiu para complicar o quadro e comprometeu a recuperaçao. De acordo com Teixeira et al. 6, deve-se levar em conta tanto à quantidade como a qualidade da realizaçao de exercícios. Mesmo sentindo dor, muitos indivíduos podem se recusar a cessar tal atividade e sofrem prejuízos físicos importantes. Este tipo de atividade deve ser conduzida sob a supervisao de profissionais capacitados à orientar sobre a forma que os exercícios devem ser realizados e as consequências do excesso deste tipo de atividade. Tal orientaçao pode evitar prejuízos físicos como, por exemplo, a reduçao excessiva de massa corpórea, como ocorreu no presente caso.
De acordo com o relato da cliente, algumas condiçoes favoreceram o surgimento dos sintomas. Uma delas estaria relacionada aos comportamentos dos pais, tais como a desaprovaçao para dormir na casa do namorado, a exigência de realizaçao de estágio em áreas que nao eram de seu interesse e a demonstraçao de pouco interesse com o seu bem estar. Outras condiçoes que, segundo ela, poderiam acentuar a presença dos sintomas estariam relacionadas aos momentos mais ociosos em que ficava sem atividades acadêmicas e os dias que antecediam as provas da faculdade. A cliente identificou tais situaçoes como produtoras de ansiedade e que causavam desconforto no seu dia a dia.
A literatura tem apresentado alguns fatores que contribuem para o surgimento do TA, como quadros de transtornos psiquiátricos na família, tendência à obesidade principalmente quando esta se inicia na infância, alteraçoes nas vias noradrenérgicas, padrao rígido de interaçao familiar com esquiva de conflitos, falta de cuidados e violência doméstica7. Pesquisadores avaliaram as consequências em longo prazo em pessoas que sofreram abuso físico, sexual e psicológico em comparaçao com um grupo controle que nao sofreu este tipo de violência na infância8. Tal estudo obteve como resultado para o grupo experimental altos índices de complicaçoes como transtornos alimentares, depressao, ideaçao ou tentativa de suicídio, consumo excessivo de álcool, problemas sexuais e internaçao em hospital psiquiátrico, quando comparado ao grupo controle. O presente processo psicoterápico identificou algumas dessas condiçoes. A cliente relatou ter sofrido constantes agressoes físicas e verbais por parte do pai e da mae, além de pouca abertura da família para questionamento de regras e valores pré-estabelecidos. Ademais, na família havia outros casos com diagnóstico psiquiátrico e de dependência química.
Foi constatado que em relaçao a um grupo controle, pessoas com BN apresentavam uma história maior de sofrimento relacionada à puniçao do tipo físico durante a infância9. Algumas características relacionadas à presença de conflitos familiares, perfeccionismo e necessidade de manter completo controle sobre a própria vida também têm sido identificadas como parte do repertório destes indivíduos10. Estudos também apontaram acentuado déficit em habilidades sociais em indivíduos com TA11,12. Existe uma relaçao entre a presença de TA, baixa autoestima e baixa tolerância à avaliaçao negativa12. No presente caso, tais características puderam ser observadas na própria relaçao terapêutica ou foram relatadas pela cliente. Constatou-se que ela evitava qualquer avaliaçao negativa, demonstrava a busca pela perfeiçao e tentava corresponder às expectativas dos pais em relaçao aos valores morais e às atividades acadêmicas. Além disso, dificilmente recusava pedidos e apresentava relatos que indicavam baixa autoestima.
Com base nos comportamentos apresentados pela cliente, buscou-se compreender, a partir do referencial teórico da Análise do Comportamento e da literatura médica, as relaçoes funcionais presentes no quadro clínico. Devido à complexidade do caso e os entrelaçamentos das variáveis externas (padrao comportamental de pessoas do convívio da cliente), variáveis internas (condiçoes biológicas) e variáveis históricas, considerouse necessário a elaboraçao de diagramas ilustrativos das relaçoes funcionais que pudessem contribuir para a compreensao e conduçao do caso. Foram levantadas variáveis que poderiam estar influenciando na aquisiçao e manutençao do padrao comportamental relacionado ao quadro de TA. Tal condiçao possibilitou a compreensao do padrao comportamental da cliente como um todo e nao apenas ao quadro psiquiátrico específico. A Figura 1 apresenta o diagrama elaborado a partir do modelo apresentado por Costa e Marinho13, com a inclusao de variáveis relacionadas ao comportamento alimentar:
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax